domingo, 22 de dezembro de 2013
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
FREE NELSON MANDELA
De cada vez que cavaco, coelho, portas e demais camaradas falam de Nelson Mandela, e falam muito, oh se falam, é como se o estivessem a matar de novo ou a enviar de volta à prisão onde esteve encarcerado durante 27 anos. Por isso lhes digo: Libertem Nelson Mandela, libertem-no da baba asquerosa dos vossos elogios, do vómitos do vossos encómios, da sarna das vossas caras compungidas, da poluição das vossas lágrimas de crocodilo, do cheiro fétido das vossas declarações sobre "o exemplo a seguir", da "grande estatura moral", etc. Deixem o homem ir em paz, deixem-no ir para onde quer que vá, sem que no caminho tenha que tropeçar nas vossas mal-amanhadas e hipócritas caras de carpideiras da corda.
A propósito, que é feito daquele outro bacano, o Boutelezi, uma espécie de monarca zulu avantajado, que aparecia nas manifestações vestido com pele de leopardo e de lança na mão, aos pinotes e aos urros ? Eu também curtia esse gajo e ninguém fala dele. Afinal, o Mandela não acabou com todas as injustiças do mundo,embora o seu esforço tenha sido muito significativo.
A propósito, que é feito daquele outro bacano, o Boutelezi, uma espécie de monarca zulu avantajado, que aparecia nas manifestações vestido com pele de leopardo e de lança na mão, aos pinotes e aos urros ? Eu também curtia esse gajo e ninguém fala dele. Afinal, o Mandela não acabou com todas as injustiças do mundo,embora o seu esforço tenha sido muito significativo.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
A ESCOLA PRIMÁRIA (OU A SUA FALTA) REVISITADA - A SEQUELA
"Não tememos que apareça ninguém no Congresso do PSD" - Marco António Costa
Professor Doutor Marco António Costa:
É já a segunda vez que lhe escrevo mortificado e angustiado ante os pontapés na gramática e na lógica que pontuam as suas intervenções públicas. Da outra vez - e apesar da minha mais que explícita sugestão - não me contratou para seu conselheiro linguístico e, hélas, o resultado está à vista. "Sejemos" francos, como diz o chefe: se não temem que apareça ninguém, é porque temem que apareça alguém. Mas, espere lá, até eu já estou baralhado. Vamos ver se deslindamos esta questão : se não temem que apareça ninguém, para além de temerem que apareça alguém, não temem que apareça o que não pode aparecer. Concordará, sem grande esforço, que "ninguém" indica um ausência, uma negação de presença, uma falta. Nesse caso, o que vocês não temem (que apareça ninguém) é equivalente a temerem que apareça alguém, visto que o que vocês não temem é um nulo e, assim sendo, a proposição anula-se a si mesma, além de anular o efeito que teria se, por exemplo, V. Exa. tivesse dito : "tememos que apareça ninguém" ou "tememos que não apareça alguém", ou ainda, "não tememos que não apareça ninguém". Enfim, como pode constatar, não é fácil navegar neste labirinto kafkiano e ilógico que os deslizes de linguagem de V. Exa. provocam neste povo sempre sedento e sôfrego das pérolas de sabedoria que emanam do seu pensamento sublime. Mais uma vez, coloco-me ao seu inteiro dispôr para a revisão dos seus discursos e para ser o seu porta-voz.
Com os melhores cumprimentos
Arnaldo Mesquita
sábado, 7 de dezembro de 2013
BOLA DE CRISTAL
Era sempre pela estrada a caminho desse lugar distante que se procuravam as respostas. Era sempre com o pé na estrada que as perguntas enfraqueciam a sua desorientação e as dúvidas deixavam de baralhar. A solução era colocar a mochila ás costas e caminhar até um destino que de tão longínquo dificilmente se podia adivinhar. Enquanto se caminha não se pensa, não se sofre, respira-se o compasso das pernas, observa-se a paisagem. Enquanto se caminha desliga-se a culpa e a frustração de não saber para melhor imaginar. E ao fim de algum tempo uma resposta, um espaço, qualquer coisa onde acabamos por chegar. Nunca da forma que pensámos, nunca igual à imaginação. Só um destino cumprido, um ponto de chegada, mais nada. Ás voltas e voltas a caminho de qualquer lugar caminhamos sobre o mundo acabando por caminhar dentro de nós. A resposta do caminho saiu de onde, afinal? Da estrada que pisávamos ou do sonho que percorremos sonhado dentro de uma bola de cristal? Onde ficamos? Lá dentro ou cá fora? Serei eu aquele homem que pousa a mochila e se senta a beber uma cerveja à beira do caminho? Ou serei eu a cerveja que o refresca numa tarde de calor? Ou a vontade permanente de meter o pé na estrada, tudo e nada numa bola de cristal?
Artur
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
SALVA VIDAS
A boia fica ali pendurada sem utilidade nenhuma, empurrada por uma brisa ocasional que lhe pede respostas. O mar e a areia despedem-se devagar enquanto o Sol se espreguiça sobre eles sonolento. Enquanto sacudo a areia dos sapatos olho o vazio da praia em redor. Falto eu, faltamos todos e no entanto parece que não falta nada aquele momento em que o tempo se faz suspender antes do escuro tomar conta de tudo. Nada acontece e tudo parece estar no sítio exacto onde pertence. Os travões da última carreira do autocarro interrompem o silêncio antes de embarcar a velha que vende bolos e o rapaz que toca guitarra á frente de um pano para onde atiram moedas. A esta hora deixou de haver vidas para salvar nem mortes para lamentar. O dia vai morrendo no horizonte muito devagar. Falto eu e faltamos todos neste momento sem nada faltar. Nasce-se todos os dias para morrer e morre-se para voltar. Entre uma viagem e outra sacodem-se os sapatos e volta-se para casa no sopro dos travões do último autocarro. Amanhã cá estaremos até um dia, eu as palavras e o mar.
Artur
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
O MITO DE SÍSIFO
De acordo com Homero, Sísifo era o mais ajuizado e o mais prudente dos mortais se bem que noutra interpretação tinha tendências para a profissão de bandido. São contraditórias as versões acerca dos motivos que lhe valeram ser o trabalhador inútil dos infernos. Homero diz-nos que Sísifo acorrentou a Morte o que causou grande inquietação a Plutão que não suportou ver o seu império deserto e silencioso. Para resolver o problema enviou Marte que soltou a Morte das mãos do seu vencedor. Quando Sísifo estava quase a morrer pediu á mulher que lançasse o seu corpo sem sepultura no meio da praça pública. Uma vez chegado aos infernos e irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Platão permissão para voltar á terra e castigar a mulher garantindo regressar assim que terminasse a tarefa. Mas, uma vez regressado, Sísifo sentiu-se inebriado ao rever o mar a água e o Sol. Apesar dos avisos e da insistência dos deuses para que regressasse ainda conseguiu viver na terra por alguns anos. Mercúrio acabou por vir buscá-lo. Pela sua desobediência os deuses condenaram Sísifo a empurrar sem descanso uma pedra até ao cume de uma montanha. Chegado lá acima a pedra cairia invariavelmente obrigando-o a regressar e a repetir tudo outra vez. Para os deuses não havia castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
Este é em traços gerais o retrato do herói absurdo. “O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar”. (*)
Albert Camus inicia o seu ensaio “O Mito de Sísifo” com uma questão única. O único problema filosófico verdadeiramente sério é o do suicídio. Descrevendo o absurdo e o seu herói, Camus descreve um mal do espírito sem querer recorrer à metafísica. O absurdo nasce do confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Mergulhando a vida num absoluto absurdo, tornando irracional a condição humana, o conceito de suicídio tem que ser afastado na medida em que só poderá destruir a sua vida quem ainda acredita nela. Quem não acredita, continua. E essa continuidade, essa persistência onde se procura erigir a criação, a acção, o corpo, a ternura a nobreza humana, servirá de contraponto à falta de sentido, ao irracionalismo, enfim, ao absurdo.
Socorrendo-se de vários autores, onde se destacam Dostoyevski e Kafka, há também espaço para Melville e a sua personagem central, o capitão Ahab, cujo combate sem esperança de capturar a baleia o tornam parente chegado de Sísifo. “Moby Dick” é pois o primeiro título citado como exemplo de uma obra verdadeiramente absurda”.
Mas Camus dá exemplos de mais homens absurdos. D. Juan, o conquistador, Kirilov e o “suicídio lógico” em “Os Possessos” de Dostoyevski, Kafka e a sua obra.
