sábado, 21 de dezembro de 2019
terça-feira, 10 de dezembro de 2019
O TAXI 9297
O TAXI 9297
Reinaldo Ferreira
Portugal, 1927
Já várias vezes fizemos
referência neste blog tanto a Reinaldo Ferreira (o famoso Reporter X) como ao
seu carismático filme, O TAXI 9297. Talvez pela relevância de uma obra ímpar ou
talvez por se tratar de uma época que teve tanto de fascinante como de pouco
divulgada (os anos 20 em Portugal) o certo é que todas as razões são boas para
voltar a estes temas. No caso de hoje trata-se de uma edição da Cinemateca (2017), um DVD de
digitalização Ultra HD de restauro em 35mm com acompanhamentos musicais ao
piano inéditos por Filipe Raposo. Além do filme O TAXI 92927, esta edição
inclui ainda como complemento a curta-metragem RITA OU RITO?... de Reinaldo
Ferreira e o ensaio audiovisual OS MOTIVOS DE REINALDO de Ricardo Vieira Lisboa
sobre os filmes do Reporter X bem como uma brochura ilustrada de 64 páginas com
textos em português e inglês.
Por todas estas razões, se não em
termos absolutos pelo menos em grande parte, acabaremos forçosamente por empreender uma fascinante e ilustrativa
viagem ao tempo e à obra de uma dos maiores criadores/cronistas/artistas de uma
época alucinante onde, entre outras particularidades ( e como escreveu o meu
amigo Arnaldo Mesquita) "o tempo histórico ultrapassou em grande
velocidade o tempo cronológico".
O filme propriamente dito não é
um documento isolado mas apenas uma parte de um universo muito mais extenso que
tem como ponto de partida a realidade. Em Março de 1926 o misterioso
assassinato da actriz Maria Alves faz disparar o imaginário da sociedade e a
especulação da imprensa. Entre a teoria de um clássico assalto que evoluiu para
um homicídio e o simples assassinato por alguém que era próximo da actriz a
opinião pública divide-se. Do lado desta
última versão está o jornal O Século e a revista ABC, espaço onde o repórter
Reinaldo Ferreira desenvolve a sua teoria dando a entender que o culpado seria
o empresário António Gomes, amante da actriz. Suspeita seguida pela policia que
mais tarde vem a confirmar prendendo o dito empresário. Partindo deste ponto
Reinaldo Ferreira salta rapidamente da forma da reportagem e escreve uma peça
de teatro acerca deste episódio, mais tarde realiza o filme. No início do filme
podemos ler a legenda: "Não se trata de um decalque do dia a dia. O autor
pede que acreditem na sua fantasia". E este é o espírito de Reinaldo
Ferreira que vai construíndo uma novela policial com os olhos do repórter que
relata a realidade. Ficção e realidade percorrem então a mesma linha, ocupando
o mesmo espaço.
O TAXI 9297 torna-se uma
referência a vários níveis na medida em que se desenvolve entre a vanguarda e a
experimentação. Embora ilustrando uma realidade cosmopolita, exótica e vibrante
afastada do realismo, mergulha a fundo nos meandros de uma sociedade mundana
enredada nos seus jogos de ambição e declínio, sem deixar nada por mostrar.
Como as pernas nuas das coristas do teatro onde Raquel Monteverde trabalha ou o homossexual que se injecta no palacete do
Bretolho, sendo esta última imagem repetida outra vez no cinema português no filme VIDAS de António da Cunha Telles quase
sessenta anos depois. Para a ficção transporta-se a verdade com que se convive
todos os dias na actividade jornalística febril. Mas esta realidade ficcional
de Reinaldo Ferreira corresponde também a uma sociedade dos anos 20 em
Portugal. A originalidade está na forma como é apresentada através de
artifícios espectaculares, planos simples mas ousados e de grande aproximação
com as personagens, economia narrativa, utilização de elementos da linguagem
cinematográfica pouco conhecidos até então (o flash back final).
Bem recebido tanto pelo público
como pela crítica a breve obra cinematográfica de Reinaldo Ferreira viria a
ecoar nas futuras gerações. Em 1983 Eduardo Geada transformou a história do
taxi 9297 num dos episódios do seu filme SAUDADES PARA DONA GERENCIANA. Três
anos depois REPORTER X de José Nascimento retrata um biografia ficcionada de
Reinaldo Ferreira prestando-lhe dessa forma a devida homenagem da sua
modernidade.
Porque ao pegar numa tragédia real
sob a forma de tratamento jornalístico e ao transformar esse mesmo
acontecimento trágico numa novela e depois num filme, o que Reinaldo Ferreira
faz é multiplicar e estimular as várias dimensões da imaginação colectiva.
Artur
segunda-feira, 9 de dezembro de 2019
domingo, 8 de dezembro de 2019
CONVERSAS COM UM MELRO
Fora de
horas, aproveitando uma pausa, esgueiro-me sorrateiro até à janela da cozinha e
acendo um cigarro julgando que ninguém está a ver. Nem eu. Às vezes o melro da
rua anda na sua correria diária para trás e para a frente. Quando me vê resolve
também ele fazer uma pausa e vem até ao parapeito da janela. Falamos de tudo e
mais alguma coisa, como é que vai a vida de cada um, a saúde, as doenças, o
tempo e tudo aquilo que costumam falar dois seres vivos quando calha
encontrarem-se a meio de uma pausa comum. Da última vez andava angustiado com o
esforço que tinha que fazer para alimentar a descendência. Os filhos eram uns
galfarros que nunca estava satisfeitos. Sempre de boquinha aberta para comer
mais nem que se lhes tivesse acabado de enfiar um boi pela goela abaixo. Isso
foi no princípio do Verão. Agora já voam sozinhos e procuram comida para eles.
Pergunto por onde andam. Foram com a mãe aprender a utilizar as correntes
ascendentes e a poupar energia das asas. Ele tinha estado no relvado do jardim
a apanhar umas minhocas para o almoço. Insiste que tenho que deixar de fumar,
que é uma estupidez insistir. Concordo com ele mas não me apetece, não de forma
definitiva. Ele diz que desde que deixou que se sente muito mais saudável. Tem
muito mais resistência, a comida sabe-lhe melhor e todas aquelas banalidades
que diz um ex fumador. Vou buscar uma bolacha de chocolate e ficamos ali mais
um bocado à conversa, eu a beber café e ele a depenicar migalhas.
