As Partes do Todo deseja um Feliz Natal a todos os seus leitores
(Fotografia de Helen Jordan)
São muito pouco conhecidas as relações entre Albert Camus e André Malraux, ofuscadas pela muito comentada e analisada até à exaustão extraordinária relação de amizade entre Camus e Jean-Paul Sartre e a ainda mais comentada ruptura entre os dois, provocada pela publicação de "O Homem Revoltado". A obra "Correspondance 1941-1959" vem por isso preencher essa lacuna. Trata-se de uma edição da NRF Gallimard de 2016 e, como é habitual nessa chancela, é de uma sobriedade total: limita-se a reproduzir a correspondência trocada entre os dois entre 1941 e 1959, exarando algumas notas de rodapé que enquadram as missivas trocadas no seu contexto histórico e nos respectivos percursos biográficos, deixando para o leitor a interpretação literal daquilo que uniu essas duas personalidades ímpares do século XX europeu. Agradecemos que assim seja, que sejamos livres para traçarmos o retrato dessas relações a partir das palavras dos próprios. Sophie Doudet, que organizou e apresenta a correspondência, limitou-se a organizá-la cronologicamente e, como já disse, a enquadrar o contexto em que ela ocorre, apresentando, isso sim, uma bibliografia que permite ao leitor, se assim o desejar, aprofundar o conhecimento da biografia e obra dos escritores.
A primeira coisa a reter é o papel fundamental desempenhado por Malraux na entrada de Camus na Gallimard e na publicação conjunta de "O Estrangeiro" e de "O Mito de Sísifo". Sabe-se que Camus prezava acima de tudo a triangulação que consistia em, sobre um determinado tema, escrever uma obra de ficção, um ensaio e uma peça de teatro. E sabe-se também que Gaston Gallimard não estava muito pelos ajustes na publicação do ensaio filosófico de um jovem a quem não reconhecia profundidade e sistematicidade suficientes para que as suas elaborações filosóficas tivessem bom acolhimento no ambiente da França ocupada e em grande tumulto. Já quanto ao romance era diferente: a recomendação de Malraux e de outros intelectuais de peso garantia a repercussão dessa obra inicial que inaugurava uma das mais extraordinárias aventuras do pensamento e da arte do século XX. É assim que ficamos a saber que Malraux recebeu um exemplar de "O Mito" com uma dedicatória que rezava:
"À André Malraux avec l'admiration et l'amitié d'Albert Camus"
É importante referir que Malraux é mencionado quatro vezes no ensaio sobre o Absurdo, o que atesta a admiração que Camus tinha por ele e também a amizade que o mais jovem sempre dedicou aquele que considerava como seu mestre. E, no entanto, e na verdade, o que poderia unir esses dois homens cujas vidas não poderiam diferir mais ? Malraux nasceu em Paris no seio da burguesia endinheirada, filho de uma civilização que depressa vai descobrir que é mortal. Quando Malraux parte para a Ásia e dá início a uma série quase inacreditável de aventuras, Camus é ainda uma criança pobre na Argélia francesa e quando "A Condição Humana" obtém o Prémio Goncourt de 1933, este último é um jovem estudante prometedor que, mais tarde, irá adaptar ao teatro "Le Temps du Mépris", e que, ainda não tendo publicado nada se vai medir com uma personalidade que ombreia com Dostoievski, Proust, Gide e com a elite dos intelectuais franceses que gravitavam em torno da NRF. Portanto, tudo os distinguia: a origem social, os estudos que fizeram, a idade, a intervenção pública: em 1936, quando Camus organiza a representação colectiva "A Revolta das Astúrias", que precede em muito a publicação de "L'Espoir", Malraux é já o comandante da aviação estrangeira que combateu do lado republicano na Guerra Civil espanhola; Camus "apenas" militava civicamente em prol da justiça e da liberdade. Podemos imaginar a emoção de Albert quando desembarcou em Paris e assistiu à exibição de "Espoir - Sierra de Teruel", realizado por Malraux e com origem na sua experiência no combate espanhol, um Malraux símbolo da resistência anti-fascista e no auge da sua glória literária. O que é certo , e disso esta correspondência dá conta, é que Camus e Malraux se admiravam mutuamente e que foram desenvolvendo uma amizade sem mácula ao longo do tempo, apesar de divergirem séria e profundamente no que concerne às respectivas posições políticas depois da Libertação. Porque antes disso, e no essencial, estavam de acordo. E como não estariam ? Certamente Malraux, ele próprio empenhado na denúncia do colonialismo francês na Indochina, admirava a denúncia que Camus fazia do colonialismo francês no Norte de África nos artigos publicados no jornal "Alger Républicain".
