quarta-feira, 10 de outubro de 2012

CAPITALISMO E ESQUIZOANÁLISE

O propósito inicial deste texto consistia em dizer duas ou três coisas sobre o filme "Cosmopolis", de David Cronenberg, sobre ele debitando duas ou três verdades, de preferência sábias e originais. Mantendo embora essa intenção original, aconteceu lembrar-me de um livro que, desde há muitos anos, se constituiu para mim como uma das grandes referências do pensamento do século XX; refiro-me a "O Anti-Édipo : Capitalismo e Esquizofrenia", de Gilles Deleuze e Félix Guattari, uma obra que considero o mais fecundo e complexo contributo para a reflexão ética e política na pós-modernidade. Para além da análise da relação do desejo com a realidade e com a sociedade capitalista em particular, o livro aborda uma impressionate quantidade de questões relativas à psicologia humana, economia, sociedade, história, etc. Interessa-me sobretudo um dos problemas abordados por Deleuze e Guattari e que se revela um dos problemas fundamentais da filosofia política : o fenómeno contraditório através do qual um indíviduo ou grupo vem a desejar a sua própria opressão. A fim de tratarem esta questão, os autores examinam as relações entre a organização social, o poder e o desejo, particularmente no que concerne ao complexo de Édipo freudiano e os seus mecanismos familiares de subjetivação, constituindo-se a família como produtora de indivíduos dóceis, adaptáveis e prontos a serem oprimidos socialmente. A sociedade capitalista utiliza esse poderoso mecanismo para controlar os indíviduos e grupos, assegurando o completo controlo da sociedade por parte das classes dominantes. Ou seja, Deleuze e Guattari descobriram que é num movimento único que a família repressiva é substituída pela produção social repressiva, e que esse movimento produz o fenómeno do desejo por isso mesmo que nos explora e domina. Era assim que se pensava nos anos 70. Alguma coisa mudou entretanto: recentemente, José Gil - ele próprio discípulo de Gilles Deleuze - asseverou que a crise é anti-erótica. Outras coisas (fundamentais) não mudaram. Veja-se, por exemplo, o modo como Louis Althusser re-escreve a análise de Karl Marx da história dos modos sociais de produção; da fase "primitiva" à "despótica" e desta à "capitalista", detalhando as diversas organizações de produção "inscrição" (que corresponde em Marx à "distribuição" e "troca") e consumo ("Re-lire Marx").
Na extraordinária leitura que Michel Foucault faz do "Anti-Édipo" respingam-se alguns preceitos para a vida quotidiana que nos poderão guiar nos dias de hoje : não amar o poder; libertar a acção política de todas as formas de paranóia utilitária e totalizante; não exigir da política que ela restabeleça os direitos do indivíduo tal como a Filosofia os definiu - o indíviduo é o produto do poder -; o que é necessário é "desindividualizar" pela multiplicação  e deslocamento dos diversos agenciamentos; o grupo não deve ser o laço orgânico que une os indíviduos hierarquizados, mas uma constante geradora de "desindividualização", etc.

Quanto a "Cosmopolis", que dizer senão que é o retrato justo, alucinado e abismado do capitalismo em vias de se desmoronar ? Um mundo reduzido ao estatuto de Ideia, já que o dinheiro, tendo perdido a função de indexar a realidade, se tornou o índice de si próprio. Cronenberg está aqui no seu terreno de eleição: essa Ideia só tem existência nas superfícies que a refletem (computadores, televisões, LCD que anunciam permanentemente os movimentos bolsistas); o corpo humano desposando tristemente essas superfícies, símbolo das suas núpcias funestas com a Máquina e com a Tecnologia cega e auto-destrutiva; a Velocidade que submerge os seres e as coisas na sua destruição, já que o "hoje" é literalmente devorado pelo futuro; anulação da interioridade e da humanidade pela voragem da velocidade suicidária; violenta precipitação do desastre psíquico, suicídio e alucinação permanente. O protagonista, um capitalista hiper-lúcido, deseja furiosamente e, no delírio hermenêutico que é o corolário da fúria especulativa da Ideia, antecipa a sua morte, deseja-a secretamente, procura-a : será ela que o libertará do totalitarismo do conceito. Ele é o derradeiro símbolo da psicose esquizofrénica e suicidária do capitalismo.

Entre "O Anti-Édipo : Capitalismo e Esquizofrenia" de Gilles Deleuze e Félix Guattari e "Cosmopolis" de David Cronenberg existe uma relação que poderá não parecer evidente, mas que se revela muito forte: ambos são formas artísticas (sim, também a Filosofia é uma arte, no sentido em que se fala, por exemplo, de uma "arte erótica" e quem tiver dúvidas leia ou releia "O Banquete" de Platão), apoiadas em noções aparentemente abastractas de multiplicidades, fluxos e dispositivos que servem para analisar a relação do desejo com a realidade e com a "máquina capitalista". Nesse mesmo sentido, Foucault (outra vez...) estabeleceu um paralelo entre a "ars erotica", a "ars theoretica" e a "ars politica" que sublinha e sintetiza as analogias que, em vão, aqui tentei estabelecer.

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