segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

GRAND CANYON - UM LIVRO DO TEMPO




Fotos de Sofia P.Coelho

PARA NÃO ME ESQUECER

Eu trago um buraco no Futuro
Traz presentes fugidios...e memórias de navios.
Traz tanta confiança
Que se é sempre criança
Mesmo quando não se quer
O que foi não volta a ser...
Xutos&Pontapés

Olho da janela do Tempo para o lado onde corre em pressas inadiáveis o caudal dos acontecimentos, pensamentos e frases de um texto que acaba por ser uma existência. Nem uma se consegue agarrar para amostra, apenas ouvir num repente audio e saborear o resíduo deixado brevemente. Olho para o outro lado e tudo está no mesmo lugar de onde nunca saíu, suspenso no seu tempo de não ser nada, arquivos, memórias, recordações, sensações armazenadas no pó das prateleiras. Desse lado o Tempo não é tempo nem é nada, apenas uma massa anónima de imagens, apenas uma linha contínua onde tudo se passa ao mesmo tempo, devagar. Na coexistência de todos os acontecimentos vou formando um todo; na velocidade inalcançável do outro lado vou tentando apanhar com o camaroeiro dos registos, pedaços do "acontecer", irremediavelmente incompletos. E entre um lado e outro da janela suspiro ante a impossibilidade certificada de nunca ser Todo, de nunca poder ser Absoluto. Se sei trajectória e velocidade, escapa-me a localização; se localizo, não consigo calcular caminho e andamento. E por aqui me fico, nesta catarse quântica que não aquece nem arrefece, a sonhar com manhãs de universo completo, perdido nos nós das frases, escondido na busca da palavra certa para dizer meia duzia de coisas, para contar uma história da melhor maneira que ela o possa ser, sabendo que nunca o conseguirei. Para não perder os dias em depressões e nostalgias recuo para um dos lados da janela. Aquele precisamente em que tudo está a acontecer ao mesmo tempo...e respiro. Esfolei os joelhos a andar no triciclo. Fui contra a porta e a dor física é ainda uma sensação nova, quase insuportável. A minha avó vai buscar a água oxigenada, coloca-me o penso sobre o joelho e pergunta-me se quero ir comer um bolo à pastelaria. A dor recua de forma inexplicável ante a visão do bolo na minha mão, o seu sabor, o prazer de o devorar. E assim vai doendo cada vez menos. Também nos dias que passam é preciso recuar, ou voltar ao lugar que ainda é presente. Por isso tento nunca me esquecer que tinha um triciclo, uma ferida no joelho e a miragem de uma viagem à pastelaria para comer um bolo. Preciso de me lembrar de não me esquecer de ser criança até morrer.
ARTUR

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

ENTRE FESTAS


Seinfeld em jeito de fecho com os Green Day em som de fundo. Uma maneira de celebrarmos o pós Natal e o pré Ano Novo.
ARTUR

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

INTERROGAÇÃO AO EVIDENTE

Vento, sombras que passam apressadas sem tempo de se cumprimentar a caminho de um lugar difícil de identificar. Àgua, húmidas lembranças de princípio e de fim, garantias de vida soprada na canalização de um corpo. Acho que já nos vimos uma vez, num lugar qualquer, em algum tempo... ou serei eu que fui simplesmente acordado pelos sinais do teu corpo que escrevem em mim o instinto de procriar? Sobreviver, voltar a acontecer o dia e a noite e a dança do SEMPRE ou do talvez sempre, temporário de eterno. Havia uma praia e era de noite ao luar. A areia estava húmida como o interior de ti quando nos deitámos sobre a areia a ouvir as ondas ao longe desafiando ensaios de espuma. Chuva, dilúvio do desespêro numa sala anónima de hospital perante o inevitável antes do soco seco e profundo da dor. Adeus sem tempo para despedidas, lágrimas com vida própria ao longo do rosto, medo, dor, dor e medo. Mão fechada no ar,punho erguido de sobreaviso,soco,pontapé,defender antes de ser agredido,gritos e nódoas negras, vozes e dor.Obrigação de estar vivo, de assim continuar por obrigação,estatuto de bicho. Labirinto, correria desenfreada pelos túneis do conhecimento, poças de água existencial salpicando o caminho em frases feitas,razões óbvias, filosofias estranhas. Caír, tropeçar e voltar a andar.Vento, ar em movimento, apenas isso, mais nada. O ar que caminha, mais depressa ou mais devagar, empurrando as ondas que á praia irão dar.Água, gotas que caem do céu serpenteadas ou em linha recta, agrupadas em respiração de plantas dentro de uma nuvem. Apenas água,apenas vento, apenas mar. E no meio de tudo isto um urso que não consegue deixar de se interrogar...
ARTUR

