"Celui qui, souvent, a choisi son destin d'artiste parce qu'il se
sentait différent, apprend bien vite qu'il ne nourrira son art, et sa
différence, qu'en avouant sa ressemblance avec tous. L'artiste se forge
dans cet aller retour perpétuel de lui aux autres, à mi-chemin de la
beauté dont il ne peut se passer et de la communauté à laquelle il ne
peut s'arracher".
---- Albert Camus, Discours du 10 décembre 1957 à Stockholm (Suède)
quarta-feira, 7 de novembro de 2018
segunda-feira, 5 de novembro de 2018
Segunda Entrada do Diário Laboratório de 15/3/2018
15/3/2018
(Segunda Entrada)
Completa-se a espera com uma astúcia: transcrever tudo o que passar pela cabeça. Talvez um dia se arrumem as ideias, os escritos, os papéis, os projectos editoriais; se dê destino e propósito a tal corpo.
(Segunda Entrada)
Completa-se a espera com uma astúcia: transcrever tudo o que passar pela cabeça. Talvez um dia se arrumem as ideias, os escritos, os papéis, os projectos editoriais; se dê destino e propósito a tal corpo.
sexta-feira, 2 de novembro de 2018
Primeira Entrada do Diário Laboratório de 15/3/2018
15/3/2018
(Primeira Entrada)
É possível compreender aqueles que viveram através da escrita. A realidade prática, com todas as suas dificuldades, repugna. A escrita, pelo contrário, é sortilégio: permanente fuga imaginosa ou um cumprir-se ante a danação alienante de um estrepitoso século, experienciar possibilidades, impossíveis doutro modo, seduzir e até afastar maleitas, na literatura, se é de são vigor ou, no limite, exorcizar a morte pois, enquanto se é pleno a morte nada é.
quarta-feira, 31 de outubro de 2018
Segunda Entrada do Diário Laboratório de 14/3/2018
(Segunda Entrada)
No contar, a importância axial do exercício da minúcia. De outro modo, o perigo da generalização e do vago, da tese e não da história, isto é, da sua circunstância num tempo; o que foi assim e não d'outra maneira qualquer. O que é mais do que a forma. É, em conjunto, inseparável com o seu conteúdo; mas que só o poderia ser naquele momento, com tais personagens, nesse espaço cénico e tudo o mais que seja relevante e que, além disso, é único.
sábado, 20 de outubro de 2018
Primeira Entrada do Diário Laboratório de 14/3/2018
14/3/2018
(Primeira Entrada)
Ventos atrozes os da impaciência.
Os da obsessão fragmentária.
Quisera a obra extensa e, por isso,
também intensa pois, num certo sentido, amiúde puramente
quantitativo, a respiração dilatada permite a exploração das
intensidades intrapsíquicas, do detalhe descritivo, da modelação
lenta, por exemplo, de um personagem.
A brevidade, fulguração exígua, tem
evidentes limitações.
segunda-feira, 15 de outubro de 2018
Entrada do Diário Laboratório de 13/3/2018
13/3/2018
A ansiedade é sempre um sentimento
d’angústia - um aspecto existencial que é uma captura. Sentem-se,
obsessivamente, as seguintes perguntas: «porquê eu?»,«porquê eu,
nesta conjugação cósmica que fez levantar-se esta urgência?».
Porque também há algo de urgência - no fazer, quando se quer
restar quedo; no não fazer ainda, quando se exige a espera.
A ansiedade: suster (ou acelerar) a
temporalidade específica do contexto ansiogénico, de tal modo que
se suspendam as causas ou que se remetam, instantaneamente, para o
passado.
Não custa entender que esse
sentimento, na escrita, seja lídimo produtor do fragmento:
suspende-se o texto no momento em que surja a primeira dificuldade;
remetê-lo para o passado, começando logo outro escrito; por igual
curto, provisório e já arcaico.
domingo, 14 de outubro de 2018
Entrada do Diário Laboratório de 12/3/2018
12/3/2018
(Consideração)
É algo de terrível a hora-do-lobo.
Tempo de calma e desolação.
É algo de terrível porque se
contempla já – isto é, em qualquer momento da vida - a
senelescência e a sua miséria, a fauce escancarada da ceifeira,
tudo o que se perdeu e, ademais, parece fazer-se presente tudo o que
se irá perder.
É também bela a hora-do-lobo pois é
a vivência do vício da melancolia.
sábado, 13 de outubro de 2018
Entrada do Diário Laboratório de 11/3/2018
11/3/2018
A literatura não é quem sou mas estou
todo nela.
Um modo, quiçá, de me saber em
tod’esta errância. Um modo, quem o adivinha?, de entender o devir
do mundo e eu nele ou de o compreender na sua faceta mais externa,
como se eu nele não existisse.
Um dia, saberei quem fui.
Há um perigo, contudo. Esse é o de
viver excessivamente imerso na dimensão poético-literária; e a
vida não é isso. Antes pelo contrário, é, em rigor, tudo o que
está fora dela.
Melhor a metáfora do espelho ou a de
um eco ou, ainda, de fantasmagoria activa pois talvez convenha ao
labor estético reduzir o estrépito das coisas a um murmúrio.
sexta-feira, 12 de outubro de 2018
Entrada do Diário Laboratório de 18/2/2018
18/2/2018
Ficção narrativa como
função-de-verdade (verdade-do-tempo, bem entendido; está
implícito).
