sexta-feira, 4 de abril de 2008

PASSAGEM DOS DIAS DO PESCADOR


(Foto de Sofia P. Coelho)
Vou-me enrolando com o Tempo numa relação tranquila sem grandes sobressaltos. Uns dias trabalho, outros folgo. Umas vezes escrevo, outras nem por isso. Não me apetece. E o que acontece é que consigo ter uma relação bem mais agitada e sofredora com o romance que tenho em mãos do que com o Tempo. O caderno olha para mim de cima da secretária com aquele olhar silencioso mas ao mesmo tempo inquisitivo. -Então? Nunca mais é Sábado? Quando é que isto acaba, afinal?
“Quando é que isto acaba?” Há-de acabar, seguramente, só não te sei dizer quando. Hoje apetece-me esticar ao Sol como um lagarto em frente a uma revista e uma “bica” na esplanada. Há algum problema com isso? Devo-te alguma coisa, Literatura? Não, não te devo nada. Tal como nada devia à Vida quando aqui cheguei e no entanto, ela nunca se cansou de me cobrar sempre que podia, dívidas inexistentes. Exactamente como tu. Cobras-me aquilo que eu não te devo. Nunca te convences que se te der alguma coisa é só porque me apetece. Não me alimentas, não me proteges, não me pagaste a educação, não me compraste roupas. Faço-me a ti como me fiz à Vida. Umas vezes com êxito, outras com sofrimento. Agora dever-vos alguma coisa, nunca.
Sou mais como um pescador do que um escritor, na medida em que ando sempre “à pesca”, na recolha...
Um amigo meu diz que escrever um romance é como andar numa praia deserta ao fim do dia a recolher lenha para uma fogueira. Quem já se viu nesta situação entenderá perfeitamente a metáfora. Numa praia deserta aparecem aqui e ali, muito raramente uns pedaços de cana, destroços de madeira que deram à costa. Com um bocado de sorte não estão ainda húmidos. É difícil. Não quer dizer que não se consiga. Mas custa, pôrra, sai das entranhas da alma. E quando acabamos de acender uma fogueira inebriamo-nos com o sucesso. Mas é Sol de pouca dura. Ou porque já nos sentimos enervados em acender a próxima ou por medo de falta de ideias que não a permitam existir. Garantido é que, em cada fogueira acesa, deixamos um pouco da alma. Daí o stress, as depressões, os dias em que mandamos a Literatura às malvas.
Como pescador, recolho memórias e histórias. Umas vezes aproveitáveis, outras nem por isso. Muito é deitado fora por não servir para nada. O resto escama-se, tira-se as entranhas e tenta-se assar em crónicas, em extractos de prosa para alguém ler. Sem esquecer que tudo tem a durabilidade da escrita na areia. Até à próxima preia-mar.
Sou um pescador de palavras contadas pelos outros, recolector paciente e persistente de lenha furtiva para a transformar em chama de um romance. Não o faço por mais nenhuma razão que não a da sobrevivência. Se parasse, começava a crescer “para dentro” até implodir como uma estrela. Para evitar o buraco negro despejo palavras no papel. Umas vezes faz sentido, outras sentido nenhum. Tenho de comer, de me aquecer à noite. Corro pela praia todos os dias com uma excelente relação com o Tempo. É o único que não me cobra nada, que não me obriga a coisa nenhuma. É com ele que converso quando quero conhecer outros como eu que já andaram nesta praia. E ele nunca me nega a informação, os registos pesqueiros dos que pescaram antes de mim. É a eles que devo alguma coisa…aos que escreveram e se foram…como eu irei um dia. E o meu amigo Tempo fará o favor de entregar os meus relatos aos próximos utilizadores desta praia. À Vida e à Literatura não lhes devo nada.
ARTUR

4 comentários:

Anónimo disse...

Larguem-me!

Carlos Lopes disse...

Há uma grande diferença entre ser pescador de palavras e pescador de palavras impossíveis...
Abraço, Artur.

E ninguém vai largar a Sofia, estou em crer...

Anónimo disse...

Mais uma vez a união perfeita de palavras com imagens...é mesmo para se voltar aqui.Sempre!

Clarice

Artur Guilherme Carvalho disse...

Sof...gotcha!
CL: A Sofia estava a entrar no espírito do texto. Também ela se dá mal com as imposições, com as obrigações que nos impomos a nós proprios todos os dias. Ninguém a larga de certeza. 1 abraço.
Clarice: u bet. Thanks.