domingo, 16 de dezembro de 2007

CARPETE DIEM

Dá-me lume, deixa os meus pulmões vibrarem o prazer do fumo nesse glorioso espaço de nada para fazer. Dá-me tempo, deixa-me esquecer o que não merece a minha atenção, deixa-me partir para poder voltar junto de mim, junto de ti. Dá-me espaço, quero ver o voo da minha imaginação numa planície que se deita sem pressa ao entardecer no horizonte queimado pelo Sol. Dá-me colo, deixa-me esquecer os meus medos no fundo de um peito generoso, aberto sobre o meu olhar sempre inquieto. Dá-me um olhar onde tudo pode parecer eterno e seguro mesmo que não seja, mesmo que desapareça logo a seguir. Dá-me o Mar, embala-me o corpo em ondas tranquilas de rebentação certa e sincronizada que me deixam na praia com uma sensação inesquecível de triunfo. Dá-me um copo, dois dedos de conversa num tasco imundo onde se resolvem em três frases todos os problemas do mundo sem dificuldades. Dá-me a vida antes de estar morto para que as possa comparar entre duas lágrimas e uma gargalhada cheia e convincente. Dá-me paciência para poder acordar todos os dias com alguma vontade de continuar. Dá-me as razões que me faltam no entendimento. Dá-me um sorriso quando abres uma prenda ou o fecho das calças. Dá-me um golo de mão cheia, um remate de fora da àrea que faz levantar um estádio cheio de milhares de vozes anónimas e momentâneamente felizes. Dá-me um grito quando a minha estupidez estiver a ir longe demais para a poderes aceitar. Dá-me uns trocos de solidariedade e um abraço ou simplesmente acende uma vela em memória de mim, antes de partir para aquele lugar onde nos voltaremos decididamente a encontrar. Dá-me a manhã ensolarada e a noite de Lua cheia, a descida vertiginosa da montanha numa mota prateada, uma canja com vodka, um livro desconhecido para as dores do espírito. Dá-me qualquer coisa quando nada me vier á lembrança para te dar a ti. Conta uma anedota no meu velório e peida-te no fim quando te entregarem a caixa com as cinzas. Aqui estivémos, por aqui andámos e daqui saímos. Sem rancor nem medo, nem nenhuma vontade de vingança. Pura e simplesmente aquela estranha sensação de nada ter percebido a não ser o amor, a solidariedade, o abraço e a compaixão entre nós e todos os seres que como nós tactearam no escuro as respostas que o caminho nunca lhes soube dar...
ARTUR

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

QUEM É QUE BATEU NO CHAVAL?