Pego noutro
cigarro e acendo-o. Ele fica a olhar para mim inclina ligeiramente o pescoço e
pede-me muito educadamente uma "passinha". "Então não tinhas
deixado de fumar?" É verdade…mas é só para matar o vício. E fica ali com o
cigarro esquecido na boca, o que me leva a acender outro para mim. Continuamos
a conversa. Na Primavera os filhos devem estar autónomos e prontos para partir
para a vida deles. Tem uma boa casa ali na árvore grande da rua mas os invernos
dão-lhe cabo dos ossos. Também a mim, queixo-me eu solidário. E o mundo? Nem
vale a pena perder tempo com isso. Parece que tudo resolveu andar para trás.
Fantasmas do passado encarnaram sólidos e tomaram conta dos nossos medos.
Qualquer dia estamos a viver outra vez em plena revolução industrial sem darmos
por isso. Que importa...? As nossas vidas, bem ou mal vão passando, a velhice
vai-se instalando e adormecendo-nos a revolta. Outros virão que resolverão as
coisas. Nós só queremos que o Inverno passe depressa e que os ossos não
guinchem muito. Mal ou bem, fizemos aquilo que podíamos fazer. Mais coisa menos
coisa, amanhã será outro dia, e outros dias se seguirão até àquele em que já
não estaremos cá para o contar. Restam as nossas conversas na janela da
cozinha, histórias relembradas, uns cigarrinhos escondidos de vez em quando nas
pausas do recreio. O meu amigo despede-se e arranca em alta vibração de asas. O voo flecte ligeiramente para a esquerda, aponta a um poste da luz, endireita rapidamente. Já não está habituado a fumar, ficou meio tonto. A vida faz tanto sentido como um homem a fumar um cigarro
com um melro na sua janela da cozinha enquanto conversam. E que outro sentido
poderia ela fazer?
Artur
sábado, 7 de dezembro de 2019
quinta-feira, 5 de dezembro de 2019
terça-feira, 3 de dezembro de 2019
THE IRISHMAN
THE IRISHMAN
Martin Scorsese
EUA, 2019
Estreado em 27 de Setembro deste
ano no New York Film Festival, THE IRISHMAN trazia na sua posse todos os
condimentos para rapidamente se tornar uma obra-prima (mais uma) para a
colecção de um dos mais importantes realizadores de sempre. A começar por um
elenco de luxo (Robert de Niro (Frank Sheeran), Al Pacino (Jimmy Hoffa), Joe
Pesci (Russell Bufalino)), abordando um dos mitos mais marcantes da história do
submundo (o misterioso desaparecimento de Hoffa em 1975 sem que fossem
encontradas quaisquer pistas da sua morte ou assassinato), atravessando
momentos decisivos da História americana nas décadas de 50 a 70 (eleição e posterior
assassinato do Presidente Kennedy,o episódio da Baía dos Porcos, a perniciosa
relação do submundo do crime com as mais
altas instâncias do poder). Já bem avançados na casa dos 70 todos estes
dinossauros do Cinema conseguem construir um monumento fílmico que ficará na
história dos filmes de gangsters como referência incontornável. O recurso ao
processo CGI (Computed Generated Imagery) que permite rejuvenescer os actores,
além do reforço realista que emprega ao filme permite aproveitar o mesmo rosto
e o mesmo corpo dispensando a utilização de duplos. Um efeito especial sempre
estranho de observar se bem que ver de Niro com olhos azuis não deixa de fzer
alguma confusão.
Baseado no livro "I Hear You
Paint Houses" de Charles Brant, o que na realidade o filme nos vai
contando é a vida e o percurso de Frank Sheeran, um dos poucos não italo
descendentes a integrar os cargos mais elevados da organização da Cosa Nostra,
tal como publicado pelas autoridades norte americanas, ao lado de pesos pesados
como Anthony "Tony Pro" Provezano ou Anthony "Fat Tony"
Salerno. Nas suas memórias, entre outros feitos, Sheeran reclama para si a
autoria da morte de Jimmy Hoffa o lendário presidente do sindicato dos
camionistas e também alto quadro do crime organizado misteriosamente
desaparecido no Verão de 1975 na região de Detroit sem qualquer pista deixada
para trás acerca do seu desaparecimento. Uma verdade que ainda hoje e talvez
nunca mais se irá conseguir esclarecer. É um Sheeran em fase final de vida
(morreria aos 83 anos em 2003) que nos vai dando a sua versão de uma vida no
submundo do crime iniciada pouco depois de regressar da II Guerra quando se
encontra com o advogado Russell
Bursalino e é introduzido através dele nas fileiras da mafia de Filadélfia. É
aí que vai conhecer lendas como Felix Di Tullio (Bobby Cannavale) ou o
"Gentle Don" , Angelo Bruno (Harvey Keitel). Lendas que o realizador
faz questão de nos apresentar acompanhados da legenda onde figuram os seus
nomes a data e a forma como morreram. No final dos anos 50 Sheeran é
apresentado a Jimmy Hoffa, sendo ele e Bursalino os seus dois grandes mentores
de referência para o resto da vida. Acompanhando Hoffa, o irlandês passa
rapidamente de guarda costas/ assessor/ secretário a dirigente sindical
mantendo-se sempre na sombra do presidente. Uma grande amizade acabará por se
formar entre os dois, amizade que durará duas décadas e terminará abruptamente quando Sheeran é
encarregado de abater Hoffa. Pelo meio fica uma longa narrativa do baile ente o
poder e o submundo do crime, eleições forjadas, extorsão, assassinato de presidentes,
tentativas de golpes de estado em países estrangeiros mais uma imensa panóplia
de actividades e acontecimentos onde dois mundos se interpenetram de forma
subversiva. Depois de um período na prisão Hoffa volta à liberdade empenhado em
recuperar a presidência do "seu" sindicato. No entanto os tempos
mudaram e com eles a conjuntura. É do interesse "geral" que Hoffa se
retire e vá gozar a sua reforma. Mas Hoffa é teimoso e não ouve ninguém, nem o
seu há muito "braço direito" que não se cansa de o avisar. "Eles
estão preocupados. Não! Eles estão mesmo muito preocupados." É esta
linguagem codificada, toda esta forma muito própria como os assuntos são
debatidos, as reuniões e os pequenos pormenores que vão decidindo o destino de
cada um. Uma linguagem que Scorsese domina de uma forma elegante e eficaz. Todo
o filme acaba por ser uma fantástica sinfonia de talento. Qual intriga de Cúria
Romana, Hoffa é abatido por um dos homens da sua maior confiança.