Uma das mais extraordinárias trocas de correspondência entre os dois ocorre quando Albert Camus lhe pede autorização para adaptar ao teatro e encenar no Théâtre du Travail "Le Temps du Mépris". A resposta de Malraux é peremptória e definita, consistindo numa única palavra: "Joue !", sem sequer cuidar de saber em que termos Camus iria adaptar e encenar o seu texto. O que atesta o nível de confiança na integridade de Camus e na certeza de que combatiam o mesmo combate. Ainda não se tinham encontrado pessoalmente. Esse encontro dá-se, como já foi dito, por ocasião da estreia em Paris do filme de Malraux, portanto sob o signo do apoio à causa republicana espanhola e à defesa da República; ambos denunciam - com os meios e recursos que tinham à sua disposição - o golpe de estado franquista e não se cansaram nunca de condenar veementemente o miserável abandono, a terrível negligência a que a comunidade internacional votou a República espanhola. Essas duas vertentes da sua intervenção pública - denúncia do colonialismo e condenação do fascismo espanhol - acabariam por cimentar ainda mais a amizade e admiração mútuas. E Malraux nunca se esqueceu do que viu em Espanha: as acções dos conselheiros soviéticos, mais preocupados em esmagar as veleidades não ortodoxas dos anarquistas e outras facções de esquerda do que em combaterem os franquistas. Foi aí que começou a deixar de ser um "compagnon de route" do Partido Comunista. E nunca voltou a Espanha. Olivier Todd, um dos grandes biógrafos de Malraux (cf. "André Malraux - Une Vie", Paris, Gallimard, 2001) conta que em 1972 recusou desembarcar em Cádiz aquando de um cruzeiro que fez no Mediterrâneo. Camus, pelo seu lado, demitiu-se em 1952 da Unesco por a organização ter aceite a Espanha franquista no seu seio.
Passo por alto as relações entre eles durante a II Guerra Mundial e a Ocupação, período em que as cartas entre ambos se tornam raras por motivos óbvios. Interessará saber que, em 1943, Malraux foi decisivo na escolha de Camus e Sartre como jurados do Prémio Literário Pléaide, criado pela Gallimard e pela escolha de Camus como integrante do comité de leitura da Gallimard, cargo que ocupará até à sua morte em 1960; que Camus ajudou inúmeras vezes Malraux nas suas acções como resistente; que, no jornal "Combat", em 1944, fez titular a primeira página com o anúncio "André Malraux est vivant", depois de ter sido anunciada a sua captura pelos alemães e o seu fuzilamento. Ferido, capturado e evadido para continuar o combate. Camus escrevia:
"Nous n'avions jamais accepté la nouvelle de sa mort. L'amitié a son espérance et ses raisons plus fortes que la raison. Car il était, "il est", de nos amis et l'idée qu'il pouvait être tombé dans une lutte qui était la sienne et la nôtre depuis tant d'années, avant de connaître la victoire, cette idée nous serrait le coeur et nous remplissait d'amertume (...) Quelques semaines avant la Libération, Malraux nous quittait pour la dernière fois, sur le Pont Royal, les cheveux sur le front, la cigarette vissée au coin de la bouche et l'imperméable volant au vent de la Seine (...) Nous avons dit "Veillez sur vous" et Malraux riait".
Este e outros textos podem ser lidos na indispensável recolha "Éditoriaux et Articles d'Albert Camus 1944-1947", edição estabelecida por Jacqueline Lévi-Valensi, Paris, Gallimard, 2002.
Termino, sem terminar, referindo a última troca de correspondência e a última interacção entre os dois. Ocorreu em 1959, quando Malraux era Ministre des Affaires Culturels (um ministério da cultura criado por De Gaulle à altura e dimensão da figura de Malraux), já no fim do ano. Malraux conseguiu desenredar as teias burocráticas e financeiras para a atribuição permanente de uma sala de teatro parisiense a Albert Camus, para que este a gerisse administrativa e artisticamente com toda a liberdade. Já não houve tempo; Camus morria a 4 de Janeiro de 1960.