Nos grémios ou sociedades recreativas juntavam-se elementos do passado e do presente num convívio fraterno em torno de imperiais, mesas de damas,canasta operária( parreca), "belga" ( dominó pontuado por múltiplos de cinco), sueca, bisca lambida ou lerpa. Eram homens de outro tempo, alguns nossos tios ou avôs, que encontravam ali o espaço para descontraír, conviver com os amigos, virar uns copos. Reformados na sua maioria, gostavam de ter por perto os mais novos, quanto mais não fôsse para se exibirem na sua inalcançável malandrice, uma tusa que nenhum de nós alguma vez imaginaria ter, ou moina do tempo em que ainda tinham força e davam aviamentos colectivos a adversários quase todos eles mortos ou desaparecidos, como tal impedidos que confirmar as façanhas. Lembro-me de um que quando não tinha cartas para jogar porque perdia, levava a mão atrás das calças, sacava do pente e atirava-o para cima da mesa. Os outros, como se fôsse a primeira vez, admoestavam-no. Ele abria o rosto de espanto e gritava. - "Atão, não tenho nada para jogar, jogo o pente".
As melhores partes desses espaços eram as danças de salão. Um autêntico congresso tribal em que todos e todas se esforçavam por aparecer no seu melhor em aspecto e destreza dançante. Eles de brilhantina a pingar cara abaixo, colete de seda dos ciganos a brilhar por baixo do fatinho que já apertava aqui e ali a memória de 20 kilos atrás, os sapatinhos de polimento a ornamentar o peúgo branco e, claro, o inevitável cachucho de preferência no mindinho, para melhor realçar a unhaca comprida com que se arranhavam os mais belos solos das guitarras. Elas carregavam nas tintas todas a que pudessem deitar a mão desde aquela que lhes enegrecia o cabelo até ao batom estilo semáforo para nevoeiro, passando por umas aplicações de riscos negros a cruzar cleópatras e odaliscas sem pêlos. Vestiam vestidos também brilhantes como os coletes deles, sem costas e a acabar em roda de folhos a poucos centímetros do chão. Uma alegria.Tudo corria bem ao ritmo das rumbas, boleros, valsas e tangos desde que não fôsse noite de júri. Aí todos sabíamos que era uma questão de tempo até a convenção tribal assinar uma declaração de guerra espontânea entre os seus membros, com requintes de massacre especial para o júri.Esse quadro ainda era mais bonito de ver, se bem que exigisse uma prévia e meticulosa escolha de trincheira logo no início da noite. É que nisso os velhos davam-lhe a sério. Mesas e cadeiras voavam pelo salão entrecortados pelos gritos delas e o clássico som abafado de ossos a serem esmurrados. O grito de ataque era sempre o mesmo: QUEEEEM É QUEBATEUUU NO CHAVALLLE ? Era o sinal para eu e os outros miúdos nos atirarmos para debaixo de uma mesa próxima da saída e espreitar por entre as franjas da toalha. Sempre na mesma sequência: Apresentação, baile, o júri decide e Quem é que bateu no chaval. Durante anos, à Secta-feira à noite, antes de irmos para qualquer lado parávamos na Alunos De Apolo, escolhíamos um abrigo próximo da saída e ficámos a ver. Daí a algumas horas íamos para um concerto de rock e acabavámos a diversão à porrada com alguém. Como vêem, todas as gerações batem no chaval. Tocam é músicas diferentes...
ARTUR

sábado, 8 de dezembro de 2007

O ESPÍRITO do WESTERN

AJUDANTE - Xerife, a viuva do Gomez vai ter um filho.
XERIFE - Que sorte para a viuva do Gomez.
AJUDANTE - Mas, Xerife, Gomez morreu há mais de um ano.
XERIFE - Há homens que continuam a dar luta mesmo depois de mortos...