Sheeran terminará os seus dias em
diálogos escassos com um padre e a tentar reconciliar-se com uma das suas
filhas que nunca mais lhe falou quando percebeu que tinha sido ele a abater o
seu melhor amigo. As revelações acabam por se deixar ver num tempo em que já
todos, ou quase todos, desapareceram.
THE IRISHMAN é um colosso no que
ao género de filmes de gangsters diz respeito. Violento sem derramar violência
gratuita, subversivo sem se enredar no folclore das teorias da conspiração,
dramático e humano no que à análise dos defeitos e das culpas diz respeito. As suas três horas de duração
passam a correr sem darmos pelo tempo.
Artur
quarta-feira, 27 de novembro de 2019
terça-feira, 26 de novembro de 2019
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
sexta-feira, 22 de novembro de 2019
CARTA A UM AMIGO EM VIAGEM
Hoje dei conta que era o dia do
teu aniversário e lembrei-me de ti. Verdade seja dita, não passa uma semana em
que não o faça. mas não te vou telefonar porque sei que não atendes nem te vou
bater à porta porque sei que não estás em casa. Estás num lugar qualquer em
paradeiro indeterminado. Ás vezes vejo-te como alguém que morreu há muitos
anos, outras como um tipo que estando vivo não anda por aqui. Vou sabendo
vagamente de ti por pessoas do bairro que às vezes se cruzam contigo na rua. Mas
hoje, talvez porque é o teu dia de anos, apetece-me falar contigo, recordar
algumas coisas, nem que toda a nossa conversa não passe de um monólogo.
Queria-te dizer que há tempos
falei com alguém que me desenhou em forma de alegoria o teu estado de saúde.
Uma forma simples e bastante convincente que me deixou definitivamente
esclarecido. Dizia-me então essa pessoa: "Imagine que ele tomou um ácido e
entrou numa viagem da qual se recusa a voltar. Nesse estado ele é como um
comboio que em vez de numa, progride em várias linhas ao mesmo tempo. Tendo
consciência da realidade tem também noção de uma série de realidades paralelas
à nossa." E tudo passou a ser (ainda) mais claro para mim.
Eras um tipo genial, o mais
inteligente de nós todos, não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Demasiado grande
para a vidinha de todos os dias, demasiada inteligência e demasiada lucidez
para um homem só. Escreveste coisas completamente fora da caixa, coisas que nos
deixavam perplexos ao primeiro contacto sem saber o que dizer ou pensar, coisas
que se tornariam realidade décadas depois. Juntos escrevemos um policial
esotérico a meias que ainda hoje me consegue surpreender. A meias, é como quem
diz…tu deste-me o desenho completo e eu pintei à volta. Com a aproximação de
mais um Natal lembro-me que a tua primeira narrativa foi uma peça de teatro em
torno da parábola do"filho pródigo" para a festa anual da igreja. Eu
era um dos actores. No fim o drama terminava em reencontro e reconciliação e
saltava directo para um quadro do Presépio utilizando os actores da peça como
figurantes. No primeiro dia para as idosas do centro de dia, no segundo para os
miúdos da catequese. No dia dos miúdos houve um na primeira fila que mandou uma
boca ao Pentes que fazia um dos reis magos. "Olha um rei mago todo
"joli" com uma risquinha ao meio…" Ao que o Pentes respondeu
entre dentes: "Vê lá se queres levar com o incenso nos cornos?" Um
bando de miúdos a representar para uma multidão de miúdos ainda mais pequenos
que nós. Às vezes gostava de voltar àquele tempo nem que fosse por dois dias.
Gostava de voltar às nossas gargalhadas, às nossas festas de fim de semana, a
fumar umas ganzas, a me apaixonar para a vida toda e, sobretudo a voltar a ver
uma data deles que tiveram que sair mais cedo. Tenho saudades. A vida
transcendeu-nos, a morte transcende-nos. Só as memórias e as emoções conseguem
transcender tudo o resto.
Mas eu acho que não é preciso
viajar no tempo para voltarmos a ser miúdos. Acho mesmo que nas várias linhas
que o teu comboio percorre, há uma estação. Uma estação onde estamos todos a
sacar os cabos e a aparelhagem da loja de antiguidades do Batista e a montar o
estaminé para mais uma festa. Nessa estação, onde tu de certeza já paraste
algumas vezes, deves saber que estamos à tua espera, que sentimos a tua falta e
que sempre fomos teus amigos. Eu sei que tu não te esqueceste disso. Tal como
os Pink Floyd nunca se esqueceram do Syd Barrett em cada album que editavam.
Por isso peço-te que de vez em quando faças uma passagem nessa estação e fiques
lá por um bocado.
Não te telefono porque sei que tu
não vais atender, não te vou bater à porta porque sei que não estás em casa. É
tudo uma questão de oportunidade. A possibilidade de estar na mesma estação ao
mesmo tempo que tu. E encontrarmo-nos outra vez… E começar a conversa como se a
tivéssemos deixado pendurada no varal na noite anterior. E voltar a rir desta
peça tão mal escrita em que fomos personagens à força. Esta peça onde tu de vez
em quando te escapas para as traseiras do teatro para fumar uma ganza e
imaginar outros mundos muito mais interessantes, aventuras muito mais
divertidas e cenários muito mais atractivos que os teus contemporâneos só vão
conseguir ver daqui a umas décadas.
Parabéns xaval
Artur
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
terça-feira, 19 de novembro de 2019
O TEMPO
Sofia
"O Tempo não sabe nada, o Tempo não tem razão...
O Tempo nunca existiu, o Tempo é nossa invenção...
Se fecharmos os olhos não nos sentimos sós,
Meu amor, o Tempo somos nós..."
Jorge Palma
quinta-feira, 17 de outubro de 2019
INVICTUS
Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.
In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.
Beyond this place of wrath and tears
Looms but the horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.
It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.