Mas, o que é que isso implica?
Um método exploratório cuja pesquisa
é descobrimento. Não, o autor não é livre.
quinta-feira, 13 de setembro de 2018
sexta-feira, 10 de agosto de 2018
DIVA
Jean Jacques Beineix
França, 1981
A primeira de várias lições que
aprendi com este filme foi a de que era possível filmar um poema, facto até aí
considerado completamente impossível na mais imaginativa e jovem mente que me
orientava no final da minha adolescência. Um poema em fundo azul feito de
formas e sons que nos agarra desde o primeiro instante atirando-nos para um
universo único de sonho e emoção. O
impacto causado por este filme foi de tal maneira profundo que o decidi ver e
voltar a ver vezes sem conta sem nunca me cansar ao longo de uma vida inteira.
Baseado no livro homónimo de Daniel Odier (1979) com o pseudónimo Delacorta,
DIVA representa à partida uma primeira tentativa do cinema francês em se
afastar do modo realista até aí imperante na década de 70 bem como o regresso a
um estilo melódico e colorido mais tarde definido como cinéma du look (*). Um estilo onde se incluiriam além do próprio
Beineix, cineastas como Luc Besson e Leos Carax que privilegiavam o estilo
sobre o conteúdo, o espectáculo sobre a narrativa, num visual focado em
personagens jovens representantes de uma certa marginalidade na França de
Miterrand. Há uma cantora lírica (interpretada pela soprano americana
Wilhelmenia Fernandez) que se recusa a fazer registo das suas actuações, um
jovem carteiro amante de ópera que consegue uma gravação pirata num concerto,
um grupo de mafiosos que procura por todos os meios obter essa mesma fita, uma
rede de tráfico de mulheres dirigida por um inspector da policia e sobre tudo
isto, Paris. Mas a história acaba por ser o que menos interessa na medida em
que o tempo é escasso para absorver tanto a beleza das imagens como do objecto
filmado. Mais uma vez o Cinema assume a sua linguagem directa exprimindo-se na
sua dimensão mais pura de significação deixando a narrativa e a sequência da
acção num plano secundário. Desde a alucinante cena da perseguição no Metro até
à explosão de um clássico Citroen branco e imaculado dos anos 30 passando por
um farol idílico e um "puzzle" gigantesco que só vamos conseguir
entender mesmo no fim vai pairando sobre nós uma área da ópera "La
Wally" (1892) do compositor italiano Catalani. Num filme de enquadramento e folclore típicos
da cultura pop, a sua inspiração principal vem do amor à ópera reforçando as
possibilidades ilimitadas de diálogo entre estilos, artes e discursos que
aparentemente nada têm a dizer entre si. O compasso entre a beleza do canto
lírico e a rusticidade dos mafiosos só se interrompe com a inocência do jovem
carteiro, bem como com o auxílio dos seus companheiros de aventura.
O cartaz deste filme é uma
expressão de identidade visual daquilo que pretende representar, ou seja, um
jogo de formas e personagens de várias dimensões em harmonia interactiva. Um
fundo azul, rostos inacabados, assustados, caminhos sem direcção, universos
distintos comunicantes entre si.
Para mim, para além de um dos
filmes da minha vida, DIVA é um poema sobre o vazio das nossas vidas. Mas é
também um convite à imaginação e à obrigação que todos temos de construír algo de
belo num espaço onde estamos apenas de passagem.
Artur Guilherme Carvalho
(escritor/cinéfilo/crítico de
cinema)
(*) Designação atribuída ao
crítico de cinema Raphael Bassan em "La Revue Du Cinéma" nº 448 de
Maio de 1989.
Publicado na página digital da Cinemateca - Museu do Cinema, na colecção Textos e Imagens.
Lisboa 05/07/2018
terça-feira, 12 de junho de 2018
quinta-feira, 7 de junho de 2018
SUNRISE
SUNRISE
F. W. Murnau
EUA, 1927
Foi em Outubro
de 1981, ao fim de tarde, que conheci a minha segunda casa.
Ainda nada tinha visto de Murnau, apenas sabia, do que já tinha lido, que
era um dos maiores realizadores de sempre, mau grado a curta filmografia,
interrompida brutalmente, aos 42 anos de idade, por um acidente de viação cujas
concretas circunstâncias nunca foram totalmente esclarecidas.
Já tinha vistos filmes mudos, já me sentia fascinado pelas possibilidades dos
silent movies, e até já sabia que
Murnau, a esse nível, havia realizado um filme único, quase sem intertítulos – Der Letzte Mann – mas foi só nesse fim
de tarde que percebi a verdadeira maravilha que era poder contar uma história
de forma intrinsecamente visual, com recurso, essencialmente, a imagens, em que
as palavras são meramente acessórias para a dinâmica da narrativa.
Hitchcock – cineasta que me é tão caro – dizia que o verdadeiro Cinema era o
mudo, pois começou por ser a arte de contar uma história apenas por imagens e
pela capacidade de, utilizando os seus próprios mecanismos, câmara, iluminação,
actores, cenários e figuração, torna-la percebível e credível aos olhos dos
espectadores.