(Diálogo extraído do filme TWO RODE TOGETHER (1961) de John Ford

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

PORQUE ME APETECE

Era Sexta feira, duas da tarde, e o calor caía sobre o bairro transformando-o num tempo parado de forno de padaria. Tinha feito o meu último exame naquela manhã e digeria o depois do almoço com o Osga e o Nato à frente dos restos mortais de três bicas e duas macieiras. Ninguém falava, até porque o tempo não estava para grandes paleios, secava a boca e entontecia as mentes. A certa altura, alguém perguntou " O que é que vamos fazer a seguir?", seguindo-se um silêncio de meia-hora. Alguém sugeriu ir à praia sendo de imediato metralhado por uma série de olhares e comentários desaprovadores " Tás parvo? Já viste a seca que é ir daqui até à Maria Pia, apanhar o autocarro até lá abaixo, e depois o barco para a costa ou o kimbóio até Carcavelos? Com este calor? Tem juízo,meu.A mim ninguém me arranca daqui hoje. Nem me consigo levantar" - E duques!! - respondeu o resto em coro. Passou mais algum tempo no silêncio da precária esplanada, até que um chiar de pneus acompanhado por roncos de motor engasgado se começaram a ouvir antes da esquina, lá ao fundo. Alguém balbuciou : "Aquele deve ser o Pinta". E tinha razão. em breves instantes o Datsun 100A apareceu à nossa frente em trejeitos de flamengo metálico a chiar travões e a sacudir chapa. Estacionou. Na nossa direcção, o Pinta caminhava a passo seguro, melena solta, indiferente à brasa que nos tolhia de movimentos. Saudou-nos dobrando as perninhas de alicate dentro de umas bermudas folclóricas."Então, pessoal? boraí à praia?"- Repetimos-lhe o que já nos tinha ocupado o pensamento." Não faz mal. Vamos no carro do meu velho. O Milho tá na Costa na tenda dos pais dele e disse-me para irmos lá ter para passar o fim-de-semana"- Olhámos uns para os outros. Subitamente, uma agitação vinda de lado nenhum tomou conta de nós. Apressámo-nos a pagar e a correr para casa para ir buscar calções, bonés, latas de atum, etc.
Em meia hora o Datsun 100A corria pela ponte fora a caminho da Costa. Lá dentro algazarra sem fim, berlaites a circular desde o bairro, nuvem de fumo a saír pelos vidros tipo paquete de luxo a deixar a barra a caminho de um oceano de dois dias de praia. No "cantante" gritavam os Sex Pistols, Never Mind The Bollocks, a única K7 disponível até Domingo. Ninguém se importava. Gritava a plenos pulmões: I am a anarchist, God shave the Queen e, antes de virar para a estrada da Costa já o carro seguia rumo a uma galáxia perdida nos confins da nossa mente.
No parque de campismo encontrámos o Milho "Fds, não me f... a tenda! Fds, não me estraguem o pano!" e o estupido do Passarola, mais velho que nós, sempre armado em paizinho, com o riso mais imbecil que se pode imaginar. O Milho tomou conta das operações, distribuiu lugares para dormir na tenda dos pais dele, regras do parque e hora de fazer o jantar. Comunista de várias lutas, tratou de organizar a dispensa, etiquetar víveres, distribuír tarefas. Pelo caminho choviam mines, Sagres e Super bock,jogos de raquetes e berlaites à fartazana. O Osga, a certa altura, resolveu fazer de estátua. Colocou-se à frente da tenda atrás dos seus eternos Ray-ban,olhar fixo no infinito, polegar direito preso no bolso das calças, estilo James Bond da Picheleira. No meio daquilo tudo apareceu uma miúda. O Som vai logo de meter conversa, apresentar os amigos, és de onde, vais ficar cá no fim de semana, etc. O Milho e o Nato aqueciam o fogareiro, eu e o Pinta jogámos raquetes até ele bater com a testa num poste da tenda do vizinho e retirar-se de jogo prematuramente com um galo para resolver. O Som continuou a sua palestra a caminho de lado nenhum. Já toda a gente tinha visto que a miúda era muito novinha, do estilo só posso saír à noite até às dez, depois tenho de voltar para casa,isto é, para a tenda senão o barrigudo do meu pai vem atrás de mim e dá-vos uma coça a todos só com a mão esquerda. Era quase de noite se bem que o Osga continuasse de óculos escuros exactamente na mesma pose. Às tantas a miúda, o único ser lúcido de todo aquele quadro antropologicamente desesperante de urbanodepressivos em fase de descontracção, resolveu despedir-se. Disse até amanhã, gostei muito de vos conhecer, são uns gajos muito simpáticos.Só é pena aquele vosso amigo ali, além de não se mexer não diz nada.
Sentámo-nos para jantar umas febras assadas, vestimos umas sweatshirts para a humidade. Continuaram a caír mines e berlaites. Esquecêmo-nos completamente do Osga que lá continuava, óculos de Sol, na mesma posição. Quando já fumávamos o último antes de retirar para os sacos camas em estado quase comatoso, o Osga resolveu falar: Não digo nada??- cabeça para uma lado, cabeça para o outro.- Se calhar é porque não me apetece...
ARTUR