William Ernst Henley
(1849 - 1903)
sexta-feira, 11 de outubro de 2019
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
1450 cm3 de João Nuno Teixeira
"Quem proclama uma teoria do progresso coloca-se irremediavelmente a si mesmo como participante, portador e ponto de culminação no drama do progresso. Quem mostra uma teoria da decadência faz-se valer a si mesmo como um afectados pelo drama da decadência, quer seja como aquele que protesta, se resigna ou aguenta. Quem diagnostica renascimentos ou épocas de mudança põe-se a si mesmo em jogo como parteira, como piloto da mudança ou até como candidato à reencarnação. E quem profetiza a ruína, declara-se como moribundo, como quem ajuda a morrer, como carpideira ou, por fim, como explorador dos restos da cultura que está agonizante."
Peter Sloterdijk
Ante este estranho e fascinante objecto - e chamo-lhe "objecto" à falta de outro substantivo que o possa subsumir, visto que o próprio autor o classifica como um "não-livro" - confesso-me incapaz de constituir um discurso crítico, pelo menos no sentido tradicional e clássico que o cânone atribui a "crítico".
Assim, sinto-me tentado a classificá.lo como uma dose massiva de lucidez, um tipo de clarividência que o mundo contemporâneo parece rejeitar, mergulhado que está na estupidificação maciça e numa deriva que parece conduzir-nos para a apatia ou ataraxia generalizada, impelindo-nos para um beco sem saída ôntico e para um abismo para o qual corremos com brio e denodo, uivando alegremente com os lobos.
O projecto insano e maravilhoso de reescrever a História da Humanidade, a que o João Nuno se entrega com uma intensidade que é difícil ignorar e que somos compelidos pela leitura a acompanhar, não se compagina de nenhum modo com facilitismos e imediatismos. Requer, pelo contrário, que punhamos na leitura e na constituição do sentido o mesmo tipo de intensidade, o mesmo despojamento de regras, a mesma indiferença em relação a padrões que constituem o âmago de uma obra literária (objecto, não-livro, texto, tessitura, aquilo que entendermos que é) que está na sua génese e que prefere ignorar os limites e estabelecer o seu próprio padrão, a sua singular e irrepetível métrica.
A pergunta que me perseguiu desde a primeira leitura (e que não se atenuou com a segunda, e muito menos com a terceira) é : existirá uma modalidade rigorosamente lógica e demonstrável do conhecimento humano sobre esse mesmo ser humano que conhece ? A resposta de "1450 cm3" parece ser - arrisco.me mesmo muito nesta hipótese - não, não existe. Apontando para aquilo a que Hermann Broch chamava "desintegração axiológica, João Nuno Teixeira sustenta um mundo, uma "humanitas" que não é passível de ser representada como uma totalidade fixa, estável e para sempre cognoscível, afirmando que a suposta perenidade da condição humana, em vez de garantir essa mesma estabilidade, se constitui como o ponto de partida de uma interrogação permanente, de uma problematização que não cessa; Adão não acaba de acabar, coexiste permanentemente com os seus duplos e, até, com a sua negação.
Queira ou não queira o autor - e muitas vezes os autores não sabem exactamente aquilo que querem ou querem o contrário daquilo que obtêm - aquilo a que chega é à posição de um sujeito epistemológico e à constituição de um campo de observação que representa a personalidade humana na sua abstracção mais extrema, o que é equivalente a dizer: na sua concretude mais radical.
As pressões a que o autor sujeita a linguagem roçam por vezes os limites da inteligibilidade. É um risco assumido: desconstruir as estruturas linguísticas para depois as reconstruir indica uma incansável vontade de reconstituir o mundo através da linguagem e assim fazer com que esta "fale". Atente-se nesta passagem (capítulo IV "Fome de Infinito"): «Criador. O criador ? O criador ! A é a circunstância do tempo, modo e lugar. A quinta essência está nas mãos tenras de uma criança. As fossas nasais do demiurgo estavam perto. Por onde andaria ? [...] Espaço, Tempo. O espaço e o tempo inscrevem-se na obscuridade do paradoxo. Nada mais perverso que o tempo: tira o que não se tem e dá o que já se possui. inventando a sua proclamada lógica». Atente-se, então, na progressão das repetições, na musicalidade difusa que pretende, e consegue, criar um sentido a partir de uma permutação de relações metamórficas e de relações potenciais. Se cito esta passagem, podendo citar muitas outras, é porque ela me parece emblemática do tom geral da obra e de uma afirmação constante de que não existe nenhuma expressão, ou melhor, de que não existe nenhum código expressivo, cuja origem seja um vazio total; é assim que esta obra põe em jogo princípios de uma coerência tão difusa e multímoda que por vezes sentimos dificuldade em classificá-los ou incluí-los numa visão ordenada. Mas, perante esta obra, para que precisamos de um a visão ordenada ? Para coisa nenhuma, na realidade; basta que nos libertemos da "tirania do sentido" e nos deixemos embarcar no profundíssimo questionamento que oscila entre a hipótese transcendente do criacionismo e a criação humana como criação ex nihil sem porquê nem sentido que lhe seja anterior ou final; o velho sonho da libertação das teorias da causalidade não anda longe daqui. Felizmente.
Uma obra que põe em causa o sentido do sentido deveria fazer parte do currículo de qualquer cidadão que se respeite como tal. Desconheço, obviamente, qual será o destino desta obra - como será acolhida, quantos leitores encontrará, que reacções provocará. Quanto a mim, reputo-a como um dos mais estimulantes, exigentes e gratificantes livros portugueses dos últimos anos, merecendo figurar como um monumento à Ironia e à capacidade de desinstalação. O que não é dizer pouco: é através de obras como esta, que avançam por meio de uma prodigalidade de pressupostos teóricos, culturais e linguísticos, que o homem se pode libertar do tempo, superar momentaneamente a sua presença e o presente da sua própria morte pontual.
sábado, 17 de agosto de 2019
ALEXANDRE, O GRANDE EMPRESÁRIO E COMPANHIA
O omnipresidente Marcelo evocou a personalidade singular de Alexandre Soares dos Santos e o seu relevante papel na vida económica, social e cultural portuguesa.
A última coisa que considero ser Marcelo, é desatento ou distraído. Mas aqui existe uma clara desconformidade na nota emitida à imprensa portuguesa. O relevante papel na vida económica, social e cultural que ele deveria mencionar, não é na portuguesa, mas sim na holandesa já que é na Holanda que o grupo Jerónimo Martins paga os seus impostos. Se for eu, não posso e até aconteceria essa minha eventual aspiração (que não tenho) ser olhada como antipatriótica. Um grande grupo económico, pode. E pode também pagar ordenados miseráveis aos seus funcionários. E pode também exigir o cumprimento de horários e sacrifícios muito para além do humanamente aceitável.