As ideias místicas são tão legítimas para Camus como qualquer outra atitude mental se bem que o absurdo nele nunca o leve até Deus. Trata-se de um conceito que lhe está vedado conhecer não perdendo tempo a afirmar ou a negar algo que não pode alcançar. A vida não precisa de sentido para ser vivida. O problema da Liberdade também não lhe interessa por conduzir igualmente a Deus. A única realidade é a morte e um homem não é mais do que os objectivos que estão dentro dele. Por isso há que viver ao limite, não o melhor possível mas o máximo possível, acumular o maior número de experiências. O eterno e o divino são as cortinas que ocultam o absurdo. “Este mundo, absurdo e sem Deus, povoa-se de homens que pensam claramente e que nada esperam”. Não há actos culposos, apenas responsáveis. O carácter representativo da existência é esgotar a vida, multiplicar as várias personagens de um só corpo e, por fim, sobreviver o mais tempo que se puder.
A obra de Camus no seu início é considerada um racionalismo do irracional, uma filosofia sombria acerca da luz, como a caracterizou Emmanuel Mounier.
Artur
domingo, 24 de novembro de 2013
ANTOLOGIA DA ESTUPIDEZ (ABSOLUTA E TRÁGICA)
"estamos perante um milagre económico" - lima
"os pobres não se manifestam, nem vão à televisão" - portas
"sejemos realistas" - coelho e cristas
"o pior já passou" - maduro
"os pobres não se manifestam, nem vão à televisão" - portas
"sejemos realistas" - coelho e cristas
"o pior já passou" - maduro
O DESAFIO E A VERTIGEM
O Verão chegava ao fim. Tinham sido as férias perfeitas. Na quinta da minha avó os lanches eram eternos entre risos e compotas, pão fresco cozido a lenha e os inevitáveis banhos no tanque ao fim da tarde. As noites embaladas no canto dos grilos e as intermináveis conversas com a minha tia sobre o mundo, sobre a vida que nos esperava, o assalto à dispensa à lata das bolachas com a minha prima. E, poucos dias antes de partir, o desafio, o objectivo inconfessado com o olhar demorado sobre aquela parede que se erguia sobranceira para cima do tanque. Seríamos capazes? O sorriso da minha tia confortava-me, o encolher de ombros da minha prima mais velha também. E fomos sem hesitar, pelo espaço em voo infinito de acabar, em vertigem de colar o estômago à boca terminada no choque térmico da entrada na água fria.
As férias chegaram ao fim, o tempo foi-se instalando à medida que os mais velhos partiam. Veio a idade, o período, o trabalho, os filhos. Veio tudo o que era para vir, em grande parte já anunciado pela minha tia. Hoje apoio-me na bengala ao fim da tarde e digo aos meus filhos, aviso os meus netos, explico que não devem saltar dali, que pode ser perigoso. Mas ninguém me leva a sério. E eu também não me importo. Perigoso é o que vem depois do salto, depois de conquistada a vertigem. Perigosa é essa aventura a que chamam Vida. Aquela que deixa o tempo instalar-se enquanto vai dizendo aos mais velhos para se irem embora.
Artur
sábado, 23 de novembro de 2013
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
TEMPO
Tudo o que aconteceu já não existe. Como um fim de tarde onde o céu se pinta em tons de baunilha, como as pisadas deixadas na areia antes da próxima maré-cheia. Tudo vai nascendo e desaparecendo sem deixar rasto, embalado pela única certeza que se repete, o ritmo. Arrefece o calor do teu abraço quando o corpo se afasta, seca na minha boca o beijo dos lábios no instante em que se separam dos meus. O Sol despede-se antes da Lua chegar, as ondas mantêm sobre a areia a cadência da respiração da Terra e as estrelas acendem-se de novo como candeeiros. Para nos dizer que continua, que tudo continua nesta linha de não terminar. Depois da Lua o Sol volta a nascer, as marés a alternar e as estrelas a apagar para mais tarde voltar a acender. Tudo o que aconteceu já não existe mas vai voltar a acontecer. Só que nunca será da mesma maneira.
Artur
terça-feira, 19 de novembro de 2013
AS CORES DO FRIO
Van Gogh de certeza que teve essa dúvida ao longo da sua vida. Como é que se pintam as cores do frio? E o mais certo foi nunca ter encontrado resposta. Apesar de não a ter encontrado, acabou por desenhá-la sempre que pintava no Inverno embrulhado num casaco quente. Quase todos os dias passamos o tempo a tentar responder às questões que nós próprios formulamos, questões na maior parte das vezes impossíveis de satisfazer com uma frase, uma conclusão, uma cor. E nessa altura vamos desenhando vários esboços, aproximações que nos satisfaçam, terminando sempre insatisfeitos. Sem perceber bem como estamos a responder, embora não da forma que desejaríamos. É isso a Arte. Uma busca permanente, uma insatisfação constante que nos permite continuar, trabalhar, estar sempre atentos apesar de descontentes. As respostas formam-se sozinhas, devagar. As respostas não nos servem para nada porque já lá estavam antes de perguntar.
Artur
domingo, 17 de novembro de 2013
A CONVERSA
A mesa é o lugar onde nos encontramos mais vezes. À volta de uma refeição, de um café, de um copo de vinho ou simplesmente na partilha do nosso silêncio. Levantando o garfo ou a chávena sem pressa, com as pausas todas alinhadas, a conversa vai correndo com palavras ou no silêncio. A mesa é esse espaço simbólico, esse lugar mágico onde eu e tu nascemos e morremos milhares de vezes em frente um do outro. O candeeiro ilumina directamente a superfície de madeira deixando os nossos rostos na penumbra. Como um lago de luz onde as palavras se deslocam lentamente como flamingos ao fim da tarde. As vozes fazem-se ouvir de forma educada numa presença esporádica porque aquilo que interessa realmente, aquilo que consiste no centro de tudo está além de nós. Junta-nos, torna-nos cúmplices elementos dialogantes, mercadores de ideias, traficantes de imagens que encontram ali o seu mercado. A mesa suporta o antídoto para não estarmos sós. Para fazer da nossa conversa a ponte que mantém unida duas estruturas numa só. Tu e eu.
Artur
sábado, 16 de novembro de 2013
DIAS DE NADA, NOITES DE COISA NENHUMA
Vai acontecendo a uma frequência cada vez maior. Aqueles dias em que chego ao fim sem nada ter feito, um escoar de tempo como areia pelos dedos fora. Não tive nenhuma vontade digna desse conceito, não fiz nada e, melhor ainda, não tenho a mínima preocupação, o mínimo remorso com isso. Instalo-me no vazio como numa acolhedora habitação onde nada “é” para além de si mesmo, onde nada existe para além da sua exclusiva existência…incluindo eu. Nascemos já culpados e condenados por religiões e teorias políticas, crescemos a correr sem parar contra o tempo, a frustração e principalmente, contra o outro. De alguma forma, por mais que seja o nosso esforço, por mais que nos estafemos e nos empenhemos às vezes correndo o risco de desaparecer nesse empenho…nunca chega, nunca é suficiente. Há sempre mais qualquer coisa que é preciso fazer, mais qualquer obstáculo que falta saltar, mais um contributo para dar. E tudo isto acaba por esbarrar na racionalidade, na vantagem, no “porquê” de uma vida inteira esbanjada no esforço e na despesa. E tudo apenas para estarmos vivos, para continuarmos vivos, para ter o simples direito a viver. Quantos seres vivos que habitam este planeta é que pagam o tributo de existir? E esse tributo que nos obrigam a pagar vai para onde, para quem? Serve para quê, afinal a puta de vida, isto é, aquela que nos obrigam a viver?
Gosto desses dias em que nada acontece, em que nada fiz e em que não me sinto minimamente preocupado por isso. Nesses dias as noites passam-se num sono inteiro e tranquilo. Não acordo uma única vez, os sonhos são pacíficos, repletos de harmonia. Nesses dias o tempo não me envelhece, não me enerva, não me cria estados de ansiedade, não tem qualquer influência sobre mim. Fico no vácuo da existência só tendo espaço para contemplar as árvores, o voo dos pássaros, a dança das nuvens, a plenitude do mar. Espectáculos onde basta ter olhos para poder assistir. Onde ninguém vende bilhetes á entrada, ninguém distribui culpas à saída, ninguém inventa dívidas de espécie nenhuma.
E são esses “dias de nada”, essas “noites de coisa nenhuma” que me mantêm vivo, que me impedem de morrer prematuramente sufocado em dívidas que não contraí, em obrigações que não inventei, em contratos que tenho de cumprir apesar de nunca os ter assinado. Nesses instantes raros em que percebo o cosmos e ele me percebe a mim enquanto seu filho, enquanto parte dele, nesses instantes, não sendo nada sou Eu inteiramente. Por isso cada vez mais procuro esses dias em que nada acontece, a minha vontade se desliga e o arrependimento se extingue.