IRRACIONAL...NATAL!?




Angola, Zimbabwe, Congo, Darfur, Paquistão, India, Brasil, Filipinas e a lista continua até à exaustão e à náusea...O inferno é a ausência de Razão. Um grande Natal para vocês também...

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

DESTINO,LIBERDADE,CRIAÇÃO

Na montagem encontra-se o destino. A rodagem é livre...enfim, é-se livre de caír por terra. Depois encontramos o destino, e passa-se aquilo de que Sartre tão bem falou: a partir do momento em que a nossa sociedade fabrica o seu próprio destino, e chama a essa liberdade "destino", o destino volta-se contra ela e chama a essa liberdade "limitada". É neste limite que se exprime a criação.
Jean-Luc Godard

DESERTO ASTRALIANO


Fotografia de Sofia P.Coelho

domingo, 2 de dezembro de 2007

MEMÓRIAS DE LUZ

Passamos por aqui de uma forma tão breve que nos parece longa umas vezes, e curta na maioria das outras. Somos largados na Terra com a rapidez de um relâmpago que acende e apaga num milionésimo de um instante. De nós fica apenas o rasto, o testemunho da nossa passagem como o trilho de um cometa, que sabemos por onde passou mas que nunca conseguimos encontrar. Esse rasto de luz que fica, deixa pelo caminho dias de amor e ódio, de batalhas exaustivas de empenho e energia onde se ganha e perde, de palavras que alguém que virá atrás acabará por ler e saber onde estivémos.
Falei com a minha mãe por e-mail e ela contou-me dois ou três pormenores, histórias antigas do tempo em que ela me segurava ao colo e eu ainda ensaiava os movimentos no meu novo corpo estranho. Não me lembro de nenhum desses momentos mas a partilha deles foi o suficiente para me sentir tranquilo por instantes. Foi tudo tão rápido, passa tudo tão depressa que não há tempo para registar a maioria das coisas que realmente importam.
Guardei para mim então essa breve memória no longínquo ano de 1963 em que mãe e filho a bordo de um avião comercial que preparava a sua aterragem em Luanda estavam juntos. Ela segurava-o ao colo e mostrava-lhe a janela. Lá fora a cidade anoitecida brilhava em milhares de pequenas luzes. A mulher dizia ao seu filho : " Olha ali. Olha ali a nossa casa...estamos quase a chegar."
Olha, mãe. Estamos quase a chegar. Cada dia chegamos mais um pouco ao pé um do outro...
ARTUR

