quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

CINEMA EUROPA

  
                                            
Ficava numa esquina, ou num cruzamento de duas ruas estruturantes do bairro de Campo de Ourique. O Cinema Europa, tal como a Europa propriamente dita, situava-se numa encruzilhada de caminhos inevitáveis, conhecidos, familiares, rotas batidas diariamente por quem habitava aquelas paragens. Para quem habitava a aldeia dentro da cidade era, de certo modo, o "rio que passa na minha aldeia". Visto com os olhos da infância e da adolescência era belo, misterioso, encerrando em si segredos a que um simples bilhete dava acesso. Nunca exibia as novidades cinematográficas; essas ficavam para os grandes cinemas do centro da cidade, os da Baixa ou das Avenidas Novas. Era, a seu modo, o mais belo cinema de Lisboa. O Paris, que nunca vimos aberto e a funcionar, era apenas uma relíquia de outros tempos, uma pré-ruína que se postava como sentinela muda nos limites do bairro. Muda mas eloquente no seu silêncio; constituía uma antevisão da ruína que ameaça e coloca em crise essas salas de bairro, as vivências daqueles que as frequentaram e a função social que desempenharam. Na sua beleza austera e fanada olhava para os crimes do futuro com uma indiferença mortal.

No curto romance "A Estrada", de Cormac McCarthy, uma das personagens chega a uma grande cidade e observa um edifício de ar austero e oficial, sobre o qual se inscreve em letras capitais a palavra "MUSEUM". Essa palavra para ele desconhecida, como que escrita numa língua ignorada vinda de outro planeta, adquire conotações fatídicas e solenes. Não conhecendo o significado, qualquer coisa no seu corpo reage com uma intensidade visceral, primária, encontrando um eco profundo no seu íntimo. Talvez todos tenhamos "museus" nas nossas vidas, palavras mágicas cujo sentido nos desconcerta, mas que nos sugerem e prometem acepções bem mais grandiosas e terríveis. As minhas foram "Cinema Europa", escritas na fachada de um velho e decadente cinema de bairro.

Os cartazes e as fotografias mudavam semanalmente, anunciando um filme que seria projectado num futuro próximo, provavelmente na semana seguinte, prometendo um novo mundo inimaginável, evocando tesouros desconhecidos e inquantificáveis. E os nomes também eram misteriosos. Mau grado todos os meus esforços, não chegava a compreender alguns dos títulos, tinha nove ou dez anos, e embora conhecesse algumas das palavras, o modo estranho como se juntavam e o sentido desses títulos escapava-me inteiramente. Mais tarde, com treze, catorze anos, deixava de procurar esse sentido e abandonava-me a uma espécie de indiferença semântica, para fruir apenas a curiosidade que suscitavam. Agora, que passaram milhões de anos, essa época longínqua, vista com uma espécie de estupidificante veia analítica, parece-me quase anedótica. Alguns desses filmes, vistos com a lupa da chamada "idade da razão", desmerecem a solenidade e mistério dos títulos, dos cartazes e das fotografias. De certo modo, essa memória em ruínas permite-me constituir uma categoria de filmes à parte, a que chamaria "os filmes impossíveis". De todo o modo, essa memória da ruína é um reflexo das ruínas daquilo que fomos, daquilo que somos, da ruína do próprio cinema Europa.

O que era então esse tão grande mistério exalado pelos títulos dos filmes ? Creio que uma parte da excitação tinha a ver com a linguagem - essa linguagem não familiar anunciando um evento ainda desconhecido. Repetir as palavras uma e outra vez na esperança de que um sentido se destacasse fazia parte do ritual. Era como a infância de Guido no "8 1/2" de Federico Fellini: Guido e os seus irmãos, irmãs e primos assustavam-se uns aos outros, fruindo cada segundo, repetindo "Asa Nisi Masa" na esperança de fazerem aparecer os espíritos. Se bem que tal não me tivesse ocorrido na altura, poderia ter perguntado aos meus pais o significado dos títulos. Mas isso não teria resultado. Talvez eu gostasse justamente do mistério por ser indecifrável. Como indecifrável era para mim na altura o baixo relevo de uma bela mulher cavalgando um touro e rodeada de estrelas. "Os Sete Samurais" - o que eram samurais ? porquê sete ? "2001: Odisseia no Espaço" - o que era uma odisseia ? e por aí fora, eram signos de um enigma que o adulto de hoje coloca no pensamento do adolescente de então: como é que é possível que duas ou três palavras possam veícular noções complexas (quaisquer que fossem, por exemplo "odisseia no espaço", de que não tinha nenhuma ideia na época). A linguagem, sei-o hoje seguramente, não é inesgotável e infinita nas cambiantes de sentido que procura criar. Será que um dia os títulos se esgotarão devido às reservas limitadas de palavras e possibilidades de as conjugar ? Mas continuam a sair títulos, fenómeno que não parece ter fim. Excepto no Cinema Europa.

Esses signos e esses talismãs (as fotografias, os cartazes, o próprio cinema) da nostalgia que têm uma vida autónoma, não deveríamos descartá-los. Foram fetiches e, ao mesmo tempo, depósitos de nostalgia, tão misteriosos e saturados de sentidos inteligíveis e de desejos indíziveis como "Rosebud". Somos todos nostálgicos de coisas que não voltarão a pertencer-nos. É por isso que as devemos acarinhar tão intensamente.

Tento recriar a sensação da velocidade de um comboio no momento em que ele inicia a viragem. Nos últimos tempos tenho-me posto à procura desses filmes, como se fossem um código que posso decifrar e com os quais podia aprender qualquer coisa acerca de mim, do mundo, dos outros. A única coisa que descobri foi que alguns são muito bons e tornaram-se os meus preferidos - mas isso não quer dizer praticamente nada. O sentimento que me provocam não tem nada a ver com as associações extra-curriculares que os concernem. O Cinema Europa flutua no espaço, desligado de todas as leis da física, desligado do todos os crimes que se cometem diariamente em nome do progresso, desligado de todas as amarras que o prendiam a um bairro onde há muito não habito.


2 comentários:

Anónimo disse...

Não sei como classificar este texto: é belo, poético e muito, muito estranho. Acorda em mim ecos longínquos, saudades do passado, sonhos provindos de uma época ao mesmo tempo próxima e remota. Deu-me vontade de chorar um pouco e, simultaneamente, remete para uma felicidade pequena, tímida e inconsequente. Fez-me pensar, pensar muito...

Uma fã anónima

Hélder disse...

Obrigado Arnaldo por mais esta deliciosa partilha. A minha segunda infância decorreu numa terra de província onde os filmes de sexta e sábado eram anunciados semanas antes em grandes cartazes, anos depois de terem sido feitos, mas mesmo assim aguardados sofregamente por quem gostava da Sétima Arte. Campo de Ourique nessa altura, pertencia para mim a um outro universo mais farto, algo estranho e atraente, onde ia anualmente visitar familiares. Abraço!