Artur
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
ESTAÇÃO DE VÁRIOS TEMPOS
Confortavelmente e sem pressas o Outono vai-se instalando no seu tempo de acontecer. A humidade reforça a pujança verde da relva, as árvores exibem orgulhosas o seu novo vestido de tons que vão variando do castanho até ao dourado, enquanto o abraço do frio ainda se mantém nos limites do suportável. As cegonhas devem estar por esta altura a chegar á sua nova casa enquanto que, mais teimosos e mais resistentes, os pardais insistem em ficar. Enquanto percorro o caminho até à escola do meu sobrinho mais novo vejo o fim de tarde outonal embalado por este Sol mais tímido mas que produz uma luz muito mais nítida, uma luz que nos permite observar todos os recantos como quem usa uns óculos novos ao fim de algum tempo a ver desfocado. Esta é uma época, pelo menos para mim, de meditação por excelência. Como se o tempo se decidisse suspender e a mente ficasse horas e horas a levitar sem pressas, sem depois, sem amanhã. Na paz dos dias de Outono consegue-se ver o passado como um filme e misturar todas as cenas porque este é a única altura em que isso consegue fazer sentido. Á porta da minha escola o homem que vendia gelados no Verão, trocava o carrinho branco e colorido com duas sinetas na ponta por um parecido com uma pequena locomotiva de duas chaminés, um eixo de rodas e uma lista telefónica pendurada. Nesta época do ano era o cheiro das castanhas assadas que nos recebia no fim das aulas através do fumo da locomotiva. Se passássemos pelos arredores da igreja era possível ouvir o coro a ensaiar as canções do Natal. A maioria dos miúdos desesperava com a sua chegada. Eu não. Eu achava muito mais interessante aquele período de tempo em que ainda não está muito frio, de cores únicas a salpicar a paisagem, em que se adivinham coisas que ainda não chegaram, as castanhas embrulhadas em folhas de uma lista telefónica, a teimosia dos pardais. Eu preferia viver naquela paz e sossego em que o tempo parecia parar por uns dias. Por momentos a harmonia fechava as tardes. Por momentos parecia que a perfeição conseguia existir.
O dia vai-se fechando mais rápido, a Lua mostra-se antes da escuridão ser total. Como uma senhora bem-educada cumprimenta-nos. Responde sempre com exactidão à pergunta de: “Como está?” Neste momento diz-me que caminha para Lua Cheia. Ficamos ali por uns instantes sentados no banco do jardim a comer castanhas e a conversar em silêncio com as imagens que nos cercam. Os pardais, um casal de melros de longa data, um senhor apoiado numa bengala a passear dois cães. Ficamos ali sentados a perceber mais uma vez que começamos a viver muito antes de pensar, de ler a realidade. Vive-se e pronto, o resto não interessa. Como se todo aquele espaço que nos cerca fosse ele mesmo um só Ser. A Lua, os pardais, o homem que passeia os cães apoiado numa bengala, ao longe um coro gregoriano de ensaio para o Natal. Não nos interessa o que vai acontecer, apenas as memórias de vários tempos que dançam à volta de uma fogueira de S. Martinho. Memórias que respiram por si enquanto tecem o tapete da História. A história de uns e de outros, as existências que, cruzando-se em silêncio sabem que fazem parte de um único ser, de uma única realidade. Por mim ficava sempre aqui, neste banco de jardim a comer castanhas, neste tempo que parece parado, nesta mesa de jantar em que as memórias falam umas com as outras. Por mim chegava perceber que antes da realidade, da Natureza e do passar dos tempos, antes de tudo e mais alguma coisa já eu vivia, sabia viver sem saber mais nada. Antes que chegue o Natal e os dias frios vou ficando por aqui perto da escola do meu sobrinho a relembrar a minha escola. Perto de um vendedor de castanhas e de um jardim onde as árvores, os pássaros, as pessoas… Vou ficar aqui neste lugar, nesta estação de vários tempos onde, por vezes ao fim da tarde tudo parece fazer sentido.
Artur
DO AMOR E DA ETERNIDADE
Escrever, dizer qualquer coisa sobre este filme, percute em mim uma velha e verdadeira proposição, segundo a qual "escrever sobre arte é o mesmo que dançar sobre arquitectura". Eu, que não sei dançar, arrisco esboçar os primeiros passos de uma coreografia que me coloca à beira do abismo. Comecemos.
Falo de "To The Wonder", realizado por Terrence Malick, o mais secreto, tímido e reservado dos cineastas, nada de espantar para aqueles que conhecem e amam os seus filmes, essas obras de arte cujo coração é habitado por espectros, sempre incertos, continuamente indeterminados. Alguém sabe de onde vem este cinema ? Para onde vai, que lugar habita ? A quem, a que se dá , quem poderá capturar a sua natureza ? Coloco as perguntas, sem me interessar pelas respostas. E a quem interessariam as respostas ? A obra de Malick é composta por vozes perdidas, sempre à procura de algo, de alguém, de alguma coisa, de nada.
No começo do filme vemos alguns planos captados por telemóvel, oferecendo às personagens um tempo suspenso mas também uma aspereza nova em Malick : a anamorfose, o ruído video, os erros cromáticos. Esta mudança no regime da imagem é uma novidade no seu cinema, tanto mais perturbadora quanto a sentimos como verdadeira e sincera. Na verdade é possível dançar sobre este filme. Aliás, Marina não faz outra coisa, desde que o realizador resolveu atirar pela borda fora o excesso de bagagem, tudo o que é supérfluo : diálogos, exposição, regras clássicas do enquadramento, montagem, etc, etc.
O que é um amor, o que é o amor ? Que sinais me envias que eu leio como sinais do amor ? Que signos nos oferece o mundo ? Na obra de Malick a linguagem sempre foi objecto de um tratamento muito cuidadoso e sempre ressoou com um timbre muito particular; aqui força ainda mais além esse radicalismo, começando o filme em francês, continuando em inglês, polvilhando-o de espanhol e italiano, cantando-o em russo. Esta última língua não é uma coincidência: Malick poderia ser Hipolite Terentiev interrogando o Príncipe Michkine: "Que beleza salvará o mundo ?". A beleza de Marina ? Uma espécie de Natalia Filipovna menos dura mas igualmente partilhada. No fim de contas o filme adopta de maneira quase literal a ideia de um amor partido em dois. De um lado, um sentimento virado para a bondade, a doçura, a atenção ao outro incorporado na personagem de Jane, calma e serena entre os bisontes; do outro, um amor-paixão, cruel e despedaçado como a personagem Marina. Entre essas duas mulheres, um Neil reduzido a algumas palavras, forçado ao silêncio pela montagem do filme que o não deixa exprimir-se em palavras, frases, diálogos. A ausência de palavras não significa o silêncio ou o mutismo no cinema de Malick, revestindo-se de outra natureza: distancia a personagem Neil daquilo mesmo que ele é : uma sequência equívoca mostra a tradução do diálogo em linguagem gestual por uma intérprete, a surda-muda mexe as mãos, a intérprete fala, o padre escuta: todos presentes no plano, indicando que tudo é movimento,palavra e flutuação. É nessa perspectiva que deve ser compreendida a atenção dada aos rostos: grandes planos sobre as rugas, as marcas, as cicatrizes que enchem o quadro : outros tantos signos da visão de corpos enfraquecidos, sozinhos, perdidos na imensidão de paisagens maravilhosas (o Mont Saint-Michel, campos povoados por bisontes, planícies, o sol escaldante, a maré que desce...).
A morte pesa sobre as imagens de "To The Wonder", ou melhor, o espectro da mortalidade: Marina está doente ? De que sofre ? Ou trata-se antes do filho morto de Jane ? No fim de contas, este filme transforma a pergunta presente em "A Árvore da Vida" (porquê a morte ?) na pergunta "o que é a morte ?"
Como todas as narrativas, "To The Wonder" cria suficientes aberturas que se tornam brechas, falhas que conferem ao filme uma ambiguidade radical, devida à natureza íntima do cinema de Malick : o final dos seus filmes nunca é o fim do mundo, ou de um mundo, mas a perplexidade, a abertura para outra coisa qualquer.
Afinal, esta pequena e humilde reflexão sobre o filme contém quase tantas interrogações como afirmações. Como se dançasse sobre areias movediças. Marina é menos uma dançarina do que uma mulher que não chega a dançar: o seu corpo, próximo da dança contemporânea, não exprime a ligeireza da dança como ideia de um corpo libertado da gravidade, da terra, tornado metáfora, pássaro, flor ou roda que gira em torno de si mesma. Ela sonha com a elevação, com tornar-se essa roda, mas raramente é aérea. Desliza em círculos, não conseguindo tornar-se o signo da criança nietzschiana. Como acontece com o padre, a alegria está-lhe vedada, e sem esse dom, as palavras, fossem elas as palavras dos Evangelhos, e os movimentos, fossem eles os de uma bailarina, não são nada. A esses movimentos, desordenados, sem consistência nem duração, carregados de negatividade, é preciso opor a verdadeira dança de Pocahontas, e as corridas de mãe e filhos em "A Árvore da Vida" : puras expressões do corpo que não estão separadas de si mesmas; plenitude do ser, eternidade do movimento, ou movimento da eternidade, que não é senão alegria. A alegria pretende a eternidade, não como qualquer coisa de que está separada, mas como o seu espaço de expressão. Ou melhor: a alegria não quer nada, não pretende nada : quem quer alguma coisa nunca está alegre, já que a vontade tem que ser pensada a partir da ideia de uma falta ou de uma ausência e a partir dessa negatividade. A alegria não quer a eternidade, ela é a eternidade, a experiência da eternidade.
