Décimo oitavo dia do décimo mês de dois mil e vinte e um.
quarta-feira, 20 de outubro de 2021
PORQUE SIM
terça-feira, 19 de outubro de 2021
A NOITE SANGRENTA, CEM ANOS DEPOIS
Passam
hoje cem anos sobre uma trágica data da nossa História recente onde, na sequência
de um golpe de estado, um aparentemente indisciplinado e selvático grupo de soldados
do lado vitorioso deu largas a uma série de execuções de personalidades
políticas e militares da época. Nos anos noventa resolvi tentar escrever a
história desses acontecimentos e transformar esse trabalho no argumento para
uma longa-metragem. Enquanto argumento o filme ganhou dois prémios embora nunca
tenha conseguido passar à fase seguinte, isto é, à produção e conversão em
imagens. Deixo-vos a sua expressão mais curta em forma de texto (Sinopse) enquanto
modesto contributo de homenagem às vítimas e, principalmente, em homenagem a
uma mulher incrível (Berta Maia) que nunca descansou enquanto não descobriu a “mão”
por trás dos acontecimentos aparentemente fortuitos que de fortuitos nada
tinham.
Este
trabalho foi escrito em parceria com o cineasta João Matos Silva.
Artur
Guilherme Carvalho
A
NOITE SANGRENTA
(Sinopse)
No dia 19
de Outubro de 1921 a jovem República fundada com a Revolução de 1910 sofria
mais um rude golpe. Na sequência de um tempo atribulado, sem soluções
duradouras e eficazes, com a falência da credibilidade das instituições, golpes
de estado e governos sucediam-se a uma cadência alucinante.
Três anos depois de uma participação activa
na I Guerra Mundial, pouco reconhecida na Conferência de Paz pelas potências
europeias vencedoras, dois anos após o assassinato de um dos mais carismáticos
presidentes da república, Sidónio Pais, e com uma situação económica cada vez
mais enfraquecida pela corrupção e pela subida da inflacção, a sociedade portuguesa
cada vez mais dividida, atravessa um período difícil da sua História marcado
pela errância e pelo acaso, ao sabor das suas próprias convulsões.
Na noite que se seguiu ao golpe de 19 de
Outubro de 1921, cinco personalidades públicas prestigiadas são barbaramente
assassinadas por tropas revolucionárias indisciplinadas, aparentemente
desirmanadas da sua cadeia de comando. O Presidente do Ministério (Primeiro
Ministro), que assina a sua demissão pelas 13 horas do dia 19 acaba por ser
assassinado no Alfeite da Marinha nessa mesma noite. Para além do dr. António
Granjo, homens como o Almirante Machado Santos, herói revolucionário do 5 de
Outubro de 1910 e várias vezes Ministro, o Comandante Carlos da Maia, o coronel
de cavalaria Botelho de Vasconcellos e o Comandante Feitas da Silva juntam-lhes
os seus nomes numa macabra lista que terá sido tudo menos obra do acaso,
levantando desde o início sérias e preocupantes dúvidas quanto à sua origem.
Comovendo a
sociedade portuguesa de uma forma global, a “Noite Sangrenta”, como ficou conhecida,
tomou assento durante algum tempo, quer nos jornais, quer nos tribunais durante
o julgamento. Desde as campanhas públicas a favor dos familiares das vítimas
até às mais díspares e inflamadas afirmações, a “Noite Sangrenta” marcou de
forma profunda todos aqueles que viveram nesse tempo. Após os funerais e os
traumas, todos se empenharam no apuramento das responsabilidades dos trágicos
acontecimentos daquela noite de má memória. Em circunstâncias pouco usuais, o
Tribunal Militar de Sta. Clara será palco para o julgamento presidido por um
tribunal misto, civil e militar. Para além de um júri composto por cinco
oficiais generais, o tribunal é presidido pelo General Camacho tendo como
auditor o dr. Almeida Ribeiro e como Promotor de Justiça o General Carmona,
mais tarde Presidente da República. Suspensa na imprensa da época a sociedade
portuguesa vai seguindo atentamente o desenrolar dos acontecimentos.
