terça-feira, 9 de julho de 2019

IN MEDIA RES




Editados conjuntamente pela Midas, os filmes "Alumbramiento" e "La Mort Rouge" de Victor Erice são acompanhados por "Victor Erice : Paris-Madrid Aller-Retous", de Alain Bergala, que integrou a mítica série documental "Cinéma de Notre Temps", concebida e dirigida por André S. Labarthe. 
Em "La Mort Rouge", o cineasta relata em 32 minutos a sua experiência cinematográfica, aos cinco anos de idade, quando assistiu ao filme "The Scarlet Claw / A Garra Vermelha", realizado por Roy William Neill em 1944, exibido num local mítico e majestoso (além de assombrado), o velho Cinema Kursaal em San Sebastián. A voz do cineasta, a voz do narrador, relata aquilo que fundou permanentemente a sua "relação com as imagens em movimento", retomando a pulsação dos temas a três tempos da suas obras anteriores: o medo, a infância, o cinema ("O Espírito da Colmeia", 1973, "El Sur", 1982) referindo-se à sua história pessoal e à da Espanha no pós-guerra civil. É um filme composto de fotografias e de imagens de arquivo, propondo uma inscrição precisa no passado (data, local, eventos), com um enorme poder evocativo, capaz de desvelar aquilo que pode existir naqueles buracos que a acção do tempo cruza tanto na memória pessoal como nos livros de História. Na realidade, o subtítulo, ou título alternativo, "Solilóquio" remete para um "documentário interior", com escolhas múltiplas na imagem (filmagem no presente, imagens de arquivo, reconstituição dos tempos entre 1946 e 2005) e no som (alternância por vezes ambígua entre a primeira e terceira pessoa do singular) e na montagem que insistem no seu conjunto sobre a "proximidade e o afastamento entre o adulto no presente e a criança no passado" e que resultam numa extraordinária perturbação que dá conta da inconsistência do sujeito: "Quem é aquele que se recorda ?", pergunta o cineasta. Renovando o seu compromisso com "a relação - e a oposição - que se estabelece entre história e poesia" nos seus filmes, Victor Erice junta-se a uma vasta corrente historiográfica (e cinematográfica) interessada nos mecanismos de ligação entre o passado e o presente e pelo carácter aporético de qualquer reconstituição integral que não poder ser abordada senão através de estilhaços, pequenos fragmentos de verdade. Parece-me, assim - e é isso que, provavelmente, mais me perturba no filme - que "La Mort Rouge" procura refazer em laboratório, como se se tratasse de uma experiência científica, as operações ambíguas e incertas da memória. É assim que o filme repousa sobre o princípio daquilo que poderíamos chamar de "vai-e-vem" estruturado entre 1946 e 2005 - ou seja entre o tempo da criança sobre a qual pesa a dor universal de uma sociedade devastada e o tempo do narrador, que pergunta sobre aquilo em que "estes fantasmas se transformaram". É assim que se forma um exemplo daquilo que é possível fazer com o tempo: dar-lhe forma e sentido, abri-lo à compreensão dos outros, de tal modo que o passado se encarna na continuidade do presente. No écrã, essa encarnação do tempo é ela mesma figurada por um local, teatro da primeira emoção cinematográfica de Erice. O cineasta estabelece com esse décor uma primeira camada do tempo: aquela sobre a qual foi deposta a "experiência crucial" dos seus cinco anos de idade. A experiência de projecção do Gran Kursaal não anda longe de uma ideia do cinema como lugar de expressão de um "trauma", trauma esse que não se pode definir simplesmente como um acontecimento externo, por muito violento e aterrorizante que seja, mas como uma ligação do perigo interno ao perigo externo, do presente ao passado. Para um cineasta que afirma que a história do cinema é um elemento da nossa memória que se confunde com a história do século na nossa própria biografia, o filme que restitui a sua primeira experiência cinematográfica carrega consigo o pesado fardo de reencontrar aquilo que se perdeu na Espanha de Franco : uma relação vital entre o cinema e o mundo.
Colocados ao longo de uma escala temporal muito longa da história da Espanha entre 1973 e 2001,as obras de Erice anteriores a "La Mort Rouge" parecem, de modo retrospectivo, serem relançadas num mesmo tempo - o do "pacto de esquecimento", selado em 1939 pela vitória nacionalista, de "construir sem olhar para trás", prolongado muito para além da morte do pequeníssimo, insignificante, medíocre e mesquinho ditador. Por sua vez, o filme de 2005 liga-se a uma nova sociedade preocupada em estabelecer uma narrativa comum do passado. Seja como for, é um dos mais belos, intensos e emocionantes filmes da história do cinema.

1 comentário:

Fernando Machado disse...

Belíssima e sentida análise que só uma entrega pessoal e forte interesse académico e profissional apoiados por uma escrita rica e bem estructurada tornaram possível este finíssimo artigo.

Grato por esta oportunidade de reflexão e prazer de leitura.

Cordiais Cumprimentos,

Fernando Machado