quarta-feira, 28 de julho de 2021

DORMÊNCIAS E FINS DE TARDE

 



Há uma dormência estranha que se instala pela casa dentro, entra pelas frestas das janelas e por baixo da porta como uma neblina persistente. Vai arrefecendo vontades, anulando energias, desligando esperanças. Pouco a pouco aumenta a indecisão das formas e os móveis vão-se dissipando numa mancha quase uniforme de fumo e humidade tornando tudo cada vez mais indiferente. As sombras dançam sem se deterem no mesmo lugar. A dança da chuva, a dança dos solstícios, da vida e da morte. E nada parece querer sair do vazio onde nunca esteve, onde nunca existiu. O abismo de nada ser, nada querer, a vontade de mergulhar um poço sem fundo e a mistura definitiva com o universo. Sem penas nem mágoas, apenas a vontade de voltar a qualquer coisa, um lugar onde as pressas andam devagar e as obrigações são facultativas. A  tarde vai caindo lentamente, em breve será noite, em breve será o nada feito de estrelas e ruídos escondidos, indecifráveis.  Já se faz tarde para fazer balanços, juízos de valor, escolher épocas melhores ou piores. A casa enche-se dessa neblina que, sem nada definir nos devolve esta sensação de absoluto. Como se tudo o que foi fosse exactamente aquilo que deveria ter sido. E um barco velho de madeira no recanto habitual, escondido pelas canas e pelo nevoeiro diz-nos :Olá. Como um velho amigo de muitos anos, companheiro de esforço e derivas na corrente. Entremos então, ajeitemos os remos na sua posição de navegar e com um empurrão seco instalemo-nos no rio sem pressa sob a luz do luar. A todos os que amei deixo o meu amor convosco, a minha lembrança tímida das alegrias e tristezas partilhadas. A todos os buracos onde caí o meu mais sincero agradecimento pelo que aprendi com eles. Não há aqui nenhum drama nem nenhuma tristeza, apenas um cansaço extremo de quem por vezes consegue sintonizar a sua existência com a do universo. E nesses momentos que somos muito mais que simples linhas de tempo, muito mais que microscópicos seres que respiram e amam e odeiam e lutam para se continuar a sentir vivos, somos coisa nenhuma com decorações de eternidade. Tudo acaba e desaparece e não há drama nenhum nisso. Nem as imagens, nem a música, nem os livros, nem os quadros, nada fica cá nem sequer as memórias. E depois? A maior parte das nossas tristezas e sofrimentos vem precisamente de contrariarmos essa lei única e absoluta. Daqui a cem anos não estará cá nada de nós, nem sequer as memórias. O que talvez possa ficar a pairar por aí é uma espécie de brisa onde se escondem ideias ou sentimentos que, eventualmente, poderão aterrar na cabeça de alguém e voltar a existir. Por isso quando a bruma insistente nos começa a invadir a casa ao fim da tarde é tempo de partir e encontrar o barco velho de madeira que nos levará pelo rio fora, para um lado ou para o outro ao sabor da corrente. Ou aceitar quando o barco nos vem buscar escondidos num recanto da vida e nos estende amavelmente os remos

 

  Temos que ir andando

 

E vamos, devagarinho porque não há pressa nenhuma, rio acima até à nascente, ou rio abaixo a caminho do mar.

 

Artur

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