terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O ESQUECIMENTO DO SILÊNCIO

 


Talvez alguém se tenha esquecido de apagar a luz à saída. Talvez… É bem possível, mas não me lembro. Talvez alguém tenha dito ou ouvido alguma coisa antes da cidade ter ficado deserta, sem carros e sem pessoas. Só as luzes das ruas ficaram acesas para melhor iluminar a solidão urbana, os restos de uma chuva miudinha acabada de cair, os brilhos nocturnos que funcionam como pequenos espelhos, fragmentos invertidos, outra realidade. Talvez…

Talvez tudo isto não passe de um sonho, uma piada de mau gosto como muitos sonhos costumam ser. Mas se assim é deixemo-nos levar, aproveitar a viagem e explorar. Pode ser que se encontre algum bar aberto e não ter que pagar as bebidas. Pode ser que o peso do silêncio acabe por revelar alguma coisa. Pode ser que se consiga tirar algum proveito deste cenário imenso onde a única forma de movimento sou eu.

Se todos se foram embora é porque devem ter ido para algum lado. E por que caminho terão seguido? Pelo mar? Pelas estradas que saem da cidade?

Seja como for esqueceram-se de apagar a luz, esqueceram-se dos prédios, das ruas, esqueceram-se em suma. O que me leva a crer que foi uma partida apressada provocada por um medo qualquer. Mas as ruas continuam calmas, as luzes acesas e os carros estacionados.

A claridade da manhã começa a dar sinais. A noite vai partindo enquanto a cidade se ilumina com a luz natural. Até eu me começo a ver em espaços de transparência. Daqui  pouco já é dia e nada aconteceu a não ser o silêncio universal que dá à cidade um ar de transcendência. Para onde foi toda a gente? Não quero saber. Aproveito a sensação de vazio, ouço atentamente a voz do silêncio, saúdo em paz o dia que vai nascer.

Esqueceram-se de apagar a luz à saída e eu esqueço-me aos poucos de mim mesmo. O silêncio envolve-me como uma capa confortável. A luz vai aumentando, vai dando sentido a tudo o que nunca significou nada antes.

Aos poucos tudo parece encaixar-se numa razão absoluta e óbvia se bem que não consiga perceber nada daquilo que se está a passar. Flutuo, caminho no ar. Passo pela minha casa que fica no quinto andar e espreito pela janela da sala. Parece que me fui embora dali e deixei a luz por apagar…

 

Artur


(Imagem de Luis Pereira)

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