Em silêncio como naqueles instantes que antecedem a
alvorada. Em silêncio sem ouvir o que o padre diz antes dos diligentes
funcionários da funerária começarem os preparativos em torno da urna e a
carregarem para dentro da carrinha. Saímos discretamente cá para fora, tiramos
o maço dos cigarros, e em silencio damos lume uns aos outros. Levanta-se a
cabeça a cheirar a chuva, adivinham-se as artroses e as mazelas em geral, os
filmes e as cenas de cada um sem ser necessário falar. Há uma vida inteira para
trás onde se leu e aprendeu essa extensa biografia que somos nós. Antes de
entrar no cemitério mais um cigarro, revista em redor, contabilidade de figuras
e figurões presentes, cumprimentos atrasados aos familiares que ainda não
tínhamos visto e caminhada fora até à campa. Passos rendilhados sobre a
gravilha, tosses isoladas, pássaros ao longe a voar entre ciprestes. Mais umas
breves palavras do padre que ninguém ouve, caixão à cova, flores e pedaços de
terra simbólicos que o seguem em silêncio. Alguém abre a boca e entoa o grito
de guerra. Paralisados de solenidade cumprimos o ritual em berrata organizada
totalmente alheia ao resto das pessoas. Os pássaros calam-se e voam assustados para
outras paragens. Segue-se um silêncio solene, vibrante, absoluto. Últimos olhares
sobre a campa que é agora coberta pelos coveiros. Ultima despedida calada e retomamos o passo rendilhado até ao lado de
fora, até ao portão tentando adivinhar quem será o próximo, avaliando as
trombas e os corpos um dos outros. Mais um cigarro antes da partida final,
cumprimentos e abraços que tudo resumem sem ter que recorrer às palavras. Anos
de vida desde miúdos a jogar uns com os outros no recreio, no campo de futebol,
no balneário, nos jantares de confraternização, nas depressões, na morte. Um
todo indivisível feito de respeito e solidariedade onde cada um é o ser único
que sempre foi. Conhecemos tão bem a vida como conhecemos a morte. Sem
delírios, sem surpresas…sem medo. Porque nos aprendemos a organizar e a
proteger uns aos outros como a matilha muito novos. Fizeram de nós guerreiros ensinando-nos
a lutar. E nós lutámos. Iniciaram-nos na ordem antiga onde ninguém morre,
apenas muda de habitação no cosmos. E nós ocupamos as cadeiras que nos foram
destinadas e respeitámos os que partiram e ensinámos os mais novos. Porque lutar não é sempre vencer mas não lutar
é perder sempre. E nós não desistimos…de
lutar e de nos proteger. Andamos mais devagar, dizemos as mesmas coisas várias
vezes, perdemos mais tempo a aturar os médicos e a tomar comprimidos, estamos
cada vez mais surdos para ouvir o mundo e o que nele se passa. Sem dúvida. Mas
isso não quer dizer que deixámos de pensar, de acordar todos os dias, de
esquecer quem somos, quem seremos depois da morte. Por isso não são precisas
frases a circular entre nós. Chega uma expressão de cara, um olhar, um gesto
seco. Os outros vêm depois, os outros continuarão a obra. Não há fracassos nem
desilusões nem vitórias absolutas. Apenas tempos diferentes que exigem
comportamentos diferentes. Ninguém caminhará sozinho, ninguém morrerá sozinho. A solidão
nunca se apresentará como filha única porque sobre ela estaremos sempre NÓS.
Artur
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