I WAS
INTERRUPTED – NICHOLAS RAY ON MAKING MOVIES
Logo no início da
Introdução ao volume, Susan Ray narra um episódio ocorrido no Festival de San
Sebastián 1974 : depois da exibição do filme The Parallax View, o realizador Alan J. Pakula abordou Nicholas Ray,
apertou-lhe calorosamente a mão, fez uma vénia e pronunciou a palavra “Maître”.
O episódio, para além do valor simbólico e ilustrativo da relação de filiação
entre uma nova geração de realizadores e o cineasta veterano que, de múltiplas
formas, para essa mesma geração representava a potência e o acto do cinema,
suscitou em Susan interrogações e perplexidades que expressa desta forma: “What
is a Master and what makes Nick one ? And what this mastery of his mean to me
?”. Pois bem, este livro acaba por ser uma resposta cabal a tais interrogações,
nascidas de uma perplexidade, ou de uma indeterminação, no conceito original de
“Mestre”. De facto, o que ela (Susan) confessa é que à vida e à obra de
Nicholas Ray faltaram alguns dos predicados que normalmente associamos ao
conceito: a calma, a ordem e o controlo. Susan Ray poderia ter levado a sua
perplexidade um pouco mais longe e
colocado a questão de uma outra forma, talvez com conotações políticas e
sociológicas; o que significaria nessa época e nesse contexto ser visto como um
Mestre ? Que poderes pessoais era preciso ter para que, num universo
especificamente americano, tendencialmente irreverente e contestatário, ainda
ser possível reconhecer essa figura, quando ressoavam os ecos dos brados “Plus
de Maîtres !” que os estudantes franceses não se tinham cansado de gritar a
plenos pulmões durante o Maio de 68. As duas questões – as dúvidas de Susan Ray
e a dimensão político-social do problema – interpenetram-se e, como já
dissemos, esta obra constitui-se como tentativa bem sucedida de encontrar uma
resposta, já que o seu núcleo fundamental é constituído por transcrições de
lições dadas por Nicholas Ray no Harpur College de Nova Iorque (a maior parte)
e também no Lee Strasberg Institute da Universidade de Nova Iorque entre 1971 e
1978, com intermitências resultantes das circunstâncias tumultuosas da vida do
cineasta. Numeradas de I a XV, essas “lições” apenas podem ser assim designadas
por abuso ou facilidade de linguagem; de lições, no sentido estrito e académico
do termo, nada têm. Não são, nem de longe nem de perto, modelos de transmissão
de um saber, de uma “techne” ou de práticas que habilitem alguém a realizar um
filme ou a nele interpretar uma personagem; não discutem teorias, nem procuram
chegar à essência do cinema; não proclamam verdades eternas, nem sequer aquelas
outras que são passíveis de debate e crítica; não emanam de nenhuma espécie de
autoridade a quem prestar reverência.
A aura carismática
de Nicholas Ray e o romance da “persona” no acto pedagógico constituem
justamente o fulgurante carácter desta espécie de diálogos socráticos através
dos quais Ray olha para os seus discípulos como iguais, fazendo-lhes mais
perguntas do que aquelas que lhe são feitas. Um espantoso exemplo do seu
“método” encontra-se na “Class V”. Ray não está completamente seguro de ter
conseguido transmitir aquilo que entende por “acção” e o seu carácter de
utensílio de interpretação dos actores. Compreende que é uma noção complexa,
difícil, singular e pessoalíssima. E é através do diálogo com os seus
discípulos que se vai progressivamente aproximando da noção e esclarecendo o
seu conteúdo e alcance, densificando-a e clarificando-a em simultâneo: “PETE:
Should the way in wich I carry out my action go along with what the action ? NICHOLAS RAY: It certainly should, because your action
is an expression of the nature of your character. At the same time it helps
clarify your character, his rhythm, how he does what he wants to do. Your
action helps you make the transition from “If I were” to “I am”. Consider this
dialectic: content determines form and form conditions content. Now apply it to
your choice of action. What was your action here Nat ? NAT: Well, first I
wanted to go to the couch. NR: Why ? NAT: So I could say hello. NR: Wouldn’t
you say hello at the door ? NAT: I wanted to kiss her. NR: Why ? Are you deeply
in love ? Is it the first chance you had to kiss her ? Is it the first time
you’ve seen her ? Is it love at first sight ? Why ?”.
E o diálogo
prossegue nesta toada até Ray conseguir extrair uma intuição, um acontecimento
de lucidez e de compreensão, algo que só os verdadeiros Mestres obtêm, mesmo
dos menos dotados dos seus discípulos.
Embora algo se
tenha perdido na passagem a escrito destas emocionantes experiências maiêuticas
de diálogo e aprendizagem mútua, ainda assim conseguimos captar as intensas
vibrações de sentido e de intenção que perpassam como uma corrente eléctrica
entre Nicholas Ray e os seus alunos. E voltamos às respostas às interrogações e
perplexidades de Susan Ray: a calma e a ordem do Mestre são adquiridas por Ray
em pleno exercício da função, não lhe são prévias, não existem antes de se
exercerem, como se o magistério colocasse em suspensão e adiasse as angústias
da luta contra o alcoolismo, a doença e a interminável agonia da sua obra
nesses anos terminais.
Mestre, portanto.
Não querendo fazer jogos de palavras, diríamos que a autoridade (auctoritas) de
Ray como Mestre se fundamenta na sua “autoridade / autorismo” – aquilo que tem
para ensinar é o seu próprio exemplo.
De resto, e para
além das “classes” (?), o volume contém documentos e fragmentos extremamente
valiosos para todos os que se interessam por cinema e pela obra de Ray (sendo
as duas entidades sinónimos e consonâncias); reminiscências, excertos de
argumentos, reflexões sobre alguns dos filmes que dirigiu, correspondência,
constituindo o conjunto uma poderosa meditação sobre a arte cinematográfica.
Seria imperdoável deixar de referir o brilhante esboço bio-filmográfico da
autoria de Bernard Eisenschitz, um dos autores que melhor
compreendeu Nicholas Ray.
No longínquo
encontro de 1974, Alan Pakula dirigiu-se a Ray como “Maître”. Ainda bem que o
fez, já que a alternativa em inglês teria sido “Master”.
- I was interrupted : Nicholas Ray on making movies / Nicholas Ray; Susan Ray, ed.; Bernard Eisenschitz, colab..-Berkley: University of California Press, cop. 1993
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