Guerra colonial. Um debate delicado foi aberto pela exumação dos restos mortais de onze soldados portugueses que perderam a vida com a arma na mão, em Guidaje, Guiné-Bissau. Nem toda a gente está de acordo com a ideia de que o campo de batalha seja a sepultura mais digna para um combatente
O Dia do Combatente, celebrado ontem, na Batalha, é este ano marcado, se não directa, pelo menos indirectamente, pela questão da exumação, em Guidaje, na Guiné-Bissau, dos restos de onze militares portugueses, mortos em combate, em 1973, e sepultados na zona onde se situava um pequeno aquartelamento, já muito perto da fronteira com o Senegal.
A operação de levantamento das ossadas, de acordo com o major-general Lopes Camilo, vice--presidente da Liga dos Combatentes, foi desencadeada no quadro de um plano geral de intervenção que pretende concentrar os restos de militares caídos em combate em determinados cemitérios locais, que serão cuidados e eventualmente transformados em espaços de memória, que podem ser até de memória partilhada com os países onde os cemitérios se localizem e dar origem ao chamado "turismo de memória".
No caso da Guiné-Bissau, a Liga dos Combatentes tem um protocolo já firmado com o Instituto de Defesa Nacional guineense, prevendo-se a concentração das ossadas, depois da sua rigorosa identificação, em cemitérios de Bissau, Babadinca, Bafatá e Gabú.
No caso das onze exumações agora feitas, depois da identificação, que ainda não foi feita, sendo, por isso, os restos considerados como de "soldados desconhecidos", serão as ossadas depositadas no cemitério de Bissau, a menos que os familiares decidam fazer a sua transladação para Portugal, cujas despesas terão de ser suportadas pelas próprias famílias, já que a Liga apenas actuará, nesses casos, na identificação dos militares e no apoio à remoção de barreiras burocráticas que simplifique os procedimentos legais necessários à transladação.
Por localizar estão ainda os restos de 20 outros militares, de incorporação sobretudo guineense, e sepultados na mesma região de Guidaje, que era, em 1973, uma das mais aquecidas zonas de guerra.
Ninguém fica para trás?
Das onze sepulturas referenciadas, com levantamento de ossadas, três dizem respeito a pára- -quedistas, alvos da atenção da respectiva associação, que permanece unida e aparentemente fiel à ideia de que "ninguém fica para trás", e do grande impulso emocional resultante de imagens recentes, e traumáticas, de cemitérios ao abandono em África, com campas depredadas de antigos combatentes.
Nasceu aí um movimento cívico de antigos combatentes, visando "não esquecer os companheiros de armas que em terra do então ultramar tombaram para sempre, dando a vida pelo país" e firmando-se naquilo que é sublinhado como "sentido da honra e dever de lealdade para com os que morreram por Portugal".
O major-general Lopes Camilo situa, porém, a operação no âmbito restrito de uma acção envolvendo a Liga dos Combatentes, o Ministério da Defesa, a Universidade de Coimbra e o Instituto de Medicina Legal. O sucesso da localização e levantamento das ossadas, e uma eventual transladação dos "páras" para Portugal, pode, no entanto, iniciar, pela mediatização e choque emocional da operação em Guidaje, um delicado processo, chocando-se teses que defendem o regresso a casa de todos os que morreram em África ou sustentam que devem os mortos ficar na dignidade dos campos de batalha onde tombaram.
Augusto de Freitas, hoje um neuropsicólogo, sargento em meados dos anos setenta, com missões cumpridas em Moçambique, de 1973 a 1975, nas zonas operacionais de Tete e Nangade e que lidera, agora, a Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra, não esconde uma crítica dura: "É uma vergonha a falta de respeito pelos que lutaram pela Pátria e os governos de Portugal têm esquecido os que morreram e ficaram enterrados em cemitérios que estão hoje ao abandono e que têm sido, em alguns casos, depredados!"
Augusto de Freitas, admitindo que o assunto é complexo, continua à espera de que o País enfrente a necessária tarefa de fazer regressar os restos dos que perderam a vida na guerra colonial, algo que tem de ser feito, mesmo sabendo que essa operação "vai mexer com as emoções do País e dos familiares dos que tombaram em combate".
Há, porém, quem considere que "os mortos são uma marca do império", pessoas que "estão onde, se calhar, devem estar", em locais "onde combateram e morreram", não havendo "sepultura mais digna do que a que foi cavada no próprio campo de batalha".
Defensores desta tese convidam a uma profunda e sensata reflexão que evite a abertura de uma "caixa de Pandora". O regresso dos restos de apenas alguns antigos combatentes poderá levar muitas famílias a reivindicar o regresso também dos seus mortos. "E se não houver esses mortos?", perguntam. É que não poucos combatentes morreram em circunstâncias que não permitiram sequer a recuperação de fragmentos e o antigo "comando", agora escritor, Matos Gomes, combatente na zona de Guidaje, limita-se a contar que numa operação de resgate de vítimas do rebentamento de uma mina, apenas conseguiu identificar, entre inúmeros minúsculos fragmentos, "a roda dentada da caixa de velocidades do veículo"…
DIÁRIO DE NOTÍCIAS 6 de Abril de 2008
Paula Borges
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