(Crónica de uma guerra qualquer)
A noite estava ainda fechada sobre a sua escuridão e o ar do
quarto era denso. Sentado aos pés da cama James olhava lá para fora através da
janela. Não tinha a certeza de ter acordado muito cedo ou se sequer tivesse
pregado olho. A chuva intensa das últimas horas tinha finalmente cessado, dando
lugar a um silêncio total, quase mágico. Envolvido no fumo do cigarro que lhe
ia ardendo entre os dedos estava incerto quanto ao que sentir. O seu pensamento
era vago tal como o olhar que, olhando, não conseguia ver nada, registar fosse
o que fosse. Deixou-se embriagar por instantes naquela atmosfera de vazio total
que o fazia sentir vagamente em paz. Os tempos eram pesados, a maior parte das
vezes incompreensíveis. A guerra tinha vindo como uma tempestade negra virar tudo
ao contrário. A vida das pessoas, o espaço vivido, e à medida que se instalou
foi toldando esperanças, interrompendo existências, eliminando expectativas.
Uma nova realidade passou a tomar conta dos dias obrigando todos a reformularem
os seus planos. A outrora promessa da arquitetura, especializada em restauro de
casas antigas, era agora um homem em uniforme dentro de uma hierarquia rígida
que recebia e cumpria missões de defesa do território do seu país tentando
abater o maior número de inimigos. Pelo menos voava, uma das actividades que dantes
mais prazer lhe dava nos tempos livres. Olhou para o lado onde Martha dormia
descontraída, indiferente à noite e ao mundo em geral. Lembrou-se da
intensidade das últimas horas vivida entre eles. Da loucura, da paixão bem como
da tremenda discussão no fim. Há cerca de três anos que se encontravam em
espaços escondidos, há três anos que desesperavam um pelo outro, há três anos
que se amavam apaixonadamente. James entendia que era hora de juntarem as suas
vidas. Martha, dez anos mais velha que ele, era casada. Amava-o mas não era
capaz de deixar o marido. Havia a sociedade, o contrato do casamento, as convenções
e mais um sem fim de razões que a prendiam. Não podia deitar tudo pela janela
fora por mais que gostasse dele. Um beco sem saída que James tolerava cada vez
menos. Se tudo tinha ficado virado do avesso com a guerra, se nada voltaria a
ser como dantes, para quê insistir em hábitos condenados a desparecer? Era
Martha que o amava, era Martha que não aguentava dois dias sem o ver, era
Martha que dormia despreocupada naquela cama ao seu lado… Mas era lady Clarence
que queria continuar a ser, era lady Clarence que se recusava a morrer para
deixar Martha livre de viver a sua vida com o homem que desejava.
Para James naquela noite tinha sido tudo dito. Daí para a
frente não tinha ainda uma ideia nítida do que iria fazer mas nada voltaria a
ser como antes. Tal como a varredura dos ventos de guerra que destroem uma
ordem e permitem que outra se erga sob as suas cinzas, a sua existência sofria
uma metamorfose sem desfecho previsível.
O que for, seria.
Levantou-se para apagar o cigarro no cinzeiro em cima da mesa
e viu o seu blusão de voo pendurado numa cadeira esquecida. Por cima,
entrelaçado, o cachecol branco de seda que ela lhe tinha oferecido no seu
último aniversário. Vestiu-se e vasculhou nos bolsos. Tirou um bloco de notas e
um pequeno lápis para fora e escreveu uma frase breve. Depois dobrou o cachecol
com muito cuidado e deixou-o sobre a mesa de cabeceira do lado dela. Arrancou a
folha onde tinha estado a escrever com um movimento seco, dobrou-a ao meio e
colocou-a sobre o cachecol. Observou o corpo dela meio destapado pela última
vez naquela noite. Uma perna pendurada para fora da cama, as costas livres, as
nádegas soltas. Martha emitiu um tímido gemido quando a empurrou levemente para
dentro e a tapou. De seguida aproximou- se dos seus lábios e beijou-a quase sem
lhe tocar para que continuasse a dormir.