Precisamente por ser só quase nos jornais
que se encontra concentrado o material de pesquisa histórica referente à “Noite
Sangrenta”, o único personagem ficcional que integra o filme desde o princípio
é um jornalista. Desde o golpe de estado que ele acompanhará a evolução dos
acontecimentos. As suas dúvidas e os seus raciocínios estabelecem a ligação
entre o entendimento do espectador e o desenrolar da acção.
II
O processo terá vários julgamentos, sendo
apenas dois exclusivamente referentes à “Noite Sangrenta”. Num serão julgados
os oficiais revolucionários responsáveis pelos seus subordinados, bem como pela
segurança e ordem nas ruas da cidade no decorrer do golpe de estado. Noutro, o
grupo dos praças um oficial e dois sargentos, todos eles tripulantes da
tragicamente famosa “Camionette Fantasma”, uma carrinha utilizada para
transportar algumas das vítimas desde as suas residências até às execuções. Se
no primeiro caso, por falta de provas, todos serão absolvidos, no segundo as
penas aplicadas reflectem o reconhecimento da autoria material dos crimes.
Desde sempre que no grupo de guardas e marinheiros
que compunham a “equipa de extermínio” se destaca um líder. Trata-se do Cabo
marinheiro Abel Olímpio, o “Dente de Ouro”, principal instigador e orientador
das movimentações do grupo. Durante o julgamento negará todas as acusações em
bora acabe por ser condenado a vários anos de prisão.
III
Após o julgamento, Berta Maia, a viúva de
uma das vítimas, o Comandante Carlos da Maia, não se satisfaz com a execução da
justiça sobre o homem que lhe levou o marido de casa pela última vez. Convencida
de que os crimes perpetrados com arrepiante minúcia na escolha das vítimas não
foram obra apenas de um bando de marinheiros embriagados, a viúva perseguirá o
“Dente de Ouro” no seu cativeiro em busca da verdade. Durante várias conversas
entre os dois, já no ano de 1926, assassino e viúva da vítima estabelecem uma
curiosa relação de remorso e persistência que é a o mesmo tempo um enorme
combate entre a vontade de descobrir a verdade e a consciência do verdugo. Ao
longo das sessões que se prolongarão entre Maio e Novembro de 1926, desgastado
pela determinação da viúva o “Dente de Ouro” vacila e acaba por fazer
importantes revelações a propósito dos acontecimentos em que tomou parte.
Embora algumas delas já fossem conhecidas, outras houve que vêm a revelar uma
elaborada conspiração preparada muito antes dos trágicos acontecimentos. A
lista das vítimas a abater não só existia como era muito mais extensa, e só não
foi cumprida porque muitos levaram a sério as ameaças de que foram alvo. A
conspiração era maioritariamente de carácter monárquico, apadrinhada por um
jornal lisboeta, por dois importantes capitalistas e por um padre que
contratava os assassinos.
Dos vários nomes referidos pelo “Dente de
Ouro” à viúva de Carlos da Maia nenhum foi importunado. A sociedade portuguesa
estava satisfeita com a sua prestação de justiça e não admitia que factos novos
tivessem a relevância suficiente para reabrir os inquéritos. A cronologia
histórica também não é favorável. As conversas entre a viúva e o assassino do
seu marido começam no mês em que ocorre a revolução que pôs termo à República e
dará origem ao estabelecimento de um regime autoritário de ditadura que irá
durar até aos anos 70.
Nas suas memórias Berta Maia escreveu:
“Não, o Abel Olímpio foi apenas um
instrumento! Ele não foi o criminoso. Infinitamente piores do que ele foram
esses que o aliciaram, que lhe deram dinheiro, que o incitaram à matança e que
o abandonaram num cárcere.
Falo para Deus e para o meu filho que um dia
saberá compreender quanto fiz para esclarecer a razão da morte do meu
sacrificado marido, mas estou certa que muitos corações imaculados de ódio –
que ainda os há, felizmente na nossa terra – saberão sentir a razão de ser
suprema destas páginas que, mais do que um protesto, são um desabafo.”
Talvez por razões de pudor histórico a
“Noite Sangrenta” tem sido sistematicamente evitada ou superficialmente
abordada nos compêndios de História. No entanto o seu estudo revela-se de uma
importância acutilante se quisermos perceber o fim do regime republicano
democrático e a instauração do regime totalitário que se lhe seguiu.