Tal como Belmiro ou Amorim e outros ‘grandes empresários’ que já deixaram este plano da existência, a única coisa que devemos aprender com eles, é a forma como não repetir a sua acção e exemplo de responsabilidade para com quem para eles trabalha.
É por isso que o ‘branqueamento’ da memória de alguém após a sua morte, seja quem for, não passa de pura hipocrisia. No caso de Marcelo a este propósito, não é. É mais grave.
Na morte, o que fica é a memória de quem parte e as suas acções enquanto por cá andou.
O elogio marcelístico é redutor e formatador, contribuinte explicativo da pequenez de um Portugal absurdamente desigual.
Um lugar onde o sacrifício de milhares ou milhões de portugueses, é justificável no lucro de outros poucos, pouquíssimos, em milhares ou milhões.
Que esta gente na morte, encontre a paz que a ganância ilimitada não lhes permitiu em vida.
Em última análise, são estes os verdadeiros donos de Portugal e dos lugares onde se legisla e decide.
Ao povo, nada.
Hélder
Hélder
terça-feira, 13 de agosto de 2019
ENTÃO? AINDA CÁ ANDAS?
Naqueles tempos a Faculdade era
um espaço estranho e grandioso para os seus alunos mais novos. Tinha tanto de
fascinante como de fascizante no que às relações humanas dizia respeito. Por um
lado era o último patamar da formação, o último desafio antes da vida adulta. A
sabedoria, a cultura e as inteligências bailavam entre si fazendo-nos sentir
importantes, proprietários progressivos de um pedaço de conhecimento…quase
donos de um pedaço do universo. As estatísticas diziam que, naquele tempo,
apenas cerca de 38% de cada geração chegava ali. Por outro lado a enorme
quantidade das cargas de trabalho, as pautas sempre a nivelar por baixo e a
vomitar notas baixas e muitos dos mestres distantes e austeros concorriam para
a desmotivação e o desalento.
Ele era um merdas como tantos
outros em todos os tempos e em todas as gerações. Um Assistente ainda novo que
seguia o regente da cadeira como um cãozinho amestrado sempre disponível para
qualquer recado, rir das piadas idiotas do velho, em suma, sempre pronto para
qualquer habilidade requerida em nome de um doutoramento futuro. Por isso não
só não lhe vou dar um nome como nem sequer uma alcunha. Era um merdas e pronto.
O Manuel da Horta (nome
propositadamente fictício) era e é ainda hoje, um dos meus melhores amigos de
sempre. Um tipo tranquilo, conciliador, afável, conversador e, acima de tudo,
um dos seres mais inteligentes que conheci. Volta na volta surpreendia-nos com
comportamentos fora do comum, como por exemplo fazer questão de atravessar a
rua para cumprimentar pessoas de que não gostava. Ou fazer uma declaração de
amor a uma betoneira das obras ( mas isso já em épocas “festivas”).
Chegámos à Faculdade convencidos
que éramos uns geniozinhos e que, uma vez ali, o resto do caminho seria um pic
nic no parque. Não foi. Um após outro fomos nos habituando ao sabor amargo da
derrota, das notas negativas, dos chumbos. O Manuel foi o último a atravessar
esta experiência dolorosa. Na oral do cadeirão do 1º ano, com o tal merdas,
terminou o dia com um chumbo e um requinte de humilhação pela sua ignorância.
Ficou de tal modo traumatizado que no ano lectivo seguinte resolveu não meter
os papeis de dispensa e avançar para o SMO (Serviço Militar Obrigatório).
Ofereceu-se voluntário para os Rangers.
Na altura, ao abrigo da lei
militar havia a possibilidade de fazer o curso com marcações de exames todos os
meses, uma forma de minimizar o impacto do afastamento quotidiano das aulas. O
Manuel aproveitou esse regime.
A tropa é de certa maneira uma
grande Faculdade da Vida onde se somam várias cadeiras de vários saberes. É
também uma escola que nos ajuda a crescer de uma forma mais rápida e nos despe
de muitas inibições. Corre-se de manhã em tronco nu com um frio glacial,
caminham-se kilómetros, dão-se uns tiros, levam-se uns socos, etc,etc. Como
dizia outro merdas de um Alferes que me deu recruta: “Procura-se que o
instruendo termine a sua formação tendo adquirido uma certa “rusticidade”…”
Na segunda vez que o Manuel veio
de Lamego foi directo à secretaria da Faculdade antes de ir a casa, não tendo
sequer tirado a farda. Na fila viu que, mesmo à sua frente estava o merdas que
o tinha chumbado na época anterior. Não pensou duas vezes. Alçou da mão e
pregou-lhe uma palmada enorme nas costas que o fez saltar dois lugares na fila
involuntariamente. – Então? Ainda cá andas? – o outro, meio atordoado virou-se
para trás. – Ainda cá ando? Mas você conhece-me de algum lado? – O Manuel não
perdeu a pose e ripostou: - Schh…vira-te para a frente e caladinho senão ainda
levas outra. –
Nessa noite com mais um amigo e
no meio das imperiais da cervejaria do bairro contou-nos a façanha como quem
explica que foi comprar cigarros. Foi o que lhe saiu naquele momento e pronto.
Estava feito. Eu e o outro amigo ficámos embasbacados a olhar para ele. Ainda
ia repetir o exame. E se lhe calhasse outra vez aquele gajo? O Manuel
mantinha-se tranquilo. Era muito azar levar duas vezes com o mesmo gajo numa
oral. Ainda para mais ele estava fardado, de modo que nem o iria reconhecer.
Um mês depois o Manuel foi outra
vez à oral da tal cadeira que tinha reprovado no ano anterior. Azar dos
Távoras, o tipo que lá estava à espera dele era o mesmo que tinha levado a
pantufada na fila da secretaria. O Manuel nem teve tempo de responder a nada. A
primeira frase do outro foi: - Então ainda cá andas?
Artur
terça-feira, 30 de julho de 2019
I WAS INTERRUPTED
I WAS
INTERRUPTED – NICHOLAS RAY ON MAKING MOVIES
Logo no início da
Introdução ao volume, Susan Ray narra um episódio ocorrido no Festival de San
Sebastián 1974 : depois da exibição do filme The Parallax View, o realizador Alan J. Pakula abordou Nicholas Ray,
apertou-lhe calorosamente a mão, fez uma vénia e pronunciou a palavra “Maître”.