Já cá fora sentiu o arrepio da madrugada nos ossos. Colocou
os óculos protectores e montou a motorizada que usava desde que se tinha dado
como voluntário para as fileiras. Empurrou-a com as pernas sem a ligar até
estar bastante longe da estalagem. Só depois o ruído do motor e o frio da
madrugada se tornaram seus companheiros de velocidade a caminho da base. Sem
saber porquê recordou a Biblioteca do pai, aquele espaço onde tinha passado
tantas tardes fascinado com os livros, os seus livros e os seus mistérios. Ali
tinha percebido a primeira noção de eternidade. E ali também a última conversa
com o pai que se ofereceu mais do que uma vez para lhe arranjar uma tarefa
menos perigosa, mais recuada da linha da frente. Com dois telefonemas resolvia
aquilo e não havia nenhuma razão para ele correr tantos riscos. Também se falou
de Martha mas o assunto foi rapidamente arrumado. James recusou a ajuda do pai.
Rupert, o irmão mais velho é que devia ser o alvo dessa protecção. Na qualidade
de mais velho tinha sido uma vida inteira preparado para suceder ao progenitor.
Ele não. Tinha trilhado o seu caminho e assim continuaria. Sem preparação para
Lord, sem formação para a actividade política, sem vocação nenhuma para
herdeiro. Ao fim de uma hora o pai compreendeu e acabou por aceitar as suas
razões. Concordava com elas sem o admitir, admirava-o sem o conseguir
expressar. Mas James conhecia-o, sabia ler nas esquinas das palavras que
ficavam a pairar no ar até aterrarem na lombada de um livro, uma vida inteira
depois de aprender a deixar as emoções tapadas. A sua despedida foi um enérgico
e seco aperto de mão onde os desejos de boa sorte e felicidades futuras ficaram
subentendidos. Como dois amigos de longa data. Quando os pais morressem era da
biblioteca que iria ter mais saudades.
Chegou com a primeira claridade da alvorada no horizonte. O
céu continuava escuro e a chuva ameaçava voltar outra vez em força. Ouviu o
briefing meio distraído, meteorologia, movimentos inimigos, previsões para
aquele dia em geral. Através da janela conseguia ver a cauda do seu avião
estacionado sobre a erva verde e húmida. Uma máquina extraordinária, fácil de
manobrar, suave e elegante. Com uma manutenção adequada podia fazer quase tudo
com ele. A previsão não era de grande actividade para aquele dia se bem que tudo
poderia mudar numa questão de minutos. No fim do briefing dirigiu-se à
cafetaria improvisada e decidiu-se por uma bebida quente. Além de Gilles, o
francês da esquadrilha que tinha já combatido nos céus de Espanha, James era o
único que preferia café quente ao chá tradicional daquelas paragens. Carrancudo e homem de poucas falas, Gilles
transportava sempre consigo um termos de café da Guiana. Convicto e destemido
dizia que o fascismo o tinha abatido uma vez e que não iria permitir que isso
se voltasse a repetir. Enquanto o dia ia nascendo trocaram algumas ideias
acerca da antevisão dos próximos tempos. Por enquanto estavam a aguentar o
ímpeto invasor, mas até quando? Se a América não se despachasse a entrar
rapidamente na guerra o seu esforço poderia não ser suficiente. Enquanto
falavam foram interrompidos pelo som da sirene estridente da base. Uma
esquadrilha de bombardeiros estava a caminho vinda de Leste. Com asas nos pés
todos os homens correram para os seus postos e em dez minutos toda a
esquadrilha estava no ar. Passada alguma turbulência o tecto das nuvens era
ultrapassado e o Sol iluminava o céu como se tivessem passado de um mundo para
outro. Ao fim de alguns minutos os aviões inimigos tinham sido avistados.
Seguiu-se mais uma batalha aérea, outra página do livro da Batalha de
Inglaterra. Enfrentaram primeiro uma barreira de caças inimigos. Depois foram
no encalço dos bombardeiros. Os aviões corriam em todas as direcções como
mosquitos ao som das explosões. Gilles acertou em cheio no depósito de um
bombardeiro inimigo, James contabilizou dois caças abatidos. Quando tudo
parecia estar a terminar, caça inimigo surgiu do lado do Sol e apontou ao seu
avião. Quando se apercebeu do que estava a acontecer já era tarde. O motor
tinha sido atingido, a seguir a hélice deixou de funcionar. Restava-lhe planar
para lugar seguro, perder rapidamente altitude e sair dali. Uma explosão
encheu-lhe o cockpit de fumo. Pelo rádio ainda teve tempo de ouvir o comandante
de esquadrilha aos gritos a dizer-lhe para saltar. James levantou um braço à
procura da alavanca para abrir a carlinga. Encontrou-a já a pique sobre o mar.
