terça-feira, 17 de setembro de 2013

UMA RESIGNAÇÃO INQUIETA





“Procuro retratar o que não deveria ser possível

como se fosse.

Ozu retrata o que deveria ser possível

como se fosse.”

 

      Kenji Mizoguchi

 

 

Considerado no seu país como o mais japonês dos realizadores japoneses, cujos filmes só teriam interesse para um auditório exclusivamente doméstico, Yasujiro Ozu (1903 – 1963) e a sua obra foram um segredo bem guardado ao longo de muitos anos do passado século, tendo alcançado o reconhecimento universal já após a sua morte. De facto, tendo como tema central a família, e utilizando sempre o mesmo enquadramento sociológico, a classe média, poderíamos facilmente atribuir-lhe de forma muito superficial a categoria de “telenovela” da realidade nipónica. A simplicidade aparente dos seus filmes transforma-se numa reflexão profunda acerca dos problemas de todos os homens independentemente da sua cultura ou origem social. Os conflitos internos de cada um, as relações familiares, a impossibilidade comunicacional, a gestão da frustração, a separação e perda inevitáveis aquando das passagens pelo matrimónio ou pela experiência da morte. Dramas vulgares de gente vulgar sob um manto de aceitação contida e resignada, efeito muito criticado pela geração de cineastas que se lhe segue.

Nos filmes de Ozu não há heróis nem vilões, os sentimentos ilustrados são tudo menos grandiosos, extremos. Todas as pessoas são pessoas comuns. Se bem que haja variações de acordo com as suas condições económicas, as relações familiares e os seus dramas são idênticos. Os seus mundos vagueiam em círculos concêntricos, toda a gente se conhece e todos gostam de todos. Quem não pertence à família directa é vizinho, colega da escola, camarada da guerra, professor, colega no trabalho.

Numa primeira fase (1927 – 33), ainda no período do cinema mudo, Ozu irá realizar cerca de duas dezenas de filmes que se dividem entre a comédia e o realismo social. Desta fase é de destacar o seu primeiro êxito tanto comercial como a nível da crítica, falamos de NASCI, MAS… (Umarete wa Mita Keredo) de 32, um filme que ilustra o tema fundamental da sua obra. Dois irmãos insistem na ideia de que o seu pai é o maior e decidem dar uma sova no filho do seu patrão para o provar. Em reacção à atitude de humilhação e subserviência do pai, que se desdobra em pedidos de desculpas na sequência da briga, resolvem entrar em greve de fome. Ao observá-lo a entrar para o carro do patrão de manhã, todo contente, percebem que afinal ele será sempre um empregado que nunca chegará a patrão. Embora bem definidas as diferenças de níveis de vida nenhum dos lados é mais ou menos favorecido por causa disso. Tão ridículo é o pai dos miúdos a fumar e a fazer exercício como o patrão a brincar com a sua máquina de filmar atrás da porta do escritório e de uma placa que diz “Privado”. Da relação e do desequilíbrio social para o conflito pai-filho, vemos uma fila indiana de crianças na escola na aula de educação física e caímos logo a seguir numa outra fila, agora de uma série de empregados de escritório sentados às suas secretárias exibindo expressões de sonolência. As instituições que nos absorvem a todos, a escola e o escritório, impõem uma ordem sem sentido independentemente do estatuto económico-social.

O conteúdo dos filmes de Ozu ao longo dos anos 30 tem sido catalogado de “realismo consumado” ou “confirmado”. Numa época em que floresce a literatura proletária, em que cineastas como Mizoguchi realizam filmes de leitura nitidamente esquerdista, pondo em causa toda uma estrutura injusta e diferenciada de classes sociais, Ozu mantém-se fiel aos dramas típicos de um classe média baixa composta por gente comum. Se bem que a pobreza faça parte do seu quotidiano, tal como as diferenças de classe, a mensagem que se pode ler é de aceitação. Uma aceitação alvo de muitas críticas. Mas se Ozu se afastou dos dramas da classe mais pobre no pós-guerra, mais tarde acabou por continuar a mergulhar os seus personagens nos mesmos problemas de sempre. Ozu nunca viu a vida como especialmente desesperante ou particularmente alegre. Nalguns casos foi através da alegria que encontrou alguma verdade no homem insignificante. Nos anos 30 o homem “insignificante” foi apanhado no meio da Grande Depressão; nos anos, 50 não. A preocupação de Ozu com as dificuldades da vida em ambos os períodos foi muito além das contradições da economia e da sociedade para se focar num outro nível. O da gestão das expectativas e das frustrações, da desilusão e da aceitação, do enquadramento do homem através do cenário familiar. Não se trata de uma questão de ideologia mas de opção artística.