Sunrise é um exemplo máximo dessa
Arte, como, aliás, todos os demais filmes mudos de Murnau, quase todos eles,
obras máximas da História do Cinema.
Nosferatu dispensa apresentações
pela genialidade da realização, O Último
dos Homens é magistral, Tartufo
espanta pelo rigor da encenação, Fausto
é brilhante no rigor dos enquadramentos e nos espantosos claros-escuros, mas Sunrise é tudo isso junto.
São muitas as suas exegeses, centenas os seus trabalhos de análise, inúmeros
os livros que o analisam, pela história, pelos subterfúgios, pelo modo de
contar, onde o mesmo é dissecado, plano a plano, fotograma a fotograma.
Nessa medida, apenas quero relatar, um pouco melhor, a impressão que me
causou a espantosa história, tão simples nos seus pressupostos e tão singela na
forma de ser contada, que quase me faz pensar que qualquer pessoa poderia filmar
assim.
O eu vi em Sunrise, nessa tarde
de 1981, é que ao lado de uma aparente apologia da felicidade doméstica, o
filme mergulhava nalguns dos mistérios mais fundos do ser humano, como o amor,
o desejo e a culpa.
Modelo maior disto mesmo, é fabulosa panorâmica, num longo plano único, logo
no início do filme, em que acompanhamos a viagem
de George O`Brien até Margaret Livingston, a perversa mulher da cidade, a
erótica e sensual vamp, pelo qual se
perde de desejo, admitindo até matar a sua angélica mulher, para poder vender a
sua quinta e partir com aquela para a cidade.
É uma sequência admirável, com alguns pormenores absolutamente geniais.
Os arbustos que cedem à passagem de O`Brien, a atmosfera onírica, a sensação
de pecado que emerge das imagens e Margaret Livingston a retocar o rosto e os
lábios, assim que se apercebe da aproximação daquele, tudo demonstrado de forma
exclusivamente visual, sem a protecção de qualquer som.
Depois há os beijos e vamos percebendo – sempre e só, através da força das
imagens - o domínio que aquela mulher, vestida de preto (difusamente iluminada,
por contraste com a claridade que sempre recai sobre a simples Janet Gaynor),
tem sobre a personagem de George O`Brien e a forma como este dificilmente
resiste aos seus encantos.
Exemplo paradigmático disso, é como apesar de, ao princípio, se horrorizar
com a sugestão que ela lhe faz de matar a mulher, acabar por admitir essa
realidade, assim que vislumbra, num espantoso plano sobreposto, a loucura da
movida da cidade e as possibilidades que se lhe abrem quando antevê a
possibilidade de a gozar com uma mulher tão atraente e apetitosa.
Por isso, gosto tanto desta fotografia.
O`Brien, vergado ao fascínio do mal,
irreversivelmente seduzido pela perversidade absoluta daqueles olhos negros, do
cabelo preto, do chapéu escuro, da blusa preta, das pernas com meias de rede,
dos sapatos de salto alto e de tudo o que este conjunto promete em conjugação
com as delícias do mundo da cidade.
Sabemos todos a continuação da história e como O`Brien passará todo o filme
a gerir a culpa de ter preparado o assassínio da sua mulher, a procurar
redimir-se e como encara o naufrágio desta como uma punição pelo seu anterior
comportamento.
Naquela tarde de Outubro de 1981, estava ainda longe de saber que a culpa seria
um conceito que me apaixonaria e que me iria perseguir a vida toda em termos
profissionais.
Em Sunrise, esse percurso criminal, de luta entre a honesta ruralidade e a maldade citadina, de culpa e redenção,
começa nessa sublime sequência inicial, que esta fotografia reproduz
parcialmente.
Também foi com Sunrise, que
iniciei um percurso do qual me orgulho como pessoa.
Sunrise foi o primeiro dos muitos
filmes que vi na Cinemateca, a casa onde aprendi a ver cinema.
Também por isso, Sunrise é um dos
filmes da minha vida.
Renato Barroso
Juiz Desembargador
Nota: Este texto foi publicado originalmente na página digital da Cinemateca - Museu do Cinema
no âmbito da série "Textos e Imagens".
segunda-feira, 4 de junho de 2018
terça-feira, 29 de maio de 2018
quarta-feira, 23 de maio de 2018
sábado, 19 de maio de 2018
quinta-feira, 17 de maio de 2018
ANDRÉ BAZIN
Nota: Este texto foi originalmente publicado na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
“Qu’est-ce que le cinéma ?”
O
que é André Bazin ? Obviamente, a pergunta não visa a identidade formal do
autor; sabemos, e afirmámo-lo em texto anterior desta rubrica “Textos &
Imagens” dedicado ao nº 1 da revista “Cahiers du Cinéma”, que é o mais importante
e influente crítico e teórico do pós-guerra. A medida dessa importância e dessa
influência é sobejamente conhecida, sobretudo entre os autores da Nouvelle
Vague. Sobretudo, mas não só; basta que pensemos na plêiade de autores (já não
autores de cinema, mas pensadores de cinema) que, dos dois lados do Atlântico,
se reclamam seus herdeiros e também seus contestários. Aliás, a contestação é
uma outra forma de reconhecimento, manifestando-se muitas vezes através de uma
figura a que Harold Bloom chamou “angústia da influência” (ver “O Cânone Ocidental”).