Tinha um minuto se tanto para conseguir sair e abrir o paraquedas com sucesso.
A mão continuou agarrada à pega de emergência. Não a abriu. Despenhou-se no mar
a uma velocidade vertiginosa que o mataria logo no impacto. A esquadrilha regressou
com menos três elementos naquela manhã. James passaria a número estatístico de
análise da batalha. Substantivo anónimo e colectivo no discurso político, herói
fantasma decorado com uma lápide e uma medalha. Mas James deixou de ser James
no momento em que o seu avião se despenhou no mar. Ou talvez porque o oceano o
reclamou tivesse deixado de pertencer a si próprio. Ou talvez nada em relação a
milhões de vidas que se encaminhavam numa direcção e que deixaram de ser só
porque alguma razão implacável as decidiu reclamar.
Martha acordou já a manhã ia alta. Espreguiçou-se e
sentou-se na cama. Olhou lá para fora a chuva que continuava sem fim. Relembrou
a noite anterior. A paixão e a conversa final. Pôs um robe por cima das costas
e acendeu um cigarro enquanto se dirigiu até à janela. Como se regressada de
uma longa viagem tentava alinhar as suas prioridades para os próximos dias.
Havia tanto para fazer que não sabia para onde se virar. James tinha partido
amuado mas era sua convicção que havia de lhe passar. A guerra dava cabo dos
nervos a todos. Era uma questão de tempo até se voltarem a encontrar. Ao mesmo
tempo que pensava isto sentiu um frio estranho alojar-se no peito, um tremor a
percorrer-lhe as costas como se alguém tivesse deixado uma janela aberta. Foi
quando se sentou de novo na cama que reparou no cachecol pousado na mesa de
cabeceira. Agarrou-o e encostou-o à cara sentindo ainda o cheiro dele. No chão
um pequeno papel dobrado chamou-lhe a atenção. Uma mensagem de despedida,
pensou, antes de o começar a ler. Abriu o papel
Se de alguma
forma quiseres honrar o tempo que estivemos juntos peço-te um último favor:
Nunca mais estejas com ninguém enquanto estiver a chover
James
Dedicado à Matilde, minha querida filha e uma mente brilhante
Um destes dias, já não sei qual, fui à FLAD assistir ao lançamento do livro "Hannah Arendt - Uma Biografia" (Relógio d'Água, 2022) pela sua autora, a Prof. Samantha Rose Hill e lembrei-me que este blog estava a cometer uma enorme injustiça: se não me engano, nunca publicámos um texto sobre Hannah Arendt, uma das maiores pensadoras do século XX, cuja fecundidade de reflexão continua a ecoar em todos os problemas que se nos deparam, sejam eles de cariz político, sociológico ou filosófico. Talvez tenhamos feito referências esparsas à sua obra em outros textos, mas este é o momento de começar a preencher essa lacuna inadmissível. Não sendo eu um especialista no seu pensamento - não sou, aliás e ainda bem, especialista em nada - sou ainda assim um devoto leitor das suas obras e delas me tenho servido muitas vezes para me guiar no labirinto da contemporaneidade. E tenho, sobretudo, procurado compreender as suas posições e perspectivas em relação à acção política, sabendo que a filósofa o fez sempre a partir de um horizonte ético que se baseia sempre na interrogação primicial: como podem os homens agir em conjunto (portanto, política e publicamente) no sentido de expressarem o seu amor uns pelos outros e pelo mundo que habitam.