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
O ABSURDO E A FELICIDADE
1. Albert Camus concebe, desde a adolescência, uma obra. Nem mais nem menos. Sem cessar, com uma tenacidade que a sua biografia atesta, desce ao fundo dos seus ciclos em tríptico : um romance, um ensaio, uma peça de teatro, escapando velozmente às armadilhas do nihilismo e do cinismo, rompendo com o absurdo e passando à revolta – cada vez menos à revolução. Chegado aos trinta anos, visa um ciclo da felicidade e da serenidade. É sobre essa dualidade, ou sobre essa dupla faceta do seu pensamento, que me proponho reflectir.
2. Dando-se conta do absurdo da condição humana numa obra que comporta as três dimensões – romanesca, filosófica e teatral – Camus empreende a tarefa de compreender o sentimento de estranheza que nasce do “divórcio entre o homem e a sua vida, entre o actor e o décor”, escreve em “O Mito de Sísifo, Ensaio Sobre o Absurdo”, publicado em 1942. A tomada de consciência do não-sentido da vida é para ele, pelos menos de início, a constatação de um fracasso : o desejo de clareza do homem bate de frente contra a irracionalidade do mundo. O seu encontro não faz sentido, é absurdo. Mas, segundo Camus, essa lucidez pode tornar-se o motor da liberdade que acompanha a necessidade de lutar pela felicidade. Como opera esta alquimia que torna compatíveis o absurdo e a felicidade ?
3. Em “Noces”, quatro ensaios poéticos em prosa publicados em 1939, Camus fornece uma primeira resposta. O primeiro, intitulado “Noces à Tipasa”, celebra o amor que assume os tons do mar e do sol, esse mar que o autor conheceu na Argélia natal: entrar em comunhão com a natureza equivale a ultrapassar a ausência de resposta do mundo. Vale a pena revisitar esse excerto de texto, profundamente luminoso e esclarecedor:
“Dans un sens, c’est bien ma vie que je joue ici, une vie à gout de Pierre chaude, pleine de soupirs de la mer et des cigales qui commencent à chanter maintenant. La brise est fraîche et le ciel bleu. J’aime cette vie avec abandon et veux en parler avec liberté: elle me donne l’orgueil de ma condition d’homme. Pourtant, on me l’a souvent dit : il n’y a pás de quoi être fier. Si, il y a de quoi: ce soleil, cette mer, mon coeur bondissant de jeunesse, mon corps au goût de sel et l’immense décor òu la tendresse et la gloire se recnontrent dans le jaune et le bleu. C’est à conquérir cela qu’il me faut appliquer ma force et mês ressources”.
Sob condição de abandonar a esperança vã de um outro mundo, a recusa do suicídio é uma outra resposta que é dada, mais uma vez, em “O Mito de Sísifo”, no qual o problema inicial consiste em “julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida”. Com efeito, o absurdo poderia conduzir a uma motivação para o abandono da vida: todos nós pensámos nisso algum dia, escreve Camus. Mas é preciso não ceder ao desejo de anular a consciência, o que consistiria em redobrar o absurdo. O importante é conferir peso à vida pela acção “aqui e agora”, sem procurar a salvação algures, como a fé religiosa incita a fazer. Não nos podemos esquivar da morte, projectando a vida eterna, nem da vida, através de um divertimento no sentido que Pascal condenava no século XVII, ou seja, recorrendo a um desvio ou a uma recusa da ideia da nossa finitude. È a lucidez assumida que bane o suicídio e a esperança vã, e permite dizer sim à vida definitivamente. Reconhecer que a condição humana é sem esperança e sem amanhã convida o homem a viver plenamente a sua liberdade e a escolher a felicidade. Este caminho é balizado pelo nosso comprometimento físico, carnal, com o mundo, no qual o nosso corpo tem sempre um estádio de avanço sobre o espírito (“Habituamo-nos a viver antes de adquirirmos o hábito de pensar”). Aceitar a necessidade do absurdo, é avançar na espessura do mundo, indo colher a alegria lá, onde ela se encontra.
4. Camus cita Nietzsche a fim de ilustrar esta “moral de grandes ares” que descreve aquilo que merece ser vivido: o francês partilha com o filósofo alemão a sua hostilidade para com os grandes conceitos que devem conferir sentido à vida. Em vez de reflectir sobre Deus ou sobre as grandes abstracções conceptuais, Camus convida a falar sobre a vida, a bater-se por ela, num sentido altruísta, como precisam as teses de “O Homem Revoltado”, publicado em 1951. Matar inocentes, afirma, é um crime que desnatura a revolta. Se o absurdo do mundo não é um tema novo – Franz Kafka já o tinha cruamente retratado em inúmeros textos – jamais tinha sido encarado, antes de Albert Camus, como uma fonte de gratificação pessoal. Este novo hedonismo, individual e despojado de todo o artificialismo ideológico, está longe de ser o maior contributo de Camus para a antropologia filosófica do século XX, sendo, no entanto, aquele que mais me comove, e que me parece mais pertinente, neste dia em que se comemoram os 100 anos do seu nascimento e neste tempo em que não há no mundo claridade suficiente, nem sol, nem mar, nem nada.
Arnaldo Mesquita
2. Dando-se conta do absurdo da condição humana numa obra que comporta as três dimensões – romanesca, filosófica e teatral – Camus empreende a tarefa de compreender o sentimento de estranheza que nasce do “divórcio entre o homem e a sua vida, entre o actor e o décor”, escreve em “O Mito de Sísifo, Ensaio Sobre o Absurdo”, publicado em 1942. A tomada de consciência do não-sentido da vida é para ele, pelos menos de início, a constatação de um fracasso : o desejo de clareza do homem bate de frente contra a irracionalidade do mundo. O seu encontro não faz sentido, é absurdo. Mas, segundo Camus, essa lucidez pode tornar-se o motor da liberdade que acompanha a necessidade de lutar pela felicidade. Como opera esta alquimia que torna compatíveis o absurdo e a felicidade ?
3. Em “Noces”, quatro ensaios poéticos em prosa publicados em 1939, Camus fornece uma primeira resposta. O primeiro, intitulado “Noces à Tipasa”, celebra o amor que assume os tons do mar e do sol, esse mar que o autor conheceu na Argélia natal: entrar em comunhão com a natureza equivale a ultrapassar a ausência de resposta do mundo. Vale a pena revisitar esse excerto de texto, profundamente luminoso e esclarecedor:
“Dans un sens, c’est bien ma vie que je joue ici, une vie à gout de Pierre chaude, pleine de soupirs de la mer et des cigales qui commencent à chanter maintenant. La brise est fraîche et le ciel bleu. J’aime cette vie avec abandon et veux en parler avec liberté: elle me donne l’orgueil de ma condition d’homme. Pourtant, on me l’a souvent dit : il n’y a pás de quoi être fier. Si, il y a de quoi: ce soleil, cette mer, mon coeur bondissant de jeunesse, mon corps au goût de sel et l’immense décor òu la tendresse et la gloire se recnontrent dans le jaune et le bleu. C’est à conquérir cela qu’il me faut appliquer ma force et mês ressources”.
Sob condição de abandonar a esperança vã de um outro mundo, a recusa do suicídio é uma outra resposta que é dada, mais uma vez, em “O Mito de Sísifo”, no qual o problema inicial consiste em “julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida”. Com efeito, o absurdo poderia conduzir a uma motivação para o abandono da vida: todos nós pensámos nisso algum dia, escreve Camus. Mas é preciso não ceder ao desejo de anular a consciência, o que consistiria em redobrar o absurdo. O importante é conferir peso à vida pela acção “aqui e agora”, sem procurar a salvação algures, como a fé religiosa incita a fazer. Não nos podemos esquivar da morte, projectando a vida eterna, nem da vida, através de um divertimento no sentido que Pascal condenava no século XVII, ou seja, recorrendo a um desvio ou a uma recusa da ideia da nossa finitude. È a lucidez assumida que bane o suicídio e a esperança vã, e permite dizer sim à vida definitivamente. Reconhecer que a condição humana é sem esperança e sem amanhã convida o homem a viver plenamente a sua liberdade e a escolher a felicidade. Este caminho é balizado pelo nosso comprometimento físico, carnal, com o mundo, no qual o nosso corpo tem sempre um estádio de avanço sobre o espírito (“Habituamo-nos a viver antes de adquirirmos o hábito de pensar”). Aceitar a necessidade do absurdo, é avançar na espessura do mundo, indo colher a alegria lá, onde ela se encontra.