O episódio, para além do valor simbólico e ilustrativo da relação de filiação
entre uma nova geração de realizadores e o cineasta veterano que, de múltiplas
formas, para essa mesma geração representava a potência e o acto do cinema,
suscitou em Susan interrogações e perplexidades que expressa desta forma: “What
is a Master and what makes Nick one ? And what this mastery of his mean to me
?”. Pois bem, este livro acaba por ser uma resposta cabal a tais interrogações,
nascidas de uma perplexidade, ou de uma indeterminação, no conceito original de
“Mestre”. De facto, o que ela (Susan) confessa é que à vida e à obra de
Nicholas Ray faltaram alguns dos predicados que normalmente associamos ao
conceito: a calma, a ordem e o controlo. Susan Ray poderia ter levado a sua
perplexidade um pouco mais longe e
colocado a questão de uma outra forma, talvez com conotações políticas e
sociológicas; o que significaria nessa época e nesse contexto ser visto como um
Mestre ? Que poderes pessoais era preciso ter para que, num universo
especificamente americano, tendencialmente irreverente e contestatário, ainda
ser possível reconhecer essa figura, quando ressoavam os ecos dos brados “Plus
de Maîtres !” que os estudantes franceses não se tinham cansado de gritar a
plenos pulmões durante o Maio de 68. As duas questões – as dúvidas de Susan Ray
e a dimensão político-social do problema – interpenetram-se e, como já
dissemos, esta obra constitui-se como tentativa bem sucedida de encontrar uma
resposta, já que o seu núcleo fundamental é constituído por transcrições de
lições dadas por Nicholas Ray no Harpur College de Nova Iorque (a maior parte)
e também no Lee Strasberg Institute da Universidade de Nova Iorque entre 1971 e
1978, com intermitências resultantes das circunstâncias tumultuosas da vida do
cineasta. Numeradas de I a XV, essas “lições” apenas podem ser assim designadas
por abuso ou facilidade de linguagem; de lições, no sentido estrito e académico
do termo, nada têm. Não são, nem de longe nem de perto, modelos de transmissão
de um saber, de uma “techne” ou de práticas que habilitem alguém a realizar um
filme ou a nele interpretar uma personagem; não discutem teorias, nem procuram
chegar à essência do cinema; não proclamam verdades eternas, nem sequer aquelas
outras que são passíveis de debate e crítica; não emanam de nenhuma espécie de
autoridade a quem prestar reverência.
A aura carismática
de Nicholas Ray e o romance da “persona” no acto pedagógico constituem
justamente o fulgurante carácter desta espécie de diálogos socráticos através
dos quais Ray olha para os seus discípulos como iguais, fazendo-lhes mais
perguntas do que aquelas que lhe são feitas. Um espantoso exemplo do seu
“método” encontra-se na “Class V”. Ray não está completamente seguro de ter
conseguido transmitir aquilo que entende por “acção” e o seu carácter de
utensílio de interpretação dos actores. Compreende que é uma noção complexa,
difícil, singular e pessoalíssima. E é através do diálogo com os seus
discípulos que se vai progressivamente aproximando da noção e esclarecendo o
seu conteúdo e alcance, densificando-a e clarificando-a em simultâneo: “PETE:
Should the way in wich I carry out my action go along with what the action ? NICHOLAS RAY: It certainly should, because your action
is an expression of the nature of your character. At the same time it helps
clarify your character, his rhythm, how he does what he wants to do. Your
action helps you make the transition from “If I were” to “I am”. Consider this
dialectic: content determines form and form conditions content. Now apply it to
your choice of action. What was your action here Nat ? NAT: Well, first I
wanted to go to the couch. NR: Why ? NAT: So I could say hello. NR: Wouldn’t
you say hello at the door ? NAT: I wanted to kiss her. NR: Why ? Are you deeply
in love ? Is it the first chance you had to kiss her ? Is it the first time
you’ve seen her ? Is it love at first sight ? Why ?”.
E o diálogo
prossegue nesta toada até Ray conseguir extrair uma intuição, um acontecimento
de lucidez e de compreensão, algo que só os verdadeiros Mestres obtêm, mesmo
dos menos dotados dos seus discípulos.
Embora algo se
tenha perdido na passagem a escrito destas emocionantes experiências maiêuticas
de diálogo e aprendizagem mútua, ainda assim conseguimos captar as intensas
vibrações de sentido e de intenção que perpassam como uma corrente eléctrica
entre Nicholas Ray e os seus alunos. E voltamos às respostas às interrogações e
perplexidades de Susan Ray: a calma e a ordem do Mestre são adquiridas por Ray
em pleno exercício da função, não lhe são prévias, não existem antes de se
exercerem, como se o magistério colocasse em suspensão e adiasse as angústias
da luta contra o alcoolismo, a doença e a interminável agonia da sua obra
nesses anos terminais.
Mestre, portanto.
Não querendo fazer jogos de palavras, diríamos que a autoridade (auctoritas) de
Ray como Mestre se fundamenta na sua “autoridade / autorismo” – aquilo que tem
para ensinar é o seu próprio exemplo.
De resto, e para
além das “classes” (?), o volume contém documentos e fragmentos extremamente
valiosos para todos os que se interessam por cinema e pela obra de Ray (sendo
as duas entidades sinónimos e consonâncias); reminiscências, excertos de
argumentos, reflexões sobre alguns dos filmes que dirigiu, correspondência,
constituindo o conjunto uma poderosa meditação sobre a arte cinematográfica.
Seria imperdoável deixar de referir o brilhante esboço bio-filmográfico da
autoria de Bernard Eisenschitz, um dos autores que melhor
compreendeu Nicholas Ray.
No longínquo
encontro de 1974, Alan Pakula dirigiu-se a Ray como “Maître”. Ainda bem que o
fez, já que a alternativa em inglês teria sido “Master”.