Assim,
a pergunta inicial dirige-se a um núcleo de sentido que tem a sua origem no
modo como jogou “o jogo das categorias”, entendendo-se “categorias” no sentido
filosófico de conceitos e constelações de conceitos que criam zonas de
discursividade progressivamente radicadas numa determinada cultura, fazendo
evoluir o horizonte de inteligibilidade do(s) objecto(s) sobe os quais se
debruçam. Utilizando uma expressão de Michel Foucault, a ordem do discurso de
André Bazin inaugura aquilo a que mais tarde se chamaria “cinefilosofia”, ou
seja de um tipo de pensamento que pesquisa a essência do cinema recorrendo à
pura forma interrogativa da disciplina filosófica, a pergunta “o que é”, que
remete para uma ontologia do cinema. Se dúvidas houvesse sobre a afirmação do
acto fundador de uma reflexão filosófica sobre o cinema (apoiada em categorias
e conceitos ), bastaria a referência a uma dimensão ôntica do objecto para que
todas essas dúvidas se dissipassem. No
texto fundamental, datado de 1945[1],
“Ontologie de l’image photographique”, Bazin expõe o seu postulado : “O cinema
aparece como a ealização no tempo da objectividade fotográfica”[2].
Evidentemente, a abordagem filosófica do cinema por André Bazin conhece um
limite, que é também uma possibilidade: a sua relação com a realidade e é
precisamente nessa relação com a realidade, ou melhor, é na teorização dessa
relação entre o cinema e a realidade que se funda a reflexão filosófica. Até
aqui, nada de muito relevante se pode extrair destas formulações; é um dado
adquirido que o cinema regista mecanicamente a realidade e a reproduz também de
um modo mecânico, numa relação documental. Aquilo que, a nosso ver, representa
o salto quântico do pensamento de André Bazin é a crença na capacidade
cinematográfica de, ao revelar o real, participar efectivamente no próprio ser
do real. Dir-se-á que esta caracterização sumária do pensamento de Bazin
carrega consigo um vocabulário tecnicamente filosófico, tomado de empréstimo à Ontologia,
a mais grave e metafisicamente comprometida disciplina filosófica. Para
dissipar essa impressão, dizemos que o vocabulário é o do próprio Bazin que,
descendo ao nível da matéria, refere numa das mais luminosas páginas destes
ensaios a principal qualidade do acto revelatório existencial do cinema: o
facto de “tocar a carne e o
sangue da realidade” [3]. É por isso que à montagem , que retalha e
escamoteia o real, Bazin prefere o plano-sequência que deixa aflorar a vibração
das coisas, o que nos faz pensar no imenso talento do acaso e na sua quota
parte de responsabilidade na criação cinematográfica; se substituirmos “coisas”
por “fenómenos” teremos uma outra perspectiva filosófica que o teórico não
desdenharia: a abordagem fenomenológica, o real tal como ( nos) aparece e se
manifesta (perante a câmara). O que introduz ainda uma outra perspectiva
correspondente a um âmbito de reflexão filosófica por excelência: a ética, pela
qual mede as implicações morais do registo mecânico / técnico do qual refere a
principal característica: a fidelidade. O neo-realismo, levado ao apogeu por
Roberto Rossellini, fornece a Bazin um magnífico exemplo prático da sua teoria.
Diferentemente das escolas artísticas que o precederam, o realismo do neo-realismo, na obra de Rossellini
mais do que na obra de qualquer outro cineasta, reside menos nos temas que na
estética, a acreditarmos no seu credo:
“As coisas estão aí, porquê manipulá-las ?”, pergunta o cineasta
italiano. Para Bazin, o neo-realismo é uma tomada de consciência do real, que
produz um novo tipo de imagem, a imagem-facto : “Sem dúvida a sua consciência,
como toda a consciência, não deixa passar todo o real, mas a sua escolha não é
lógica, nem psicológica: é ontológica no sentido que a imagem da realidade que
nos é restituída permanece global”[4].
Essa tomada de consciência (um termo com uma longa carreira filosófica) produz
um grão de realidade, “um acrescento de realidade no ecrã”.[5]
O fervor com o
qual foi recebido o pensamento baziniano é emblemático da filosofia do cinema ,
em particular da tradição crítica da revista “Cahiers du Cinéma”: os seus fiéis
depositaram uma fé imensa no seu pensamento, portador de valores morais e
criador de uma extraordinária foça simbólica. Eric Rohmer, talvez o seu
herdeiro mais directo (não filmar senão aquilo que é), mediu, apaixonadamente,
o impacto dessa teoria reflexiva. Bazin foi o primeiro a oferecer ao cinema a
sua consciência : “À maneira de um explorador, Bazin entrega-se a uma
verdadeira prospecção no interior do ser do cinema”. [6]
Santificando a objectividade cinematográfica, Bazin não realizou nada menos do
que uma “revolução coperniciana, análoga à que Kant realizou em filosofia.
Copérnico deslocou a perspectiva da Terra em direcção ao Sol, Kant do objecto
ao sujeito, e Bazin , inversamente, do sujeito ao objecto”.[7]
Dessa adoração do ser puro do cinema à religião de um cinema de autor
auto-produzido, em ruptura com forças profissionais, económicas, políticas e
ideológicas, não foi mais do que um passo.