 

 

 DIÁLOGO, CENÁRIO E A CÂMARA NO CHÃO

 

Os diálogos eram de um importância extrema no método de Ozu, sendo mesmo a primeira fase de qualquer dos seus trabalhos. Eram escritos em parceria com o seu argumentista de muitas décadas (Noda) focados em actores específicos. Assim como o tempo fílmico está sujeito à sequência do diálogo, também o espaço por onde os personagens se vão revelando está sujeito a padrões ou arquétipos geográficos. O lar, o salão de chá, o restaurante, o bar são os espaços onde não só tem lugar o diálogo como influenciam e adequam o estado de espírito dominante em que esse mesmo diálogo tem lugar.  Recordações e preocupações sociais no restaurante, desilusões e nostalgia no bar, problemas domésticos em casa. Os cenários, sempre limpos e bastante iluminados, não são muito diferentes de um filme para outro. O despojo cenográfico apenas reforça o papel dos diálogos. Por outro lado a paisagem, o Plano Geral é também secundarizado em benefício dos actores e das suas palavras. Em PRIMAVERA TARDIA (BASUHN, 1949) Ozu nunca nos mostra a famosa vista sobre a cidade da varanda do templo de Kiyomizu, antes filmando virado para dentro mostrando os personagens a apreciarem a paisagem. Em O FILHO ÚNICO (HITORI MUSUKO, 1936) e A HISTÓRIA (VIAGEM A) DE TÓQUIO (TOKYO MONOGATARI, 1963), as únicas paisagens urbanas que visualizamos dizem respeito a um indiferenciado aglomerado de prédios atrás dos carros ou através das janelas dos autocarros. Sobrepondo-se ao tempo e ao cenário, a prioridade máxima recaía sobre os actores e o seu modo de representar. Ozu exigia máxima concentração no mais banal dos movimentos, evitava a representação demasiado emotiva ou denunciada, criando um clima de extrema contenção. Por vezes o cenário apresenta-se despido de actores que ou já saíram de cena ou ainda vão entrar. São momentos de silêncio mas ao mesmo tempo janelas de reflexão, pausas narrativas que indicam um universo que existe e respira para lá dos personagens.

A extrema formalização da técnica de Ozu traz consigo um pormenor até hoje longe de ser consensual quanto à interpretação. Falamos do ângulo baixo de filmagem. De facto, em nenhum filme de Ozu os seus personagens são vistos de cima. A colocação da câmara ao nível do chão, em vez de corresponder ao ângulo de visão de um japonês acomodado no “tatami” da sua casa, observa-o de baixo. Seja uma visão do corredor, um ângulo  da mobília ou alguém deitado no chão, a perspectiva obriga o espectador a observar de baixo para cima. Masahiro Shinoda  chamou-lhe o “ponto de vista de uma entidade divina inferior a observar a acção humana”. O efeito corresponde a obrigar o espectador a uma reverência involuntária face à celebração da vida de todos os dias. Se por um lado o universo de Ozu é composto por personagens contidos, respeitadores da vida e agentes de um quadro emocional mediano sem oscilações, por outro, ao fazer a apresentação desse mesmo universo ao público, obriga-o a venerar essa mediania resignada.

 

 

 

CONCLUSÃO

 

O desenvolvimento formal da obra de Ozu consiste essencialmente na refinação e apuramento dos problemas básicos do quotidiano através de arquétipos, quer de situações quer de personagens. Em pleno tempo de guerra, 1941, HAVIA UM PAI, o problema essencial é a separação entre pai e filho. Em 1959, OHAYO a família confronta-se com dificuldades por causa da disparidade entre o mundo dos adultos e o das crianças. Em TOKYO STORY os pais confrontam-se com a desilusão causada pelo desenvolvimento da vida dos seus filhos. Os pais na sua contínua apreciação da vida tentam provar que a felicidade é ilusória. Nada acontece a não ser porque tem que acontecer, apesar de ser incontornável uma enorme ausência de satisfação. Despojado da influência do drama ou da felicidade, o que OZU procura é a ascensão do ser humano que absorva e sinta a vida na sua totalidade independentemente da sua justiça, do seu prazer, da sua dor. Uma postura muito influenciada pela cultura Zen do seu país. A quietude e a aceitação, que não significam necessariamente concordância, obrigam o ser a abarcar muito mais o mistério da vida do que contrariando o estado das coisas. Daí a chegada tardia da sua obra aos ecrans ocidentais. No entanto a recepção mundial dos seus filmes foi imediata. Talvez pela admiração da atenção dada aos pormenores, talvez pela afirmação da personalidade do realizador, talvez pela concordância com algumas das suas fórmulas de apresentar a vida. Os filmes de Ozu não estavam destinados aqueles que procuram soluções utópicas. No seu universo não há espaço para o amor romântico e apaixonado, para o sucesso individual de quem triunfa na vida, e muito menos para uma bem sucedida comunicação entre os seres. Apenas a aceitação, nunca felicidade, fez parte dos seus personagens independentemente de classe social, nível cultural ou género. Evitando o virtuosismo técnico e a estrutura do drama foi directamente ao essencial da condição humana. A vida é uma “estucha”…


 

 

Artur  

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