4. Camus cita Nietzsche a fim de ilustrar esta “moral de grandes ares” que descreve aquilo que merece ser vivido: o francês partilha com o filósofo alemão a sua hostilidade para com os grandes conceitos que devem conferir sentido à vida. Em vez de reflectir sobre Deus ou sobre as grandes abstracções conceptuais, Camus convida a falar sobre a vida, a bater-se por ela, num sentido altruísta, como precisam as teses de “O Homem Revoltado”, publicado em 1951. Matar inocentes, afirma, é um crime que desnatura a revolta. Se o absurdo do mundo não é um tema novo – Franz Kafka já o tinha cruamente retratado em inúmeros textos – jamais tinha sido encarado, antes de Albert Camus, como uma fonte de gratificação pessoal. Este novo hedonismo, individual e despojado de todo o artificialismo ideológico, está longe de ser o maior contributo de Camus para a antropologia filosófica do século XX, sendo, no entanto, aquele que mais me comove, e que me parece mais pertinente, neste dia em que se comemoram os 100 anos do seu nascimento e neste tempo em que não há no mundo claridade suficiente, nem sol, nem mar, nem nada.
Arnaldo Mesquita
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE ALBERT CAMUS
No dia 7 de Novembro de 1913,
Albert Camus nasce em Mondovi, Argélia francesa, no seio de uma humilde família
pied-noir. O pai ( Lucien Camus),
morto na batalha do Marne durante a I Guerra Mundial era descendente de uma
família francesa oriunda de Bordéus que compunha um primeiro grupo de colonos a
estabelecer-se na Argélia. A mãe, meio surda, pertencia a uma família de
ascendência espanhola (os Sintés) vinda de Minorca. Com a partida do pai para a
guerra a família muda-se com o irmão e a mãe para a casa da avó materna em
Argel onde, no espaço de três divisões sem água corrente nem electricidade,
viviam mais dois irmãos de Catherine Camus.
Graças aos esforços de dois
professores decisivos na sua existência, Albert Camus consegue escapar a uma
vida de pobreza e desse modo contrariar a sina das suas modestas origens.
Durante a escola primária é o seu professor Louis Germain que lhe reconhece
capacidades para continuar os seus estudos liceais, fazendo-o trabalhar horas extras
contrariando a orientação da avó que o queria a trabalhar o mais cedo possível.
Em 1923 Camus é admitido no liceu onde tem consciência pela primeira vez do seu
estatuto de pobreza. Até aí (escola primária) eram todos pobres, portanto não
havia termos de comparação. Em 1930, já na Universidade de Argel, o jovem
estudante de Filosofia vê-se confrontado com outro elemento trágico na sua
curta vida. No hospital Mustapha (“o hospital de um bairro pobre”) é-lhe
diagnosticada uma tuberculose pulmonar. Esta doença, que na época significava
uma inequívoca ameaça de morte obrigá-lo-á a desistir de uma actividade que
praticava com paixão, o futebol. De facto, e até ao fim da sua vida, Albert
Camus será sempre um fervoroso adepto do Racing Universitaire de Argel, onde
era guarda-redes. O futebol ficará sempre guardado num lugar especial do seu
coração.Nesse mesmo ano
prepara a licença em Filosofia, com Jean Grenier, uma personalidade
absolutamente decisiva na sua vida: faz-lhe descobrir Friedrich Nietzsche.
Permanecerá para sempre fiel a esse homem e aos seus ensinamentos.
A miséria que acompanha os seus
primeiros passos associada à aparição prematura da ideia de morte na sua vida
condicionarão definitivamente a construção da sua obra futura. Pela miséria
identificam-se as dimensões e os desequilíbrios que o poder causa nas
sociedades bem como a enorme injustiça que as constrói. Revoltado e incapaz de
aceitar esta perversão da condição humana encontra o nihilismo. Talvez por ser
oriundo de um mundo humilde e ter conseguido o acesso à instrução e á cultura
após enorme esforço pessoal não se contenta em ser um artista Procura fazer do
mundo uma visão coerente onde se poderá inscrever alguma regra de vida, uma
moral. Se numa primeira análise é levado a descobrir o conceito do “absurdo”,
esse é apenas um ponto de partida para encontrar uma saída, um caminho que o
conduzirá através da revolta e do amor.
Ameaçado de morte em plena
juventude eis outra poderosa manifestação do conceito de “absurdo”, um dos mais
importantes a desenvolver no início da sua obra.
Quando recebe o Prémio Nobel de Literatura (1957) Camus explica a
estrutura da sua obra.
“ Tinha um plano preciso
quando comecei a minha obra: em primeiro lugar queria exprimir a negação sob
três formatos. Romanesco ( “O Estrangeiro”) ; Dramatúrgico (“Calígula”, “O
Equívoco”); Ideológico (“O Mito de Sísifo”). Em seguida antevia o aspecto
positivo ainda sob três formatos: Romanesco (“A Peste”) ; Dramatúrgico (“Estado
de Sítio” , “Les Justes”); Ideológico (“O Homem Revoltado”). Antevejo uma
terceira fase em torno do tema do amor.”
A POLÍTICA
Em termos políticos ou de
carreira política Camus milita várias propostas de esquerda, propostas essas
que nunca o conseguirão preencher na totalidade espalhando críticas e
coleccionando dissabores nessa mesma esquerda. Desde a sua ambígua posição em
relação à independência da Argélia até às ferozes críticas ao regime soviético
Camus manteve-se unicamente fiel a si mesmo, alheio a modas ou conjunturas. Em
1935 inscreve-se no PC francês vendo nele um meio de “sanar as desigualdades
entre europeus e nativos argelinos”. Nunca se afirmando marxista nem que
tivesse lido “Das Kapital” não deixava de se sentir entusiasmado pelas
possibilidades abertas pelo movimento comunista à Humanidade. Em 1936 é fundado
o Partido Comunista Argelino. Camus colabora nas actividades do Parti du Peuple
Algérien valendo-lhe desentendimentos e desaprovação dos seus camaradas
comunistas. Na sequência dessa atitude em 1937 é denunciado como trotskista e
expulso do patido. A partir daí Camus vai-se aproximar do movimento anarquista
francês. Escreve para publicações anarquistas como Le Libertaire, La révolution
Proletarienne e Solidariedad Obrera
( da central sindical CNT). Aliou-se aos
anarquistas no apoio aos levantamentos na Alemanha Oriental em 53, em 56 na
Polónia e, nesse mesmo ano, solidarizando-se com a revolução na Hungria.
Em relação à guerra da Argélia
(54) as suas posições, entendidas como demasiado ambíguas, mais não faziam do
que revestir um dilema moral. Camus era favorável a uma autonomia do território
defendendo que os que nasceram na Argélia, independentemente das suas origens,
deveriam viver e ser livres na sua terra. Chega a defender as acções do governo
francês contra a revolta argumentando que o levantamento argelino era parte de
uma nova “espécie de imperialismo” liderado pelo Egipto na sequência de uma
ofensiva soviética para cercar a Europa e isolar os Estados Unidos.
Durante toda a sua vida Camus foi
um forte opositor a todo o tipo de totalitarismo. Sempre activo com a
Resistência Francesa durante a ocupação alemã, dirigindo o jornal Combat , é também um dos primeiros a
condenar a os excessos da vitória sobre os colaboradores, opondo-se de forma
absoluta tanto à intolerância como à pena de morte. É na sequência desta
oposição absoluta a todo o tipo de totalitarismo que ocorre a ruptura com
Sartre, adepto de um marxismo radical aplicado pela “política das massas”.
Em parte explica a sua posição ao
longo do ensaio sobre a Liberdade e a Revolta n’ “O Homem Revoltado”, uma
enorme interrogação à “política revolucionária de massas” e uma crítica a um
regime soviético totalitário, um estado policial e repressivo.
LITERATURA
Entre o escritor que pensava e o
pensador que escrevia, Albert Camus desenvolve uma obra literária privilegiando
a criação ao ensaio, o romance ao tratado de filosofia, optando por alargar o
seu trabalho ao maior numero de homens em vez de um circulo restrito e
académico de interlocutores. Enquanto escrevia a sua tese acerca de Platão e
Santo Agostinho, Camus acusou o fascínio e a influência do trabalho destes dois
filósofos na sua obra. No seu livro “Confissões”, Santo Agostinho desenvolve a
ideia de uma ligação entre Deus e o resto do mundo. Camus defendia que a
experiência pessoal do indivíduo poderia tornar-se um ponto de referência para
os escritos filosóficos e literários. Mais tarde concluiria que a ausência de
crença religiosa pode ser acompanhada pelo desejo de “salvação e significado”.
Esta linha de pensamento criava um paradoxo tornando-se uma ameaça para o
conceito de “absurdo” na obra de Camus.
O Prémio Nobel de Literatura
é-lhe atribuído no ano de 1957 pela “sua importante produção literária que, com
grande lucidez, aborda os problemas contemporâneos da consciência humana, bem
como pelos escritos contra a pena de morte (“Reflexões Sobre a Guilhotina”) “
A 4 de Janeiro de 1960 Albert
Camus e o seu amigo e editor Michel Gallimard morrem num acidente de viação.