[1]
Utilizamos neste texto a compilação de ensaios Qu’est-ce que le cinéma ?, editada em 1990 pelas Éditions du Cerf,
que constitui uma selecção de textos constantes da edição em quatro volumes,
publicada em 1958 pela mesma editora e que se encontra disponível para consulta
na Biblioteca da Cinemateca. De igual modo, encontram-se disponíveis as edições
nas línguas portuguesa e inglesa desta versão reduzida.
[2] “Le
cinéma apparaît comme l’achèvement dans le temps de l’objectivité
photographique”, ibidem
[3] “Le
réalisme cinématographique et l’école italienne de la Libération” ibidem
[4] “Sans doute sa conscience, comme toute
conscience, ne laisse-t-elle pas passer toute le réel, mais son choix n’est ni
logique ni psychologique: il est ontologique en ce sens que l’image de la
réalité qu’on nous restitue demeure globale”
[5] “un plus
de réalité sur l’écran”, ibidem
[6] ROHMER,
Éric, “La «Somme» d’André Bazin” in Le
Goût de La Beauté, Paris, Cahiers du Cinéma, 1984. Este volume encontra-se
disponível para consulta na Biblioteca da Cinemateca.
[7] “[…) une
révolution à la Copernic, analogue à celle que Kant accomplit en philosophie. Copernic
a déplacé la perspective de la Terre vers le Solel, Kant de l’object vers le
sujet, et Bazin, à l’inverse, du sujet vers l’objet”. ibidem
terça-feira, 15 de maio de 2018
sábado, 12 de maio de 2018
COMO UM COMBOIO A RASGAR A NOITE
Na
solidão escura do sono, no frio sem respostas para tantas perguntas que se
continuam a fazer, nas lágrimas solitárias de uma almofada absorvente, na
insónia teimosa de um tempo que passa e continua a passar, num caos de sombras
decorado de medos, em tudo o que nos perturba sem nos deixar acontecer…alguma
coisa…desejamos que alguma coisa aconteça, que interrompa um ciclo sem luz,
alguma coisa que apareça das trevas da noite e que a rasgue de uma vez. Um
comboio ruidoso e libertador a caminho do seu destino. Um trilho metálico que
gema a cada volta das rodas da locomotiva. Qualquer coisa que se chama com um
grito desesperado de interrogação, de raiva e de insistência em cavar uma vala,
abrir um espaço de luz que nos alivie por instantes, que nos aqueça, que nos
faça uma festa de cabeça e nos dê por pouco tempo que seja a certeza de um
conforto, a tranquilidade de um sono despreocupado, a memória de outro lado no
universo. Como um comboio a rasgar a noite, uma massa metálica em movimento, uma
linha aberta que por onde passa não deixa nada igual ao que estava. Um comboio
a rasgar a noite e a dar respostas a seres solitários que desesperam no
silêncio. Os carris desenhados pelo correr ritmado do peso das rodas…ou será
uma bateria a marcar o ritmo, a dar a entrada para os primeiros acordes? Um
farol a acordar cada buraco escondido,
todo e qualquer espaço adormecido obrigado a acordar, um apito estridente suspenso
no ar embriagado de vertigem que explode, uma direcção, um destino, uma
velocidade alucinada. Ou então uma guitarra rendilhada a saltitar ao longo de
uma escala, um solo, uma melodia. Um comboio a rasgar a noite como uma seta que
assobia e atravessa o vento a uma velocidade vertiginosa. O baixo a acompanhar
o bater do bombo da bateria a delimitar os cantos do ritmo com arranques
roufenhos. E depois uma voz, feminina, doce e ao mesmo tempo grave, uma voz de
menina a trautear sem letra, apenas uma área inventada que afaga embalando. Com
todos os componentes no seu lugar os seres embarcam preparando-se para
desfrutar a viagem. Agora sim. A noite pode continuar a ser noite, o frio, o
escuro, a solidão e o medo. A imensa tela negra pode continuar absoluta,
imponente, pesada sobre a cidade. O comboio arrancou e já nada o vai conseguir
fazer parar. E lá dentro há passageiros, espectadores, companheiros de viagem
que se empolgam com o som, que se maravilham com a velocidade, que vibram com a
harmonia. A sua viagem é agora tudo o que lhes fazia falta para melhor
atravessar o vale das sombras. A música é o seu guia por instantes, as canções
as carruagens que se vão seguindo atreladas umas às outras. Eventualmente o
comboio acabará por chegar ao seu destino, por parar. Mas nessa altura já terá
cumprido a sua função. Não sei explicar quem sou mas reconheço-me se me
encontrar…
Como
um comboio desembestado a rasgar a noite com um potente farol a abrir caminho
nas trevas, uma canção ritmada, uma harmonia embalada, um espaço aberto de
esperança ou uma pausa para respirar. Um tempo limitado e vertiginoso em que
por uma fracção de segundo os seres se apresentam a si mesmos, abraçando-se,
reconhecendo-se. Um apito estridente a envergonhar o silêncio. Um tubo metálico
que passa numa enorme pausa onde nos conseguimos encontrar. Uma viagem ao
interior de quem somos, de quem nunca deixámos de ser. Uma vertigem que passou
por aqui e que nos fez aguardar a manhã com muito mais ânimo, vontade e
capacidade para continuar.