Conspiração monárquica vingativa integrada
por um jornal lisboeta dirigido por um padre suspeito, aristocratas e
capitalistas, ajuste de contas antigas entre elementos republicanos resultante
de combates entre linhas adversárias da própria Maçonaria, a “Noite Sangrenta”
foi antes de mais o último golpe mortal que lançou o descrédito total sobre um
regime que se aproximava a passos largos do seu fim.
Ao pretender representar este trágico
episódio da história portuguesa do princípio do século XX, presta-se justa
homenagem àqueles que foram prematuramente varridos pelos ventos da História,
bem como à coragem de uma mulher que contra tudo lutou para saber quem foram os
mandantes da sua desgraça.
segunda-feira, 18 de outubro de 2021
A MORTE É A CURVA DA ESTRADA
A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
sábado, 16 de outubro de 2021
A DANÇA DO CAOS
Enquanto o caos vai tomando conta da decoração dos dias vou
tentando aproveitar o tempo, ter espaço para respirar e viajar para dentro de
mim. A situação já não é nova (nunca foi) só que desta vez tenho a
possibilidade do isolamento como um nadador veterano que já não sente tão forte
a necessidade de mergulhar todos os dias no mar. Enquanto nada muda para melhor
e tudo regressa em vagas sucessivas de falta de lógica e de destruição vou-me
aproximando rapidamente do fim de um ciclo, o meu ciclo. E, sinceramente não tenho
medo nenhum nem vontade de voltar atrás. Haveria ainda muito para viver ou
aprender vivendo? Com certeza que sim, mas a viagem está sempre em movimento e
as lições não se apresentam todas da mesma forma nem sequer ao mesmo tempo. A
razão transformou-se num concurso de feira em que vende mais o comerciante que
berrar mais alto. O Conhecimento foi transformado em apenas mais uma bugiganga
que se questiona ou vende como qualquer mercadoria anónima. As referências dissolveram-se, a mediocridade
continua a sua marcha triunfal. Somos seres imperfeitos e muito confortáveis
com a nossa imperfeição. Toda a nossa energia está concentrada nas mais
primárias necessidades e na obsessiva e imediata satisfação do ego. Basicamente
faço parte de uma espécie animal que destrói muito para lá daquilo que
necessita, seja para se alimentar seja para o seu habitat. Uma pertença que não
me dá qualquer motivo de orgulho e que me cansa cada vez mais. Dias houve em que conseguia lidar bem com
isso. Dias houve em que condescendia sempre na esperança de dias diferentes, na
escolha de alternativas. Dias houve em que me remetia ao silêncio ou à
concordância por omissão. Hoje acabou-se essa tolerância. Não quero ver nem
falar com ninguém para lá do estritamente necessário. Tenho livros que cheguem
para passar o tempo, tenho música, tenho filmes. Quando me apagar tudo isto
ficará por aqui na mesma que sempre foi. Pessoas, planeta, animais, plantas,
caos, destruição, reconstrução, esperança, degradação e caos outra vez.
Todos querem saber de si e ninguém quer saber de nada. A
banalidade do mal, a irracionalidade da condição humana que só se consegue
corrigir (ainda que de forma temporária) à força de morte e destruição. Este
movimento permanente de extermínio da espécie sobre si própria que nunca
enfraquece, este asilo de loucos orientados por lógicas absurdas, esta demolição
permanente de se poder viver com qualidade e equilíbrio.
Um índio perdido na noite executa a dança da chuva em frente
a uma fogueira, uma velha de costas curvadas carrega através da neve um molho
de lenha para se poder aquecer, uma criança desenha a figura da mãe a giz no
chão num orfanato para poder dormir ao pé dela. E a corrida de nós todos
contínua, sem parar a caminho de lado nenhum, sem tempo para reflectir, sem
olhos para ver, sem mãos a medir. O caminho desenfreado do ciclo de cada um a
caminho do fim e a ausência de razão num inferno permanente.
Um índio perdido na noite executa a dança da chuva, um homem
isolado escreve desenfreado as insónias que o assombram e depois é Natal, e
depois mete-se o Verão. E vai e volta, vai e volta até ser fim.
Artur