- I was interrupted : Nicholas Ray on making movies / Nicholas Ray; Susan Ray, ed.; Bernard Eisenschitz, colab..-Berkley: University of California Press, cop. 1993
quarta-feira, 24 de julho de 2019
MEMÓRIA DE MIM
De repente e sem me esforçar
muito, lembrei-me que era celta, lusitano e fenício. A memória inscrita nos
meus genes era uma selecção ou uma mistura ou tudo a um tempo de uma história
antiga de povos e culturas que trocaram mercadorias, ódios e aprendizagens. De
correrias pelo mato, caminhadas por montanhas, trocas em mercados, campos
cultivados, pescas, barcos navegados pelos caminhos do mar De gente que acabou
por se misturar entre a vida e a morte num mesmo território. Depois, sem forçar
a memória, percebi que era judeu, cristão e árabe. O meu Deus era um gajo que
tinha várias camisolas que ia trocando ao sabor das estações e dos tempos mas
era sempre o mesmo. Os tipos que achavam que falavam em nome dele é que eram
apenas e só uma cor, uma camisola, uma coisa qualquer contra a outra cor,
dividiam para dominar, entrar nas nossas vidas e dizer como as deveríamos
viver. No fim as camisolas lutavam entre si, morriam e matavam em nome do mesmo
Deus e os tipos que falavam em nome dele engordavam, enriqueciam, dominavam a
maioria. Uma empresa com várias filiais mas um único presidente.
Sem fazer um grande esforço
percebi que era português, castelhano, francês, que respirava o mesmo ar,
dividia umas gargalhadas ao fim da tarde, numa paisagem mediterrânica desenhada
a azeitonas, pão e vinho tinto. Que sofria o mesmo transtorno com as
tempestades, que suava a mesma sede com as secas prolongadas, que batia o dente
da mesma maneira quando chegavam os cortantes ventos do Inverno.
De repente percebi que era
europeu, e africano e asiático, e a minha única dúvida era sobre qual deles
teria sido primeiro.
E fui branco, preto, amarelo e
vermelho e dancei as danças da chuva, rodopiei as voltas do folclore, fiquei
nostálgico ao som dos blues, saltei
com o bater dos tambores, deixei que a música fosse falando por mim, deixei a
música tocar a sua única melodia.
Percebi que para ser um teria que
ser tudo e todos. Em breve serei nada…
Artur
domingo, 14 de julho de 2019
ATÉ QUE A MANHÃ NOS RECORDE
Tudo o que nos resta são
memórias. Tudo o que nos resta, tudo o que nos sustenta, tudo o que nos
identifica. Somos feitos de passado e recordação, o único património que realmente importa.
Continuaremos a recordar, a lembrar, a visitar o que aconteceu atravessando a
escuridão da noite, o negro da insónia, agitado e imparcial, aterrador e
absurdo até ao regresso da luz, até que a manhã nos recorde.
E na travessia que seria
supostamente uma desculpa para uma busca de qualquer coisa, um suposto encontro
anunciado, vamos percebendo que não há nada para encontrar…tudo para construir.
O caminho não é uma busca mas uma acto criativo permanente onde nos vamos
inventando um pouco todos os dias. Com pedaços do passado, memórias, mágoas e
alegrias, tudo apontado num caderno cada vez mais gasto de tanto escrever.
Passamos a vida a dizer adeus
porque nada fica junto a nós eternamente. Passamos a vida a encontrar e a
perder e sempre a recordar. Somos feitos de memórias, esse é o nosso cimento.
Quando caímos aqui não somos nada, não nos reconhecemos em lado nenhum, não
somos parte nem todo. Insistimos em caminhar, hesitantes, frágeis. Damos a mão
a companheiros de percurso para evitar cair, para prender alguma coisa …
Passamos metade da vida confusos, desajustados e com medo. Medo do vazio, medo
do outro, medo de nós. E no medo plantamos a coragem, na hesitação a certeza,
na memória o reencontro. O voltar ao que sempre fomos reforçados pela
experiência da travessia. A celebração de um novo Ser reforçado, recriado e
fortalecido.
Passo a passo vamos construindo
alguma coisa, alguma coisa que nunca dura para sempre, que se gasta, consome,
afasta e acaba por terminar. Somos feitos de memórias e passamos metade da vida
a recordar, a lembrar o que já não temos, a mastigar despedidas e outra metade
a erigir o edifício novo em que nos tornamos…para logo a seguir terminar. Puta
de vida tão estranha.
E continuaremos obstinados a
criar qualquer coisa que seremos para não ficar presos em becos sem saída
feitos de lágrimas e respostas mortas antes de nascer.
Recordaremos pela noite fora, até
que um dia a manhã nos recorde.
Levantados do chão, a caminho do
mar, para conquistar o céu.
Artur
terça-feira, 9 de julho de 2019
IN MEDIA RES
Editados conjuntamente pela Midas, os filmes "Alumbramiento" e "La Mort Rouge" de Victor Erice são acompanhados por "Victor Erice : Paris-Madrid Aller-Retous", de Alain Bergala, que integrou a mítica série documental "Cinéma de Notre Temps", concebida e dirigida por André S. Labarthe.