Após a sua morte foram publicados dois títulos ( “A Morte Feliz” e “O Primeiro
Homem”)
Falar da obra de Albert Camus é
tentar compreender e sistematizar o pensamento de um dos mais importantes
pensadores/escritores da segunda metade do século XX. Ao comemorarmos o
centenário do seu nascimento, iremos ao longo deste mês publicar vários textos
sobre a sua obra. Mais do que comemorar interessa-nos sobretudo divulgar e
debater quais foram as suas influências nos dias de hoje. Obrigado a todos
aqueles que quiserem participar ou simplesmente conversar connosco.
Artur
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
O PÊ PÊ
"A estupidez é a euforia do lugar"
Roland Barthes
Parafraseando Mark Twain, acontece-me dizer: "As notícias sobre a inteligência de paulo portas são manifestamente exageradas". De facto, aquele que era irregovágel, passou também a inenarrável, mercê das suas aventuras no Extremo Oriente: factos, eventos, ditos, paródias totalmente inexplicáveis, por isso impossíveis de narrar. portas é simultaneamente o deserto, o camelo e o viajante, tal a euforia com que habita o lugar. E que lugar é esse ? Não se sabe, muda diariamente, muda hora a hora, minuto a minuto, ao sabor da conveniência do momento, com a máscara dos interlocutores momentâneos, com a premente necessidade de sobreviver a todo o custo. Como as marés, pê pê vai e vem, assume a pose de estadista, despe o fato de lacaio da direita dos interesses, veste a farda do paladino dos reformados, dos contribuintes e dos homens da lavoura, volta a vestir o fato e gravata de vice-primeiro, coloca o letreito que diz "sentido de estado", assume a pele do católico, despe a máscara do democrata-cristão, volta a enfiar o fato do patriota in extremis e por aí fora, sem cansaço nem desconforto. Uma das últimas pérolas que proferiu foi: "os pobres não se manifestam, nem aparecem na televisão". Uma verdade óbvia: toda a gente sabe que os manifestantes estacionam os porsche e os ferrari nos parques subterrâneos antes de enfileirarem nas manifestações. Estas terminadas, rumam às suas mansões na quinta da marinha, comemorando o sucesso dos protestos com champagne francês e lagosta suada. E onde pára a sua famosa "inteligência" no meio de tudo isto ? Em lado nenhum, na verdade. Lá jeito para a intriga e a maquinação, ninguém lho nega. Dissimulação, embuste, denegação da verdade, muito bem. Falta de carácter, instinto de sobrevivência, tenacidade nos ódiozinhos de estimação, ambição sem limites, sem dúvida. Ausência de coluna vertebral, flexibilidade nas convicções, doutrinas gelatinosas, olhinho vivo para as oportunidades, há-de aparecer quem lhe peça meças. Inteligência ? Zero. Porque a verdadeira inteligência não existe sem a ética. Porque as competências que supra ficam reconhecidas, desacompanhadas de uma verticalidade moral a toda a prova não passam de "sepulcros caiados de branco", uma contradição nos termos, um oxímoro. Porque a capacidade para o "sound-byte", ou a habilidade para proferir grandes frases que se reclamam de grandes princípios não demonstrados , é apenas sofisma e máscara, "doxa" sem conteúdo, vento levado pelas palavras.
Por outro lado, o portas é um génio. Consegue reunir em si as personagens Bouvard e Pécuchet, as mais assombrosas personalidades imaginadas por Gustave Flaubert. Se um dia, tomado de um irresistível impulso, alguém se dispusesse a compulsar as várias metamorfoses do portas e as reunisse numa Sagrada Escritura, viria a descobrir que a cola que une o portas-jornalista ao portas-vice, passando pelo portas-ministro da defesa e dos negócios, é uma espécie de equivalência universal, o domínio do relativismo absoluto: o Bem e o Mal são iguais; iguais são também o Belo e o Feio; irmãos gémeos o definitivo e o transitório, o estável e o instável, o antigo e o moderno, os vales e as montanhas, a felicidade e a infelicidade, tudo convergindo na celebração deste novo ídolo, neste majestoso EGO que tudo subsume na sua magnificência e na inestimável grandiosidade que a todos ofusca e que deveria impedir os ímpios como eu de olharem directamente para este Sol. Perplexo, descubro que a Estupidez já não é uma característica de certas ideias. Pelo contrário, tal como um deus equanime, espalha-se por toda a parte, propaga-se em todas as direcções, entre crentes e ateus, entre os camponeses e citadinos, entre matemáticos e líricos. A Estupidez é o sanguinário reino de papel do homem novo que foi anunciado em Junho de 2011.
terça-feira, 29 de outubro de 2013
ELOGIO DE PEDRO PASSOS COELHO
“Svendenborg chamava
às suas visões memorabilia”
Arthur Rimbaud
-
Que demónio terá instilado em Pedro Passos Coelho
(PPC) a ideia messiânico-sebástica, inspirada num milenarismo apocalíptico
e escatológico, segundo a qual teria nascido para ser o “salvador da
Pátria”, o homem providencial que iria tirar Portugal da sua inércia e da
sua situação catastrófica, e uma espécie de Beato Salú destinado a salvar
os “empreendedores” e a condenar a uma irremediável fogueira os inertes, os
preguiçosos e todos aqueles que dependem de subsídios para sobreviver e
que estão a impedir que o país se desenvolva e cresça segundo os desígnios
iluminados dos primeiros ? Se me refiro a um demónio (retirando-lhe a
carga teológica) é justamente porque não há nenhuma explicação racional e
lógica para a representação que este homem faz de si mesmo e do seu papel
histórico. Não será certamente pela sua estatura intelectual, já que não
se lhe conhece um estudo, um ensaio, vá lá, uma única ideia solitária que
lhe confira esse estatuto. Aliás, para saber do que falo, dei-me ao
trabalho de ler a “obra” que publicou em 2010 (Difel) e que intitulou
singelamente “Mudar”. Confesso que foi uma tarefa penosa, quase uma
tortura: maçudo, enfadonho, mal escrito (até para os padrões daqueles que,
por meia dúzia de tostões, de dispõem ao frete de redigir as obras que
outros hão-de assinar), o “livro” é uma sucessão de ideias vagas,
propósitos piedosos e teses alheias, mal digeridas e pior compreendidas.
Há mais ensaística, ideologia e argumentação numa lista telefónica das
Páginas Amarelas do que neste amontoado de torpezas mascaradas de boas
intenções. Perplexo, constato o seguinte: o “livro” foi escrito segundo
uma atroz e infindável sucessão mecânico-associativa que remete para o
caos de uma mente em negação (não sou eu que estou doente, é o mundo !) e
que se esgota nalgumas ínfimas e últimas essencialidades e “verdades”. PPC
(ou alguém por ele) utiliza farrapos de linguagem, reduzindo o material
linguístico a dois registos essenciais: clichés e banalidades, tudo
organizado num ritmo redundante, pontuado aqui e acolá por catadupas
verbais que levam a própria linguagem ad
absurdum. É o preço a pagar por formatar a realidade à nossa medida:
reduzir tudo a um campo de batalha monomaníaco em que ficam restos e
dejectos verbais; vive-se do fragmento, do aforismo, da ruína verbal. Mas,
o “livro” tem um mérito: não esconde nada deste projecto demoníaco que
veio a ser posto em prática, destruindo o país e deixando atrás de si um rasto
de pobreza, de humilhação e de indignidade. Como diz Ingmar Bergman no
começo de “O Ovo da Serpente”: “Através da fina membrana, vê-se já o
réptil em formação”.
-
Verdadeiramente, PPC é o “homem cheio de
qualidades”, ou a antítese de Ulrich, o protagonista do romance “O Homem
Sem Qualidades”, de Robert Musil. Lembrar-se-ão que essa personagem
concentra o seu agir/pensar, ou o seu pensar/agir, no “sentido de
possibilidade” dos acontecimentos e pratica um “ensaísmo” como forma de
vida. Precisamente o contrário da ilusão de PPC: julgava ele que ignorando
a possibilidade dos acontecimentos, ou seja, a realidade concreta e
material da sociedade e dos homens, a realidade haveria de se vergar a um
pensamento tão claro e sublime e a “verdade” dos postulados que enuncia
teria necessariamente que aparecer como uma evidência escrita na pedra
para que todos os homens a entendessem e aceitassem. Nunca saberemos quem
encontrou ele na Estrada de Damasco, mas conhecemos os efeitos nefastos do
seu providencialismo. Como muito bem viu Pacheco Pereira, haveremos de
sair desta crise algum dia, superando os seus aspectos económicos e
financeiros. Mas, no que concerne às feridas morais, éticas e sociais,
essas nunca hão-de cicatrizar definitivamente. Por tudo isso, PPC é verdadeiramente
um “escritor” da crise, ou o “escritor” da crise. Acima de tudo, “Mudar” é
uma autobiografia intelectual, ou melhor, uma radiografia, cinzenta e
árida, mostrando um interior vazio e revelando uma ossatura sinistra.
