domingo, 4 de julho de 2021

EU E AS BIOGRAFIAS

 

Tive sempre com as biografias uma relação difícil ao longo da vida. Primeiro porque reflectem obrigatoriamente um ponto de vista deixando de fora parcelas importantes da realidade retratada (ou por informação incompleta, ou por serem supervisionadas pelos próprios ainda em vida, ou por simples incompetência dos biógrafos), e em segundo lugar porque destapam buracos mais negros que , não interessando a ninguém, acabam por minimizar ou destruír imagens construídas de referência existencial que muitos deixarão de seguir. Um dia pegamos num título de um autor, ficamos amigos dele, e em pouco tempo já lemos uma obra inteira com a satisfação de o ter como exemplo a seguir. Mas o que acontece na maioria das vezes é que entre as obras e as vidas dos autores as coisas nunca se passam da mesma maneira. Lembro-me de um dia ter conhecido uma prima direita de um dos meus autores preferidos do séc. XX e de lhe transmitir essa mesma admiração. Uma conversa muito curta após o seu primeiro comentário :

 

- O meu primo? Esse tipo era um bêbado e um machista perverso sem respeito nenhum pelas mulheres…

 

Tendo feito recentemente uma excepção na minha aversão a biografias resolvi começar a ler uma. Apesar de já saber muita coisa ali retratada, houve outro tanto que preferia que tivesse ficado no anonimato. Um autor que era mitómano inveterado e que misturava a realidade com a ficção sem critério; outro que parecia um rebelde à prova de bala e que uma vez confrontado com a polícia política tentou safar a pele mentido acerca de um dos seus actos pelos quais havia sido detido; os movimentos estéticos e a sua permanente hegemonia de tentar ditar a lei sobre o que devia e não devia ser arte válida (uma alegoria ao desentendimento e desorganização entre as diversas facções de oposição política ao Estado Novo); os egos e as invejas, as relações de amizade e de família corrompidas ,etc, etc.

 

Dir-me-ão: Uma coisa é a obra do artista, outra coisa é o seu percurso enquanto pessoa. Não há nada de errado nessa frase desde que se estivesse a falar de vender imóveis ou sabonetes. De Literatura, não. E não porque a obra é obrigatoriamente um reflexo da vida e das circunstâncias do seu criador. Não se fabricou sozinha numa fábrica, não se construiu com fórmulas de exactidão matemática nem resultou de um qualquer expediente laboral. A obra ou a criação literária neste caso, nasce da necessidade de quem se sente muito mais do que uma identidade, um elemento isolado e que tem necessidade de registar o caminho dos outros, comunicar com eles, alcançar de alguma forma a consciência do colectivo.

 

A contrario do que disse no início desta crónica, houve um autor que sempre me recusei a ler por causa das suas opções políticas. O verdadeiro preconceito literário. Um dia finalmente li um dos seus melhores trabalhos e senti-me estúpido. O homem escrevia de forma divinal e retratava o ser humano com um realismo e uma crueza cristalina. Nessa altura pouco me importaram as suas escolhas políticas que o condenaram ao ostracismo  e comprometeram irremediavelmente a sua carreira literária. Pela sua verticalidade em não abandonar as suas crenças (que estão nos antípodas das minhas) até ao fim, mereceu o meu eterno respeito.

 

Na Literatura passa-se um pouco o que vamos lendo nas redes sociais (salvaguardadas, claro está, as devidas distâncias). Vidinhas bonitas, imaculadas, cheias de boas intenções, a maioria vende uma biografia que corresponderá não aquilo que serão na realidade mas àquilo que gostariam que as suas vidas fossem, sendo essa a que querem que o mundo leia. Em tudo isto consigo ler uma obsessão pela aceitação social associada a uma enorme dose de solidão e incompetência existencial.

 

Não consegui chegar a nenhuma conclusão definitiva com tudo isto. Não sei se voltarei a ler biografias ou se simplesmente me ficarei pela obra, isto é, o caderno existencial de intenções de cada um. Cada história que me encantar, cada enredo que me seduzir será uma voz de um amigo. Até aquele que reconheço como o meu Mestre nestas lides é um tipo insuportável cheio de si próprio que adora fazer citações e referir comportamentos de autores famosos para reforçar o seu discurso. A esse, se algum dia conseguisse falar com ele, dir-lhe-ia:

 

- Muito obrigado Mestre por tudo o que aprendi consigo, não pelo que me ensinou. Amo-o de forma incondicional mesmo sabendo que é um cagão vaidoso e um peneirento de merda…

 

 

Artur

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