Artur
terça-feira, 24 de abril de 2018
sexta-feira, 20 de abril de 2018
quarta-feira, 18 de abril de 2018
domingo, 15 de abril de 2018
sábado, 14 de abril de 2018
GAIVOTAS AO FIM DA TARDE
Ao fim da tarde, mais ou menos à
mesma hora, quando resolvo ir lá fora fumar um cigarro, é como se houvesse
encontro marcado. Elas passam em bando sempre de Sul para Norte em direcção ao
mar. São para aí umas vinte gaivotas em formação desordenada. Fazem-se anunciar
porque emitem dois tipos de pios, um logo a seguir ao outro. Dois tipos de pio
distantes entre si. Julgo que no pelotão compacto há uma, talvez o guia, o
"fila guia" para usar uma expressão de cavalaria, que pia primeiro.
Responde-lhe outra gaivota (ou outras) mais distante da formação. Como se a
primeira quisesse dizer: "Estamos aqui…vamos a passar…junta-te a
nós." A outra responde e começa a aproximar-se. Quando já estão todas
juntas calam-se e apontam ao mar.
Todas as tardes mais ou menos à mesma hora elas passam por
aqui quando estou lá fora a fumar um cigarro. Como bando organizado e
instintivamente conhecedor do seu rumo agrupam-se desenhando várias formas
quase geométricas em sucessivas modalidades de formação. Uma esquadrilha da
passarada, a voar alto sempre na mesma direcção. Como almas entre encarnações,
preocupadas em não deixar ninguém para trás, organizadas de acordo com a
variação dos elementos. Há sobre a casa e sobre mim um espectáculo posto em cena
pela Natureza que nenhuma mão humana organizou. Como se fosse parte de uma
espécie dispensável que se não existisse também não fazia diferença nenhuma
para a organização da vida. Ou então elemento de uma harmonia muito maior que a
minha espécie, ou a delas, ou mesmo de todas as espécies num gigantesco
universo. Nesta actuação sou um simples espectador, função passiva de quem não
só se deslumbra como aprende qualquer coisa. Ou então elemento constitutivo de
um quadro em que duas realidades se encontram à mesma hora como vizinhos e
se cumprimentam fraternalmente. Tudo isso ou coisa nenhuma, que importa?
As gaivotas agrupam-se nos céus
escuros do fim da tarde enquanto as observo cá de baixo e tudo pára em espasmos
de contemplação e harmonia.
Deito o cigarro fora e aceno. Bom voo. Até amanhã.
Artur
sexta-feira, 13 de abril de 2018
terça-feira, 10 de abril de 2018
segunda-feira, 9 de abril de 2018
sábado, 7 de abril de 2018
quarta-feira, 4 de abril de 2018
quinta-feira, 29 de março de 2018
quarta-feira, 28 de março de 2018
terça-feira, 27 de março de 2018
OS VENTOS DA HISTÓRIA NUNCA MENTEM
Estamos a viver tempos que só não
lhes chamaria estranhos na medida em que se inscrevem na ordem repetitiva da
História. Tudo acaba por se repetir embora nunca da mesma forma. Em espiral
(ascendente ou descendente depende do ponto de vista). E não é preciso avaliar
os acontecimentos à lupa para deles conseguir obter uma visão mais ou menos
transparente, para encontrar atrás do folclore, do circo propagandístico em que
se transformou a comunicação social, uma outra realidade, uma outra
intencionalidade quanto à forma como se pretende que as populações pensem. Há
nos últimos tempos duas referências que me chamam demasiado a atenção para não
conseguir ficar calado. São elas o assassinato do ex espião russo em Inglaterra
e a prisão de dirigentes catalães acusados do crime de sedição (incitação à
rebelião, levantamento popular). Denominadores comuns das duas situações, a
ignorância estimulada e a desagregação de um império.
Na Catalunha aguarda-se a próxima
colecção de disparates. Puidgemont foi demasiado depressa demasiado longe,
Rajoy utilizou a força excessiva e desadequada, o rei escondeu-se atrás do
chefe do governo em vez de assumir as suas responsabilidades de chefe do estado,
logo, elemento agregador, árbitro, moderador de conflitos. Nesta história onde
não há heróis, apenas incompetentes, uma questão política que só poderá ter um
desenvolvimento e uma conclusão política foi tratada (e mal) como uma questão
judicial; um sentimento de autonomia e independência foi transformado numa
afronta directa à potência ocupante sem recursos para a resposta musculada; a
instituição de onde se reconhece a postura de equilíbrio e ponderação das
décadas anteriores (aquela que conduziu o processo de transição democrático e
que o reafirmou quando Tejero Molina ocupou o Parlamento, que encerrou os
tempos negros da luta armada da ETA, que mandou calar ditadores em directo em
cimeiras internacionais, e que , por fim tornou a Espanha num estado soberano
democrático e europeu aos olhos do mundo) é hoje uma sombra daquilo que foi.
Aguarda-se a próxima sucessão de
disparates, dizia eu. Os dirigentes catalães estão detidos não pelo crime de
sedição (que a meu ver não cometeram) mas sim por crime de pensamento. Nessa
linha Rajoy vai ter que prender mais alguns milhões de catalães que votaram
favoravelmente no referendo que previa a possibilidade da independência catalã.