Em "La Mort Rouge", o cineasta relata em 32 minutos a sua experiência cinematográfica, aos cinco anos de idade, quando assistiu ao filme "The Scarlet Claw / A Garra Vermelha", realizado por Roy William Neill em 1944, exibido num local mítico e majestoso (além de assombrado), o velho Cinema Kursaal em San Sebastián. A voz do cineasta, a voz do narrador, relata aquilo que fundou permanentemente a sua "relação com as imagens em movimento", retomando a pulsação dos temas a três tempos da suas obras anteriores: o medo, a infância, o cinema ("O Espírito da Colmeia", 1973, "El Sur", 1982) referindo-se à sua história pessoal e à da Espanha no pós-guerra civil. É um filme composto de fotografias e de imagens de arquivo, propondo uma inscrição precisa no passado (data, local, eventos), com um enorme poder evocativo, capaz de desvelar aquilo que pode existir naqueles buracos que a acção do tempo cruza tanto na memória pessoal como nos livros de História. Na realidade, o subtítulo, ou título alternativo, "Solilóquio" remete para um "documentário interior", com escolhas múltiplas na imagem (filmagem no presente, imagens de arquivo, reconstituição dos tempos entre 1946 e 2005) e no som (alternância por vezes ambígua entre a primeira e terceira pessoa do singular) e na montagem que insistem no seu conjunto sobre a "proximidade e o afastamento entre o adulto no presente e a criança no passado" e que resultam numa extraordinária perturbação que dá conta da inconsistência do sujeito: "Quem é aquele que se recorda ?", pergunta o cineasta. Renovando o seu compromisso com "a relação - e a oposição - que se estabelece entre história e poesia" nos seus filmes, Victor Erice junta-se a uma vasta corrente historiográfica (e cinematográfica) interessada nos mecanismos de ligação entre o passado e o presente e pelo carácter aporético de qualquer reconstituição integral que não poder ser abordada senão através de estilhaços, pequenos fragmentos de verdade. Parece-me, assim - e é isso que, provavelmente, mais me perturba no filme - que "La Mort Rouge" procura refazer em laboratório, como se se tratasse de uma experiência científica, as operações ambíguas e incertas da memória. É assim que o filme repousa sobre o princípio daquilo que poderíamos chamar de "vai-e-vem" estruturado entre 1946 e 2005 - ou seja entre o tempo da criança sobre a qual pesa a dor universal de uma sociedade devastada e o tempo do narrador, que pergunta sobre aquilo em que "estes fantasmas se transformaram". É assim que se forma um exemplo daquilo que é possível fazer com o tempo: dar-lhe forma e sentido, abri-lo à compreensão dos outros, de tal modo que o passado se encarna na continuidade do presente. No écrã, essa encarnação do tempo é ela mesma figurada por um local, teatro da primeira emoção cinematográfica de Erice. O cineasta estabelece com esse décor uma primeira camada do tempo: aquela sobre a qual foi deposta a "experiência crucial" dos seus cinco anos de idade. A experiência de projecção do Gran Kursaal não anda longe de uma ideia do cinema como lugar de expressão de um "trauma", trauma esse que não se pode definir simplesmente como um acontecimento externo, por muito violento e aterrorizante que seja, mas como uma ligação do perigo interno ao perigo externo, do presente ao passado. Para um cineasta que afirma que a história do cinema é um elemento da nossa memória que se confunde com a história do século na nossa própria biografia, o filme que restitui a sua primeira experiência cinematográfica carrega consigo o pesado fardo de reencontrar aquilo que se perdeu na Espanha de Franco : uma relação vital entre o cinema e o mundo.
Colocados ao longo de uma escala temporal muito longa da história da Espanha entre 1973 e 2001,as obras de Erice anteriores a "La Mort Rouge" parecem, de modo retrospectivo, serem relançadas num mesmo tempo - o do "pacto de esquecimento", selado em 1939 pela vitória nacionalista, de "construir sem olhar para trás", prolongado muito para além da morte do pequeníssimo, insignificante, medíocre e mesquinho ditador. Por sua vez, o filme de 2005 liga-se a uma nova sociedade preocupada em estabelecer uma narrativa comum do passado. Seja como for, é um dos mais belos, intensos e emocionantes filmes da história do cinema.
Colocados ao longo de uma escala temporal muito longa da história da Espanha entre 1973 e 2001,as obras de Erice anteriores a "La Mort Rouge" parecem, de modo retrospectivo, serem relançadas num mesmo tempo - o do "pacto de esquecimento", selado em 1939 pela vitória nacionalista, de "construir sem olhar para trás", prolongado muito para além da morte do pequeníssimo, insignificante, medíocre e mesquinho ditador. Por sua vez, o filme de 2005 liga-se a uma nova sociedade preocupada em estabelecer uma narrativa comum do passado. Seja como for, é um dos mais belos, intensos e emocionantes filmes da história do cinema.
quinta-feira, 20 de junho de 2019
Diário Laboratório (primeira entrada) de 18/3/2018
(Primeira Entrada)
Cumprir-se o variegado da vida mas em escrita. É essa plurivocidade que alimenta - de que se deve alimentar - a ficção.
Cumprir-se o variegado da vida mas em escrita. É essa plurivocidade que alimenta - de que se deve alimentar - a ficção.
sábado, 15 de junho de 2019
Diário Laboratório (quarta entrada) 16/3/2018
(Quarta Entrada)
Pensa de outro modo, vale a pena. Podem não gostar de ti e perseguirem-te. Tirarem-te a fazenda ou manterem-te na penúria.
Pensa de outro modo, vale a pena. Podem não gostar de ti e perseguirem-te. Tirarem-te a fazenda ou manterem-te na penúria.
Mas, vale a pena porque, então, poderás reencontrar os clássicos.
domingo, 9 de junho de 2019
Diário Laboratório (terceira entrada) 16/3/2018
(Terceira Entrada)
A grande virtude do vício é que obriga à repetição obsessiva.
Para seres escritor - não interessa se bom, se mau - basta sentires que a literatura é um filtro narcótico qualquer.
quarta-feira, 5 de junho de 2019
THE TRAIL OF TEARS
The
Brave Cherokee By John Howard Payne
|
O’ soft fills the dew on the twilight descending And night over the distant forest is bending Like the storm spirit, dark o’er the tremulous rain |
But midnight enshrouded my lone heart
in it’s dwelling
A tumult of woe in my bosom is swelling And tear unbefitting the warrior is telling That hope has abandoned the brave Cherokee |
Can a tree that is torn from its root by the fountain The pride of the valley; green spreading and fair Can it flourish, removed to the rock of the mountain Unwarmed by the sun and unwatered by care? |
Though vesper be kind, her sweet dews in bestowing No life giving Brook in its shadows is flowing And when the chill winds of the desert are blowing So droops the transplanted and lone Cherokee |
Sacred graves pf
my sires, and I left you forever
How melted my heart when I bade you adieu Shall joy light the face of the Indian? Ah, never While memory sad has the power to renew. |
As flies the fleet deer when the bloodhound has started So fled the winged hope from the poor broken hearted Oh, could she have turned ere forever departing And beckons with smiles to her sad Cherokee |
Is it the low wind through the wet willows rushing That fills with wild numbers my listening ear? Or is it some hermit rill in the solitude gushing The strange playing minstrel, whose music I hear? |
Tis the voice
of my father, slow, solemnly stealing I see his dim form by yon meteor kneeling To the God of the White man, the Christian appealing He prays for the foe of the dark Cherokee |
Great spirit
of good, whose abode is in Heaven, Whose wampum of peace is the bow in the sky Wilt though give to the wants of the calmorous ravens, Yet turn a deaf ear to my piteous cry? |
O'er the ruins
of home, o'er my heart's desolation No more shalt though hear my unblest lamentation For death's dark encounter, I make preperation He hears the last groan of the wild Cherokee |
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