Fora de
horas, aproveitando uma pausa, esgueiro-me sorrateiro até à janela da cozinha e
acendo um cigarro julgando que ninguém está a ver. Nem eu. Às vezes o melro da
rua anda na sua correria diária para trás e para a frente. Quando me vê resolve
também ele fazer uma pausa e vem até ao parapeito da janela. Falamos de tudo e
mais alguma coisa, como é que vai a vida de cada um, a saúde, as doenças, o
tempo e tudo aquilo que costumam falar dois seres vivos quando calha
encontrarem-se a meio de uma pausa comum. Da última vez andava angustiado com o
esforço que tinha que fazer para alimentar a descendência. Os filhos eram uns
galfarros que nunca estava satisfeitos. Sempre de boquinha aberta para comer
mais nem que se lhes tivesse acabado de enfiar um boi pela goela abaixo. Isso
foi no princípio do Verão. Agora já voam sozinhos e procuram comida para eles.
Pergunto por onde andam. Foram com a mãe aprender a utilizar as correntes
ascendentes e a poupar energia das asas. Ele tinha estado no relvado do jardim
a apanhar umas minhocas para o almoço. Insiste que tenho que deixar de fumar,
que é uma estupidez insistir. Concordo com ele mas não me apetece, não de forma
definitiva. Ele diz que desde que deixou que se sente muito mais saudável. Tem
muito mais resistência, a comida sabe-lhe melhor e todas aquelas banalidades
que diz um ex fumador. Vou buscar uma bolacha de chocolate e ficamos ali mais
um bocado à conversa, eu a beber café e ele a depenicar migalhas.
Pego noutro
cigarro e acendo-o. Ele fica a olhar para mim inclina ligeiramente o pescoço e
pede-me muito educadamente uma "passinha". "Então não tinhas
deixado de fumar?" É verdade…mas é só para matar o vício. E fica ali com o
cigarro esquecido na boca, o que me leva a acender outro para mim. Continuamos
a conversa. Na Primavera os filhos devem estar autónomos e prontos para partir
para a vida deles. Tem uma boa casa ali na árvore grande da rua mas os invernos
dão-lhe cabo dos ossos. Também a mim, queixo-me eu solidário. E o mundo? Nem
vale a pena perder tempo com isso. Parece que tudo resolveu andar para trás.
Fantasmas do passado encarnaram sólidos e tomaram conta dos nossos medos.
Qualquer dia estamos a viver outra vez em plena revolução industrial sem darmos
por isso. Que importa...? As nossas vidas, bem ou mal vão passando, a velhice
vai-se instalando e adormecendo-nos a revolta. Outros virão que resolverão as
coisas. Nós só queremos que o Inverno passe depressa e que os ossos não
guinchem muito. Mal ou bem, fizemos aquilo que podíamos fazer. Mais coisa menos
coisa, amanhã será outro dia, e outros dias se seguirão até àquele em que já
não estaremos cá para o contar. Restam as nossas conversas na janela da
cozinha, histórias relembradas, uns cigarrinhos escondidos de vez em quando nas
pausas do recreio. O meu amigo despede-se e arranca em alta vibração de asas. O voo flecte ligeiramente para a esquerda, aponta a um poste da luz, endireita rapidamente. Já não está habituado a fumar, ficou meio tonto. A vida faz tanto sentido como um homem a fumar um cigarro
com um melro na sua janela da cozinha enquanto conversam. E que outro sentido
poderia ela fazer?
Artur
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