E os independentistas? O que é que se
segue? A revolta armada? Porque com o regresso de conceitos como "presos
políticos", "exílio", etc, daqui a não muito tempo já não
estamos a falar num estado democrático. Porquê? Porque num estado democrático é
suposto aceitar as opiniões divergentes, é suposto dialogar, negociar,
encontrar compromissos. A última vez que uma situação semelhante teve lugar em
Espanha os guerrilheiros da ETA eram condenados à morte pelo garrote e o carro
de um primeiro ministro voava à altura de quatro andares num atentado
terrorista. E agora Filipe VI? Qual é a Espanha que sua majestade está
preparado para dirigir? A continuação do legado do seu pai, uma nova guerra
entre os seus súbditos ou o regresso aos tempos negros do franquismo? A União
Europeia também tem uma palavra a dizer sobre a crise da Catalunha. Ainda
ninguém percebeu é qual…
E por fim uma palavra de desagrado
para o PSOE e de certa forma toda a esquerda espanhola que neste processo ou
assobiou para o lado ou se escondeu atrás dos acontecimentos em segundo plano. Espanha
é um estado composto de várias nações e é no equilíbrio, no diálogo e no
compromisso que assenta a sua vitalidade. Ignorar a identidade cultural,
linguística, ignorar a diferença para impôr a autoridade das botas da polícia,
dizem os ventos da História, acaba sempre mal.
Por fim o assassinato de um ex
espião russo em solo inglês. A histeria do ocidente a expulsar diplomatas
russos. Uma história muito mal contada, a fazer lembrar as armas de destruição
maciça do Iraque que afinal não existiam. Uma primeiro ministro britânica a
tratar do Brexit com a delicadeza de um elefante numa loja de louças que diz
que foram os russos mas insiste em não apresentar provas com o coro e a
aprovação do império em declínio que viu furados os seus planos para tomar
conta da Síria e que vai assistindo à perda da hegemonia isolada no mundo com a
ascensão de novas potências a descartar o dólar enquanto moeda de referência
nas transacções petrolíferas. Nada tenho contra ou a favor de Putin, não mora
perto de mim. Mas já quanto aos Estados Unidos e Inglaterra, assusta-me ver os
destinos destas duas grandes nações nas mãos de incompetentes em estado de
negação. Lembram-se da I Guerra Mundial? Começou porque um Arquiduque foi
assassinado. A partir daí, de erro em erro a Europa mergulhou numa das suas
mais negras noites em que milhões se mataram alegremente para nada. No fim quem
é que ganhou alguma coisa com isso? Bancos e conglomerados económicos. É
preciso pensar duas e três vezes de cada vez que as notícias são despejadas em
cima de nós. Já repararam que as estações de "informação"dizem todas
a mesma coisa sem diferenças que se vejam? Que as notícias são bombardeadas
vindas do nada até à exaustão e depois desaparecem? Hoje só se fala de
amendoins, daqui a um mês só existem melões. Ao crimethought (conceito orwelliano de crime de pensamento) dos
catalães juntamos o pensamento
monolítico de verdade variável. E toda esta conjugação, todo este cenário nos
vai afastando quer da realidade quer da nossa natureza. Ao aceitarmos como
naturais as atrocidades do passado, ao entendermos como inevitável a destruição
e o cataclismo humano, ao sermos carneiros entregues aos lobos para que nos
devorem. Os ventos da História sopram sempre mais do que uma vez. E nunca
mentem.
Artur
segunda-feira, 19 de março de 2018
THE MASS ORNAMENT - SIEGFRIED KRACAUER
The Mass Ornament . Weimar Essays, Siegfried
Kracauer Siegfried Kracauer; translated by Thomas Y. Levin.-London : Harvard
University Press, 1995
Na introdução à versão
norte-americana de “Das Ornament der Masse”, Thomas Levin chama a atenção para
uma metodologia programática presente na secção de abertura do ensaio com o mesmo
título, datado de 1927, na qual Kracauer enuncia o modo como a insignificância
dos artefactos quotidianos os capacita para se tornarem índices ou sintomas de
condições históricas específicas:
“A
posição que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinada com
maior rigor a partir de uma análise de expressões inconspícuas ao nível
superficial do que a partir dos juízos que essa época produz a propósito de si
mesma. Já que esses juízos são expressões de tendências de uma era particular,
não oferecem testemunho conclusivo sobre a sua constituição geral. Pelo
contrário, as expressões ao nível superficial, em virtude da sua natureza
inconsciente, providenciam acesso não mediado à substância fundamental do
estado das coisas. Correlativamente, o conhecimento do estado das coisas
depende da interpretação dessas expressões de nível superficial. A substância
fundamental de uma época e dos seus impulsos desapercebidos iluminam-se
reciprocamente”.
Como se entende este programa e
quais as suas consequências no esquema interpretativo desenvolvido por Kracauer
ao longo dos ensaios que constituem esta colectânea ? Noutros termos, como é que o domínio da realidade empírica –
e em particular as suas superfícies, previamente rejeitadas como reino do vazio
e da ausência – veio a assumir um papel tão central no pensamento de Kracauer ?