Entenda-me quem o quiser fazer.
Arnaldo Mesquita
domingo, 27 de outubro de 2013
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
terça-feira, 8 de outubro de 2013
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
domingo, 6 de outubro de 2013
sábado, 5 de outubro de 2013
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
LIVRO DE PONTO - OUTONO
1. Parabéns a todas as nulidades, incompetentes e sevandijas que, salvas raras e honrosas excepções, foram eleitos neste Domingo, de norte a sul do país, nas regiões autónomas e nas Ilhas Selvagens. Dispõem de mais quatro anos para desbaratarem dinheiros públicos em obras inúteis, empregarem familiares, vizinhos e conhecidos, adjudicarem obras a amigos e, de um modo geral, continuarem a contribuir para que Portugal vença o prémio de País Mais Feio da Europa, através das autorizações avulsas que vão concedendo para edificações várias: hóteis e "resorts" parolos de luxo em zonas protegidas; campos de golfe em cima das arribas; urbanizações em zonas de paisagem protegida, reserva ecológica ou agrícola. A todos eles desejo um mandato cheio de propriedades.
2. passos coelho e o resto do "gang" não tiveram tempo de ler Jean-Jacques Rousseau. É compreensível: as licenciaturas medíocres obtidas por favor em universidades privadas medíocres; o tempo passado em conspirações, manigâncias e negociatas, subindo a pulso na hierarquia das "jotas"; os anos gastos a esmifrar o Estado dos seus recursos, tratando de transferir capitais que deveriam servir para desenvolver o país e que, ao invés, foram parar aos bolsos dos privados, não lhes deram oportunidade de tomarem contacto com o conceito de "contrato social", indispensável a todos aqueles que almejam desempenhar cargos políticos, e não apenas "ir ao pote". Assim, proponho que se lhes transmita o conceito filosófico-político em doses suaves e homeopáticas. Por exemplo, na feliz formulação de Ana Cristina Leonardo, a única que os partidários do "para trás mija a burra" conseguirão entender:
"Então fazemos assim: Vocês não nos lixam a vida, e nós não vos fodemos a tromba".
3. Passando a coisas sérias: recupero neste Outono o conceito de "emigração interior", que Hannah Arendt desenvolveu num ensaio sobre Lessing, referindo-se aos judeu que, perseguidos na Alemanha se retiravam da vida pública e deixavam de fazer parte de uma sociedade que os rejeitava e decidia aniquilar. Reformulo esse conceito: sujeitos que estamos à iniquidade de um poder político ilegítimo e atroz, que governa contra o povo que o elegeu e a favor de interesses obscuros que o manipulam e orientam, devemos preservar uma espécie de último reduto da nossa intimidade: emigrantes no nosso próprio país, exilados internos, podemos distanciar-nos - ainda que por momentos - da degradada vida pública e política, procurando refúgio na invisibilidade do pensamento e do sentimento nostálgico. Tal atitude, permitir-nos-à, um dia, conhecermos estes "anos de chumbo" e tal conhecimento esclarecerá as razões pelas quais suportámos tudo isto. Como Nietzsche observou: "Quando olhamos para o abismo, o abismo também olha para nós".
4. "Fontes fidedignas" relatam que o último conselho nacional do ppd não tratou de analisar as razões da monumental derrota sofrida pelo partido nas últimas autárquicas, nem de debater mudanças de rumo aconselhadas pelo aviso que o povo português lhes endereçou: tratou-se antes de encontrar formas de perseguir e aniquilar todos aqueles que não alinharam no discurso oficial e se perfilaram contra as escolhas do bando, tudo servido por gritaria, insultos, pateadas, ameaças físicas, palavreado de taberna e linguagem de carroceiro. As máscaras caíram. Por detrás das máscaras estão outras máscaras. E assim até ao infinito. Nada que nos espante. Só é de espantar, ou melhor, de ficar estarrecido de nojo, de vergonha e de horror o facto de aceitarmos ser governados por estes delinquentes. De facto, Portugal bateu no fundo.
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
DESTERRO: A ESPERA DO SILÊNCIO
E no entanto a vida continua. Com os mesmos dramas, carregando as mesmas dores, as mesmas perguntas sem resposta, a mesma ansiedade de estar vivo. O filho de um amigo meu produz esta curta metragem confortando a minha frustração, adoçando o meu desânimo. Provando que a arte e a vida são gémeas de um mesmo corpo, de uma mesma alma, de um mesmo tempo. A simplicidade com que as palavras voam ao sabor da brisa incerta e inconsequente transformadas no gesto de uma dança. A dureza de um cenário nu polvilhado de focos de iluminação espalhados ao acaso. A vida é uma descoberta dolorosa da impossibilidade. A criação é o canto cristalino e maravilhoso de quem a carrega. Um canto que atravessa gerações e se eleva ao céu de uma plenitude. O Ser e a Humanidade que se recordam em cada dia das danças esquecidas do baile da eternidade. Força Diogo.
Artur
terça-feira, 24 de setembro de 2013
ADEUS PEDRO
Lembro-me que fazias anos,
lembro-me que nos juntámos vagamente na área de Cascais e, principalmente,
lembro-me que à saída do restaurante marraste que havias de regressar a Lisboa
de mota. E assim foi. Á pendura na mota do Tomás, capacete branco na cabeça,
pés no ar a tactear apoio no vazio. Lembro-me do GNR a mandar parar e a
perguntar ao Tomás se ele não sabia que não podia transportar o filho de mota e
da cara de parvo que fez no momento em que tiraste o capacete da cabeça. Nesse
ano a tua alcunha passou a ser o “astronauta pequenino”. E como este, lembro-me
de dezenas de episódios em que me fartei de rir contigo, das sessões de
“bélinhas” nas testas uns dos outros, das bebedeiras antológicas na Cervejaria
Europa, das jam sessions de guitarra
e piano em tua casa. Ontem tive a triste
notícia que te tinhas ido embora, uma dor
aumentada pelo facto de ainda há uma semana termos estado juntos a
jantar. É certo que o teu estado de saúde já não era animador mas nada fazia
prever este desfecho em tão pouco tempo. No tempo em que virávamos litros de
cerveja na Cervejaria Europa a vida não fazia sentido nenhum. Hoje foi apenas
mais uma confirmação. O que te queria dizer… sei lá o que é que te queria
dizer. Acho que o que queria dizer-te foi aquilo que sempre te disse ao longo
destes 20/30 anos de amizade. O que te queria dizer era que serás sempre, como
sempre, um de nós. Elemento desta família fabulosa que são os nossos amigos.
Que o teu tamanho só nos distraiu durante a primeira hora em que te conhecemos
para nunca mais se perceber sequer que existia. É claro que para as alcunhas
era certo e sabido, mas também, essa era uma regra aplicável a toda a gente.
Todos tínhamos um pé, um olho torto, no fundo a marca que nos individualizava e
distinguia do resto das pessoas, marca essa através da qual se abria a porta
para a entrada das alcunhas. Lembro-me que eras exímio jogador de matraquilhos
na defesa, de que tocavas lindamente, da tua preocupação connosco, com os
outros.
Parece que tudo tem que ter um
fim na lei desta vida, na ordem natural das coisas, neste enunciado absurdo e
caricato de regras que nos são impostas desde o dia em que nascemos. Mas na
nossa tribo, não. Aqui tudo faz sentido porque há uma espécie de fio condutor
que nos une, um fio tecido com solidariedade e amor. Por ele continuamos presos
ao Tomás, que já marchou há mais de vinte anos, sabendo que ele também pensa em
nós de vez em quando. Aliás, tenho a certeza que o gajo que vai estar à tua
espera à saída do túnel encostado a uma “ninja” verde com um capacete branco na
mão…tenho a certeza de que esse gajo é o Tomás e que ele te vai levar de
regresso a casa. A casa para onde todos acabaremos por voltar um dia. Hoje foi
a tua vez. Um grande abraço Pedro. A gente um dia destes encontra-se…
Artur
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
terça-feira, 17 de setembro de 2013
UMA RESIGNAÇÃO INQUIETA
“Procuro retratar o
que não deveria ser possível
como se fosse.
Ozu retrata o que
deveria ser possível
como se fosse.”
Kenji Mizoguchi
Considerado no seu país como o
mais japonês dos realizadores japoneses, cujos filmes só teriam interesse para
um auditório exclusivamente doméstico, Yasujiro Ozu (1903 – 1963) e a sua obra
foram um segredo bem guardado ao longo de muitos anos do passado século, tendo
alcançado o reconhecimento universal já após a sua morte. De facto, tendo como
tema central a família, e utilizando sempre o mesmo enquadramento sociológico,
a classe média, poderíamos facilmente atribuir-lhe de forma muito superficial a
categoria de “telenovela” da realidade nipónica. A simplicidade aparente dos
seus filmes transforma-se numa reflexão profunda acerca dos problemas de todos
os homens independentemente da sua cultura ou origem social. Os conflitos
internos de cada um, as relações familiares, a impossibilidade comunicacional,
a gestão da frustração, a separação e perda inevitáveis aquando das passagens
pelo matrimónio ou pela experiência da morte. Dramas vulgares de gente vulgar
sob um manto de aceitação contida e resignada, efeito muito criticado pela
geração de cineastas que se lhe segue.