Não sendo, como já referi, um especialista no pensamento de Arendt, não procuro traçar um panorama completo desse pensamento, mas antes iniciar um série que se debruçará sobre aspectos da sua reflexão que se me oferecem como fundamentais, começando, como já adivinharam, pelo conceito de "amor mundi". Antes de me abalançar a tão arriscada tarefa, quero deixar uma nota introdutória que consiste em relembrar que, apesar dos tormentos pessoais que quase a fizeram colapsar (nomeadamente a sua fuga da Alemanha nazi, a sua fuga posterior de França quando esta foi invadida, a morte de Walter Benjamin, a sua chegada a Nova Iorque completamente desprovida de meios materiais, etc.) Hannah sempre foi uma pessoa com uma imensa alegria de viver e dotada de um incomensurável sentido de humor. E também quero assinalar que, apesar de ter estudado e convivido com os grandes peso-pesados da Filosofia do século XX - Martin Heidegger, Edmund Husserl, Karl Jaspers - manteve sempre uma enorme abertura de espírito e permanentemente procurou uma certa leveza que, sem prejudicar a profundidade, justeza e rigor do seu pensamento, a tornam mais próxima de nós, mais presente na nossa fragilidade e vulnerabilidade, mais ciente dos nossos erros e dos nossos fracassos. Em suma: mais humana.
Para início de conversa, relembro que a sua tese de doutoramento tem como título "O Conceito de Amor Em Santo Agostinho - Uma Reflexão Filosófica" (Instituto Piaget, 1997), texto no qual, distanciando-se da dimensão teológica, Arendt identifica e analisa uma das dimensões do conceito de "amor" em Agostinho: o princípio ético que vincula os homens uns aos outros e através do qual é possível formar comunidades. A questão, para a filósofa alemã consiste em determinar se esse conceito de amor é por si só capaz de gerar conexões sociais e determinar a acção política. Para o que aqui me traz, não me interessa desenvolver muito este tema, remetendo os eventuais interessados para a referida obra disponível numa excelente tradução e numa edição muito cuidada como é apanágio das edições do Instituto Piaget. O que me importa reter é a centralidade do conceito de amor em todo do pensamento de Arendt (desde esse texto de 1929) até ao seu fim. E também me importa assinalar que a apresentação que possa fazer do conceito de "amor mundi" ficará sempre aquém da complexidade e da profundidade da sua formulação.
Se, como diz Samantha Rose Hill, os sentimentos são perigosos em política, a solidariedade e o pensamento crítico são essenciais, teremos que concluir que o primeiro requisito é o de ver os outros tal como são, o que parece ser uma verdade banal, mas que já não o é tanto se reformularmos a expressão, acrescentando-lhe: "ver os outros tal como são, não em função do nosso próprio desejo ou a partir de uma concepção abstracta de mesmidade". O que Arendt visa acima de tudo (depois de ter analisado e desconstruído os dois tipos de amor que S. Agostinho concebia - o amor-desejo e o amor-memória - é o amor que ama o próximo e o mundo em toda a sua alteridade. E, provavelmente fruto das suas próprias experiências, amar o mundo significa amá-lo na sua totalidade, incluindo o sofrimento, a injustiça, a fealdade, a falta de verdade ,de justiça e de felicidade que, evidentemente, não são deste mundo.
O processo de Arendt é constituído por uma análise altamente sofisticada das patologias do amor, relembrando que o amor é muito mais do que o amado e o amante; há um mundo entre eles que tem que ser cuidado, num espaço político onde todos os actores estão presentes todo o tempo, interagindo e baralhando os dados de um sistema que só na aparência é robusto e eficaz. Na última obra que produziu - "A Vida do Espírito - Volume II Querer", Instituto Piaget, s.d.), Arendt volta a afirmar que o amor é o reconhecimento da alteridade dos nossos semelhantes e pré-condição para a criação do espaço político. Sublinhando que para Agostinho é o amor que transforma a vontade dividida, diz: "não existe uma afirmação mais forte de algo ou alguém do que amá-lo, ou seja, dizer: Quero que existas - Amo: volo ut sis".
É preciso, então, que voltemos a repensar esse conceito, para percebermos onde errámos, em que encruzilhada virámos na direcção errada, em que altura deixámos de ver com clareza e nos tornámos os autómatos da modernidade, os zombies da tecnologia, os arautos (mesmo que involuntários) da função, do empreendedorismo e de todas as outras barbaridades com que enfeitamos o nosso vazio existencial.
Aliás, deixo já aqui uma pista para um próxima abordagem do pensamento de Hannah Arendt:
Por que razão, depois dos grandes capítulos que se intitulam "Anti-Semistismo", "Imperialismo" e "Totalitarismo", termina "As Origens do Totalitarismo" com as seguintes palavras:
Mas o domínio totalitário como forma de governo é novo no sentido de que não se contenta com esse isolamento, e destrói também a vida privada. Baseia-se na solidão, na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter.
A solidão, a sério ?