Cremos que tal se deve a uma alteração radical da compreensão da filosofia da
história, fruto de um longo diálogo com Walter Benjamin e
Theodor Adorno, que redunda na substituição de um modelo histórico estático
como queda ou declínio por uma concepção da história como processo de
desencanto e de antagonismo entre as forças da natureza e as da razão. Por
outro lado, o estudo sobre as novelas detectivescas revela uma combinação dos
seus interesses filosóficos iniciais com a investigação da cultura de massas;
ostensivamente um estudo sobre a acção detectivesca, esse ensaio conhece uma
dívida para com a obra de Kierkegaard, cujo modelo de esferas interrelacionadas (estética, ética e religiosa) foi apropriado
por Kracauer. Esta importação de Kierkegaard
só aparentemente é arcaica; tal como Hannah Arendt comentou a Anson
Rabinbach (“In The Shadow of
Catastrophe: German Intelectuals Between Apocalypse And Enlightment”), depois
da I Guerra Kierkegaard era o filósofo do dia. Que razão dita a profunda influência de um pensador tão
intensamente cristão em intelectuais de confissões religiosas diferentes é uma
questão que não pode ser respondida aqui, bastando que fiquemos com a ideia de
que o pensamento de Kierkegaard
configurou a noção de vocação crítica desenvolvida por Kracauer e que
esse pensamento oferece um enquadramento trágico para a agenda
político-cultural de Kracauer durante o período de Weimar.
No que ao cinema diz respeito,
Kracauer é sobretudo conhecido pela obra “From Caligari To Hitler : A
Psychological History Of The German Cinema” de 1947, na qual apresentava uma história do
cinema alemão dos anos entre as guerras mundiais, argumentando que os seus
temas reflectiam as condições psicológicas e sociais que conduziram ao nazismo,
e também pelo livro “Theory of Film: The Redemption of Physical Reality” (1960),
no qual assume a noção chave que subjaz à sua conceptualização de estética
cinematográfica “material”: o cinema é
essencialmente uma extensão da fotografia, partilhando com esse médium uma
marcante afinidade com o mundo físico e visível que nos rodeia. O cinema
torna-se ele próprio quando regista e revela a realidade física. Apesar da importância capital destas duas
obras, acreditamos que elas estão longe de sintetizar todo o pensamento
cinematográfico de Kracauer, sendo justamente nos ensaios dos anos 20 aqui
coligidos que podemos encontrar as perspectivas, antevisões e visões
prospectivas que hão-de configurar as teorizações posteriores, conferindo-lhes
um sentido e uma lógica interna que, de certo modo, as tornou um cânone.
Assim, a estética do cinema construída
por três dos mais importantes pensadores
do século XX – Theodor Adorno, Walter Benjamin e Sigfried Kracauer, abre a
possibilidade de pensar a experiência da modernidade sob a perspectiva de uma
crítica filosófica que opera a partir da
arte e dos meios de comunicação de massas.
Habitualmente, a maioria dos trabalhos no domínio da teoria crítica sobre
a temática da arte, da tecnologia e da cultura de massas reduzem o campo
problemático a uma caracterização da indústria cultural de Adorno e Max
Horkheimer como pessimista e elitista oposta ao optimismo tecnológico que
Benjamin desenvolveu no ensaio “A Obra
de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Mecânica”. É neste contexto que se revela a importância
fulcral da obra de Siegfried Kracauer , autor central para fundar e discutir ao mesmo tempo uma teoria do cinema.
Os escritos coligidos neste volume, cujo
significativo subtítulo “Weimar Essays” remete imediatamente para uma época
histórica e as suas determinações, para
além de críticas de cinema, são constituídos por recensões de novelas
detectivescas e literatura de divulgação, textos sobre o circo, a cidade, o
desporto, o teatro, entre outros) e manifestam exuberantemente a intenção de
desenvolver uma estética cinematográfica a partir de uma perspectiva da
modernidade. Ao longo da obra torna-se evidente uma outra translação muito
significativa do pensamento de Kracauer: a compreensão pessimista da
modernidade, que compartilha com Max Weber e Georg Simmel, entre outros, que afirma a privação humana de um horizonte
de experiência que permitiria aos homens conferir sentido aos processos
relacionados com a técnica, a ciência e a economia capitalista, evolui para uma
curiosidade astuta em relação aos fenómenos da vida moderna, em particular, a
cultura de massas. O objectivo passa a
ser, não o fundamento de uma noção expandida de modernismo estético, mas
relacionar a fotografia e o cinema com aquilo que, para o autor, define o
século XX : a produção, o consumo e a emergente sociedade de massas. Se
quisermos levar mais longe e aprofundar o contraste com o pensamento de Walter
Benjamin, diremos que, onde Benjamin via o esvaziamento do tradicional sentido
aurático como algo de positivo que poderia libertar as
massas de qualquer tendência de queda no totalitarismo (nazi ou fascista),
Kracauer acreditava que a modernidade representava “um esvaziamento de sentido,
uma bifurcação do ser e da verdade” (Thomas Levin “Introduction”). Portanto, ao
contrário de Benjamin, Kracauer descreve o modo como a ascensão das massas
mediatizadas é acompanhada pelo esvaziamento de sentido – um esvaziamento
impulsionado pelos valores capitalistas que competem com e minam as formas
não-fetichizadas de conferir poder às massas.
Arnaldo Mesquita
sexta-feira, 16 de março de 2018
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quinta-feira, 8 de março de 2018
segunda-feira, 5 de março de 2018
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