Nos filmes de Ozu não há heróis
nem vilões, os sentimentos ilustrados são tudo menos grandiosos, extremos.
Todas as pessoas são pessoas comuns. Se bem que haja variações de acordo com as
suas condições económicas, as relações familiares e os seus dramas são
idênticos. Os seus mundos vagueiam em círculos concêntricos, toda a gente se
conhece e todos gostam de todos. Quem não pertence à família directa é vizinho,
colega da escola, camarada da guerra, professor, colega no trabalho.
Numa primeira fase (1927 – 33),
ainda no período do cinema mudo, Ozu irá realizar cerca de duas dezenas de
filmes que se dividem entre a comédia e o realismo social. Desta fase é de
destacar o seu primeiro êxito tanto comercial como a nível da crítica, falamos
de NASCI, MAS… (Umarete wa Mita Keredo) de 32, um filme que ilustra o tema
fundamental da sua obra. Dois irmãos insistem na ideia de que o seu pai é o
maior e decidem dar uma sova no filho do seu patrão para o provar. Em reacção à
atitude de humilhação e subserviência do pai, que se desdobra em pedidos de
desculpas na sequência da briga, resolvem entrar em greve de fome. Ao
observá-lo a entrar para o carro do patrão de manhã, todo contente, percebem
que afinal ele será sempre um empregado que nunca chegará a patrão. Embora bem
definidas as diferenças de níveis de vida nenhum dos lados é mais ou menos
favorecido por causa disso. Tão ridículo é o pai dos miúdos a fumar e a fazer
exercício como o patrão a brincar com a sua máquina de filmar atrás da porta do
escritório e de uma placa que diz “Privado”. Da relação e do desequilíbrio
social para o conflito pai-filho, vemos uma fila indiana de crianças na escola
na aula de educação física e caímos logo a seguir numa outra fila, agora de uma
série de empregados de escritório sentados às suas secretárias exibindo expressões
de sonolência. As instituições que nos absorvem a todos, a escola e o
escritório, impõem uma ordem sem sentido independentemente do estatuto
económico-social.
O conteúdo dos filmes de Ozu ao
longo dos anos 30 tem sido catalogado de “realismo consumado” ou “confirmado”.
Numa época em que floresce a literatura proletária, em que cineastas como
Mizoguchi realizam filmes de leitura nitidamente esquerdista, pondo em causa
toda uma estrutura injusta e diferenciada de classes sociais, Ozu mantém-se fiel
aos dramas típicos de um classe média baixa composta por gente comum. Se bem
que a pobreza faça parte do seu quotidiano, tal como as diferenças de classe, a
mensagem que se pode ler é de aceitação. Uma aceitação alvo de muitas críticas.
Mas se Ozu se afastou dos dramas da classe mais pobre no pós-guerra, mais tarde
acabou por continuar a mergulhar os seus personagens nos mesmos problemas de
sempre. Ozu nunca viu a vida como especialmente desesperante ou particularmente
alegre. Nalguns casos foi através da alegria que encontrou alguma verdade no
homem insignificante. Nos anos 30 o homem “insignificante” foi apanhado no meio
da Grande Depressão; nos anos, 50 não. A preocupação de Ozu com as dificuldades
da vida em ambos os períodos foi muito além das contradições da economia e da
sociedade para se focar num outro nível. O da gestão das expectativas e das
frustrações, da desilusão e da aceitação, do enquadramento do homem através do
cenário familiar. Não se trata de uma questão de ideologia mas de opção artística.
DIÁLOGO, CENÁRIO E A CÂMARA NO CHÃO
Os diálogos eram de um
importância extrema no método de Ozu, sendo mesmo a primeira fase de qualquer
dos seus trabalhos. Eram escritos em parceria com o seu argumentista de muitas
décadas (Noda) focados em actores específicos. Assim como o tempo fílmico está
sujeito à sequência do diálogo, também o espaço por onde os personagens se vão
revelando está sujeito a padrões ou arquétipos geográficos. O lar, o salão de
chá, o restaurante, o bar são os espaços onde não só tem lugar o diálogo como
influenciam e adequam o estado de espírito dominante em que esse mesmo diálogo
tem lugar. Recordações e preocupações
sociais no restaurante, desilusões e nostalgia no bar, problemas domésticos em
casa. Os cenários, sempre limpos e bastante iluminados, não são muito
diferentes de um filme para outro. O despojo cenográfico apenas reforça o papel
dos diálogos. Por outro lado a paisagem, o Plano Geral é também secundarizado
em benefício dos actores e das suas palavras. Em PRIMAVERA TARDIA (BASUHN,
1949) Ozu nunca nos mostra a famosa vista sobre a cidade da varanda do templo
de Kiyomizu, antes filmando virado para dentro mostrando os personagens a
apreciarem a paisagem. Em O FILHO ÚNICO (HITORI MUSUKO, 1936) e A HISTÓRIA
(VIAGEM A) DE TÓQUIO (TOKYO MONOGATARI, 1963), as únicas paisagens urbanas que
visualizamos dizem respeito a um indiferenciado aglomerado de prédios atrás dos
carros ou através das janelas dos autocarros. Sobrepondo-se ao tempo e ao
cenário, a prioridade máxima recaía sobre os actores e o seu modo de
representar. Ozu exigia máxima concentração no mais banal dos movimentos,
evitava a representação demasiado emotiva ou denunciada, criando um clima de
extrema contenção. Por vezes o cenário apresenta-se despido de actores que ou
já saíram de cena ou ainda vão entrar. São momentos de silêncio mas ao mesmo
tempo janelas de reflexão, pausas narrativas que indicam um universo que existe
e respira para lá dos personagens.
A extrema formalização da técnica
de Ozu traz consigo um pormenor até hoje longe de ser consensual quanto à
interpretação. Falamos do ângulo baixo de filmagem. De facto, em nenhum filme
de Ozu os seus personagens são vistos de cima. A colocação da câmara ao nível
do chão, em vez de corresponder ao ângulo de visão de um japonês acomodado no “tatami”
da sua casa, observa-o de baixo. Seja uma visão do corredor, um ângulo da mobília ou alguém deitado no chão, a
perspectiva obriga o espectador a observar de baixo para cima. Masahiro Shinoda chamou-lhe o “ponto de vista de uma entidade
divina inferior a observar a acção humana”. O efeito corresponde a obrigar o
espectador a uma reverência involuntária face à celebração da vida de todos os
dias. Se por um lado o universo de Ozu é composto por personagens contidos,
respeitadores da vida e agentes de um quadro emocional mediano sem oscilações,
por outro, ao fazer a apresentação desse mesmo universo ao público, obriga-o a
venerar essa mediania resignada.
CONCLUSÃO
O desenvolvimento formal da obra
de Ozu consiste essencialmente na refinação e apuramento dos problemas básicos
do quotidiano através de arquétipos, quer de situações quer de personagens. Em
pleno tempo de guerra, 1941, HAVIA UM PAI, o problema essencial é a separação
entre pai e filho. Em 1959, OHAYO a família confronta-se com dificuldades por
causa da disparidade entre o mundo dos adultos e o das crianças. Em TOKYO STORY
os pais confrontam-se com a desilusão causada pelo desenvolvimento da vida dos
seus filhos. Os pais na sua contínua apreciação da vida tentam provar que a
felicidade é ilusória. Nada acontece a não ser porque tem que acontecer, apesar
de ser incontornável uma enorme ausência de satisfação. Despojado da influência
do drama ou da felicidade, o que OZU procura é a ascensão do ser humano que
absorva e sinta a vida na sua totalidade independentemente da sua justiça, do
seu prazer, da sua dor. Uma postura muito influenciada pela cultura Zen do seu
país. A quietude e a aceitação, que não significam necessariamente
concordância, obrigam o ser a abarcar muito mais o mistério da vida do que
contrariando o estado das coisas. Daí a chegada tardia da sua obra aos ecrans
ocidentais. No entanto a recepção mundial dos seus filmes foi imediata. Talvez
pela admiração da atenção dada aos pormenores, talvez pela afirmação da
personalidade do realizador, talvez pela concordância com algumas das suas
fórmulas de apresentar a vida. Os filmes de Ozu não estavam destinados aqueles
que procuram soluções utópicas. No seu universo não há espaço para o amor
romântico e apaixonado, para o sucesso individual de quem triunfa na vida, e
muito menos para uma bem sucedida comunicação entre os seres. Apenas a
aceitação, nunca felicidade, fez parte dos seus personagens independentemente
de classe social, nível cultural ou género. Evitando o virtuosismo técnico e a
estrutura do drama foi directamente ao essencial da condição humana. A vida é
uma “estucha”…
Artur
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
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