BEM VINDA POLÉMICA

Após o lançamento do último romance de Miguel Sousa Tavares (MST), “Rio das Flores” a polémica inaugurada mais atrás com Vasco Pulido Valente (VPV) a propósito do outro romance (“Equador”) ganhou novo ânimo, devidamente incitado pela Comunicação Social. Não vou aqui tomar partido ou sequer estar de acordo com quem quer que seja. Resolvi escrever esta crónica precisamente para saudar a polémica entre eles, na medida em que, com ela acontece algo de diferente no pântano da literatura portuguesa. E porquê? Porque sou leitor e apreciador do trabalho de ambos na medida em que reconheço o importante contributo que, cada um à sua maneira, deu à cultura portuguesa. Por mais defeitos que possam ter (e serão vários) ambos conseguem pôr milhares de pessoas a ler e despertar a curiosidade em outro tanto. MST abriu caminho com “Equador” à possibilidade de outros autores se poderem aventurar no espaço literário da reconstituição histórica como, p. ex., o aqui já referido “O Tempo dos Amores-Perfeitos” de Tiago Rebelo entre outros. O género, que não era nada de novo, com a popularidade de MST ganhou asas para outros voos e isso é sempre um facto bom de assinalar. Se a 1ª edição de “Equador” tinha algumas gralhas quanto á precisão histórica, melhor. Para alem de poderem vir a ser corrigidas em edições posteriores, passaram também a integrar conversas de café entre os leitores, amigos e admiradores. Outra grande vantagem dos romances de MST prende-se com o facto de os leitores terem uma possibilidade de (re) conhecer uma época não tão distante como isso da nossa História que se calhar de outro modo não se preocupariam em esclarecer, isto é, as últimas décadas do séc. XIX e a primeira metade do séc. XX.
Quanto a VPV, li dois títulos dele, dois tratados de História, sérios, limpos e intelectualmente honestos. O historiador simplifica (é essa a obrigação de qualquer cientista) o discurso histórico e torna-o acessível a uma maioria de pessoas, torna compreensível para aqueles formados noutras áreas, noutros departamentos de conhecimento.
Têm de comum pouca ou nenhuma tendência para seguir a carneirada, ser politicamente correctos ou sentarem-se à mesa da travessa que o Poder lhes possa estender. MST conseguiu um best-seller, vamos ver o que acontece no segundo. Melhor para ele. VPV não abdica de uma lúcida capacidade de análise nas suas crónicas do Público, irritado umas vezes, conformado outras, mas sempre fiel a si próprio e às suas convicções.
Saúdo esta polémica porque estou farto de ver a literatura, bem como quase todas as outras dimensões da nossa vida, serem tratadas como simples joguetes do diálogo entre a oferta e a procura; porque estou farto de que as livrarias insistam em tratar os livros como se fossem iogurtes ou batatas… PORQUE NÃO SÃO… têm o seu espaço próprio na edificação de uma civilização; porque estou farto de andar à procura de alguns clássicos e de me olharem com um ar de espanto como se estivesse a querer comprar guarda-chuvas numa livraria; porque estou farto de ver ilustres desconhecidos que de repente se tornam grandes escritores, ganham prémios e cujo único mérito é fazerem parte de uma pandilha institucionalizada que os promove e divulga…porque sim. Uma pandilha onde só entra quem eles deixam, só eles é que sabem e que julga controlar todas as entradas e saídas da Literatura Portuguesa; porque estou farto das santanettes que um dia acordaram e decidiram tornar-se escritoras como eu decido se levo esta ou aquela camisa vestida para a rua. Porque era giro e dava montes de piada e…; porque estou farto da tendência editorial que gosta de editar “o que está a dar” para depois se desculpar com a vontade do público; Mas qual vontade?? Tal como a opinião pública é aquela que se publica, as verdades do mercado são as verdades da feira onde vende mais quem mais alto gritar e espetar o produto na cara do cliente. É um jogo com cartas marcadas. Felizmente aumentou o nº de leitores, felizmente vão aparecendo polémicas que fazem as pessoas pensar, ter interesse, procurar. Felizmente há um espírito que não morre, antes definha mas não se extingue, como uma vela teimosa a resistir contra as correntes de ar. Felizmente há uma polémica que nos enquadra em torno de coisas que interessam como o descobrir da História, da Língua e da Identidade. Itens que não estão à venda em nenhuma feira nem em nenhum fornecedor perto de si.
ARTUR

