terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O TAXI 9297




O TAXI 9297

Reinaldo Ferreira

Portugal, 1927



Já várias vezes fizemos referência neste blog tanto a Reinaldo Ferreira (o famoso Reporter X) como ao seu carismático filme, O TAXI 9297. Talvez pela relevância de uma obra ímpar ou talvez por se tratar de uma época que teve tanto de fascinante como de pouco divulgada (os anos 20 em Portugal) o certo é que todas as razões são boas para voltar a estes temas. No caso de hoje trata-se de uma  edição da Cinemateca (2017), um DVD de digitalização Ultra HD de restauro em 35mm com acompanhamentos musicais ao piano inéditos por Filipe Raposo. Além do filme O TAXI 92927, esta edição inclui ainda como complemento a curta-metragem RITA OU RITO?... de Reinaldo Ferreira e o ensaio audiovisual OS MOTIVOS DE REINALDO de Ricardo Vieira Lisboa sobre os filmes do Reporter X bem como uma brochura ilustrada de 64 páginas com textos em português e inglês.
Por todas estas razões, se não em termos absolutos pelo menos em grande parte, acabaremos forçosamente por  empreender uma fascinante e ilustrativa viagem ao tempo e à obra de uma dos maiores criadores/cronistas/artistas de uma época alucinante onde, entre outras particularidades ( e como escreveu o meu amigo Arnaldo Mesquita) "o tempo histórico ultrapassou em grande velocidade o tempo cronológico".
O filme propriamente dito não é um documento isolado mas apenas uma parte de um universo muito mais extenso que tem como ponto de partida a realidade. Em Março de 1926 o misterioso assassinato da actriz Maria Alves faz disparar o imaginário da sociedade e a especulação da imprensa. Entre a teoria de um clássico assalto que evoluiu para um homicídio e o simples assassinato por alguém que era próximo da actriz a opinião pública divide-se.  Do lado desta última versão está o jornal O Século e a revista ABC, espaço onde o repórter Reinaldo Ferreira desenvolve a sua teoria dando a entender que o culpado seria o empresário António Gomes, amante da actriz. Suspeita seguida pela policia que mais tarde vem a confirmar prendendo o dito empresário. Partindo deste ponto Reinaldo Ferreira salta rapidamente da forma da reportagem e escreve uma peça de teatro acerca deste episódio, mais tarde realiza o filme. No início do filme podemos ler a legenda: "Não se trata de um decalque do dia a dia. O autor pede que acreditem na sua fantasia". E este é o espírito de Reinaldo Ferreira que vai construíndo uma novela policial com os olhos do repórter que relata a realidade. Ficção e realidade percorrem então a mesma linha, ocupando o mesmo espaço.
O TAXI 9297 torna-se uma referência a vários níveis na medida em que se desenvolve entre a vanguarda e a experimentação. Embora ilustrando uma realidade cosmopolita, exótica e vibrante afastada do realismo, mergulha a fundo nos meandros de uma sociedade mundana enredada nos seus jogos de ambição e declínio, sem deixar nada por mostrar. Como as pernas nuas das coristas do teatro onde Raquel Monteverde trabalha ou  o homossexual que se injecta no palacete do Bretolho, sendo esta última imagem repetida outra vez no cinema português  no filme VIDAS de António da Cunha Telles quase sessenta anos depois. Para a ficção transporta-se a verdade com que se convive todos os dias na actividade jornalística febril. Mas esta realidade ficcional de Reinaldo Ferreira corresponde também a uma sociedade dos anos 20 em Portugal. A originalidade está na forma como é apresentada através de artifícios espectaculares, planos simples mas ousados e de grande aproximação com as personagens, economia narrativa, utilização de elementos da linguagem cinematográfica pouco conhecidos até então (o flash back final).
Bem recebido tanto pelo público como pela crítica a breve obra cinematográfica de Reinaldo Ferreira viria a ecoar nas futuras gerações. Em 1983 Eduardo Geada transformou a história do taxi 9297 num dos episódios do seu filme SAUDADES PARA DONA GERENCIANA. Três anos depois REPORTER X de José Nascimento retrata um biografia ficcionada de Reinaldo Ferreira prestando-lhe dessa forma a devida homenagem da sua modernidade.
Porque ao pegar numa tragédia real sob a forma de tratamento jornalístico e ao transformar esse mesmo acontecimento trágico numa novela e depois num filme, o que Reinaldo Ferreira faz é multiplicar e estimular as várias dimensões da imaginação colectiva.

Artur

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