sábado, 1 de dezembro de 2007

LOVE WILL TEAR US APART, AGAIN


Ian Curtis/ Joy Division/ Para desanuviar
ARTUR

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) passou pelo mundo como um raio de luz, intenso, brilhante e breve. Teve no entanto tempo suficiente para nos deixar uma obra onde genialidade e criatividade se entrelaçaram num bailado sublime que os Deuses nos deixaram observar por uma nesga da sua porta.
Uma das formas mais completas de abordar a sua obra deve ter em linha de conta três vectores fundamentais, ou seja, a ficção em prosa, a poesia e o movimento do Orpheu.
Mário de Sá-Carneiro inicia a sua carreira individual como contista (Princípio (1912); A Confissão de Lúcio (1914); Céu em Fogo (1915)), e só a partir de 1913, em Paris, principia a sua actividade poética (Dispersão (1914); Indícios de Oiro (1937)).
De uma forma geral a sua obra tem como tema central a crise da personalidade, bem como a inadequação entre o que se sente e aquilo que se desejaria sentir. Tanto em Céu em Fogo (novelas), como na Confissão de Lúcio (romance), o que sobressai é a ideia de um tédio enorme perante um quotidiano banal e insuportável; uma fuga para mundos fantásticos ou quiméricos onde a obsessão pela morte e pelo suicídio são as únicas soluções encontradas. A ficção em prosa revela não só a dramática dissociação entre a realidade e a idealidade como também a permanente compulsão do autor para a ultrapassagem de si próprio enquanto mera pessoa social e existencial, ao contrário, visando o excepcional, o raro, o singular, o maravilhoso. Para isso socorre-se da invenção de um mundo quimérico e fantástico, vislumbrado através de uma imaginação essencialmente sensorial e estética. Mas a construção do fantástico, ao invés de se deter pelo lado mítico ou sequer do sobrenatural, antes explora a magnificação das sensações, percepções e sentimentos. Esta magnificação ou delírio sensorial, obtido porventura através do álcool ou do ópio, era uma caminho já antes trilhado por desiludidos como Baudelaire e Rimbaud ( poetas simbolistas e decadentistas), além de Camilo Pessanha e Eugénio de Castro, referências de influência na obra de Mário de Sá-Carneiro. Ao aspirar por mundos quiméricos, espantosos, alucinatórios, etc, os criadores acabam por tropeçar de novo num mundo implacável e que, rejeitando toda e qualquer infracção à sua norma, traz consigo a marca da frustração universal.

O ORPHEU
Mário de Sá-Carneiro deve ter conhecido Fernando Pessoa, de acordo com António Quadros, entre o Inverno de 1911 e o Outono de 1912. Passando o primeiro a maior parte do seu tempo em Paris e tendo o segundo formado a sua adolescência na África do Sul, juntos formarão a alma do último grande movimento estético e artístico no nosso país: a escola modernista portuguesa. A eles juntam-se nomes como Luís de Montalvor, Armando Corte Rodrigues, Guilherme de Santa Rita ( ou, Santa Rita pintor), Raul Leal, José Pacheco, António Ferro, Almada Negreiros, Augusto Cunha ou Alfredo Guisado entre outros. O grupo vive durante um breve período um clima de verdadeira exaltação criadora, não só rara entre nós, mas realmente ao ritmo febril da Europa de então. Alguns viveram por sua própria conta todo o entrechocar de tendências que tinham irradiado de Paris, que receberam em Lisboa uma interpretação extremamente original. É extremamente particular o futurismo de Pessoa e de Almada, de Santa Rita Pintor ou do próprio Sá-Carneiro que o ensaia no poema "Manucure". Santa Rita, Amadeu de Souza Cardoso, Almada Negreiros ou Eduardo Viana fazem experiências cubistas, por vezes logradas e com a marca de um carácter muito portuguêss, mais moderado na concepção embora muito mais vivamente cromático, no caso dos três últimos.
Toda esta agitação do grupo atinge o seu clímax em 1915, ano em que aparecem as novelas Céu em Fogo, o ano em que Sá-Carneiro escreveu a maioria das suas poesias postumamente publicadas sob o título Indícios de Oiro, o ano do Orpheu.
O primeiro nº, saído em Março de 1915, foi um tremendo êxito. Onde a opinião pública encontrava claros sinais de degenerescência, facilmente se conseguiu também reconhecer que as suas atitudes correspondiam a um sentimento geral e ainda latente de crise. Particularidades de formação e de temperamento relacionáveis com uma maior instabilidade social, e com influências cosmopolitas mais ou menos directas, haviam-nos alheado, tanto do idealismo republicano como das reacções críticas que ele despertara. O segundo nº sai em Julho do mesmo ano, mantém o êxito mas a Sá Carneiro dá-lhe o amok e regressa a Paris. O seu pai, o financiador da publicação destes dois números, comunica-lhe que se voltou a casar e que embarcava para Moçambique, sendo-lhe impossível continuar o financiamento. O Orpheu termina nesse momento.

A POESIA
É nos últimos tempos de vida que se desenvolve a sua veia poética em todo o seu esplendor. "Caranguejola", "Crise Lamentável" e "Fim" são a testemunha de uma angustiosa cisão interior, de que o poeta teve lúcida consciência e com a qual travou uma constante luta. Luta que constitui a própria matéria dramática da sua obra. Ao lado da sua pulsão para a morte e o suicídio coexistiu na psique do escritor um complexo de Eros, um desejo de vida, de realização humana e de amor. E se o primeiro acabou por triunfar, o certo é que Mário de Sá-Carneiro o enfrentou, o desafiou e tudo fez para o vencer.
Com os mitos órficos, segundo os quais os homens, nascidos dos restos dos titãs, destruídos por Zeus por terem morto o seu filho Dióniso, de cuja carne provaram, possuíram pois uma dupla natureza, atitânica ou terrestre e divina. O conhecimento transmitido aos iniciados nos mistérios órficos, segundo o ensinamento do Orpheu, tinha uma finalidade moral, a de combater o titânico ou terrestre no humano, para fazer triunfar o divino. Pessoa e Sá-Carneiro foram pois poetas de inspiração órfica, no sentido grego e iniciático, o que dá uma outra consistência ao título da sua revista.
Os poemas do livro "Dispersão" são a relevância do diálogo entre Simbolismo e Modernismo. Ou o poeta se desespera por não conseguir alcançar o celeste, o divino, o feérico ou o ideal, embora julgando que no seu delírio poético se aproxima; ou pelo contrário se angustia ou mesmo desespera porque não se adapta à vida e à sua própria personalidade existencial de homem gordo, desajeitado, socialmente desintegrado.
Mimado na infância e filho único, julgou-se um predestinado para grandes feitos, só que o choque com a realidade desorientou-o.

O FIM
Sá-Carneiro foi o primeiro a sucumbir desta aristocracia de mentes iluminadas à procura de um espaço áureo e rarefeito, inacessível ao comum das pessoas, mas que correram o risco real de perecer. Toda a sua poesia testemunha essa tentativa de voar até ao Sol, como Ícaro, e ao mesmo tempo a sua autodestruição.
Raul Leal soçobrou também, na perturbação de um desequilíbrio mental não deixando de exibir intuições fulgurantes acerca do “paracletanismo” de que se considerava representante.
Luís de Montalvor, desaparecido tragicamente no afundamento do seu automóvel no Tejo, ter-se-á ,segundo alguns, suicidado.
Armando Corte Rodrigues encontrou refúgio na dedicação à cultura açoriana.
Almada Negreiros salva-se através do seu casamento com Sarah Afonso e com um furor expressional e megalómano que, iniciaticamente, desembocou no encontro com a sabedoria grega e com a procura do número do ouro.
Fernando Pessoa foi o precursor de uma iniciação psicológica-alquímica, através das transmutações dos heterónimos que o protegeram de uma queda mais rápida. Para ele o álcool foi um suicídio lento, enquanto que, para Mário de Sá-.Carneiro, a estricnina foi um suicídio rápido.
Estivemos a falar, ainda que de forma muito breve e superficial, acerca da última grande geração portuguesa de artistas, geração essa na qual Mário de Sá-Carneiro foi sem dúvida o Príncipe.
ARTUR