Hoje é dia de manifestação contra o governo, noite de
Halloween ( se não tiver doces em casa os putos pintam-me a porta), o acordo
ortográfico continua em vigor, o orçamento que finalmente nos vai enterrar a
todos vai ser aprovado, um zombie continua morto no palácio de Belém, o meu
clube anda pelo fim da tabela, em suma, os demónios andam à solta, as bruxas
dominam a rua, o inferno desceu à terra mais uma vez. É o caos total, o
princípio do fim, o fim de um regime, o fim da democracia como a conhecemos e,
se não nos revoltarmos rapidamente, o fim da nossa existência. Mergulhados numa
tina de inferno e de absurdo. Mais negro que isto só uma invasão normanda sobre
uma aldeia celta no noroeste da França. Ao amanhecer esperam ansiosos à entrada
da floresta, ouvindo através do nevoeiro, os urros dos selvagens muito
superiores em numero e em ferocidade. Trememos não percebendo se é do frio se é
do medo. Conseguimos mandar as mulheres e as crianças para lugar seguro ainda a
tempo. Hoje, festa do Samhain, os mortos regressam para ajudar os seus
descendentes a sair da terra. As cerimónias estão feitas, os rituais cumpridos.
Resta-nos aguentar o nosso destino. De repente as guerras liberais em 1820, as
convulsões sociais europeias cem anos depois. Correria, bombas, mortos,
confrontos, o diabo à solta pelas ruas e não há nada que possa ser feito,
nenhuma frase, nenhum livro, nenhum poema que acalme esta ofensiva vinda do
norte que nos pretende esmagar, saquear, queimar as nossas casas, violar as
nossas mulheres. O inferno à solta como uma máquina de lavar connosco lá
dentro, uma máquina de lavar como uma onda há muitos anos na Praia Grande, um
dia cinzento sem Sol e a superfície que nunca mais chegava. Aproveita para
encomendar a alma ao Criador, para celebrar os teus rituais, está quase a
chegar a tua vez. A centrifugação dos ventos da História na minha cabeça, a
centrifugação que nunca mais acaba, a entrada do bosque, os urros mecânicos da
máquina que vão chegando através da neblina. E de vez em quando um livro, um
filme, a tua mão que me resgata lá de dentro, breves balões de oxigénio, forças
que me conseguem segurar o medo. Almas que fogem ao longo dos tempos, sempre a
correr, a resistir, companheiros de uma corrida sem fim mergulhados numa onda
na Praia Grande, a tentar cheirar através do nevoeiro o momento em que
finalmente o inimigo terá um rosto. Cátaros incendiados em frente a Notre Dame,
a maldição de Jacques de Molay, índios massacrados pelos conquistadores do novo
mundo, corrompidos com bugigangas e garrafas de álcool, libertários da
Catalunha perseguidos e assassinados por fascistas, estalinistas, todos os
inimigos da liberdade, judeus a resistir no gueto de Varsóvia, Primo Levy que
responde a um rabi: “Senão agora, então quando?” Lágrimas e sofrimento dentro
deste infinito absurdo que ninguém percebe “para quê” nem “porquê”. E no
horizonte uma frase, umas palavras, um livro, uma imagem, a tua mão que aparece
de repente e me resgata de dentro da água, a tua mão que me concede momentos de
breve eternidade. A correria imensa e eterna como um comboio desgovernado pela
noite fora a rasgar o escuro com o grito da sua sirene, uma canção de rock’n
roll a embalar-nos a consciência, a estabelecer contacto, a trazer-nos outra
vez os mortos que nos recebem com um sorriso antes de morrermos. Um concerto
com as guitarras eléctricas hipnotizadas, a bateria a alimentar-nos o coração,
a nossa oração, a nossa religião, o universo a entrar pela porta da frente, a
celebração do absoluto da existência. Foi bom irmãos, foi bom ter-vos
conhecido, quem chegar lá primeiro manda vir as cervejas. Em batida de rock’n
roll, anjos celtas agarrados a guitarras eléctricas hipnotizadas. Rostos
familiares, rostos reencontrados que nos garantem “aqui não há máquinas de
lavar”. Viagem entre o inferno e o absurdo a pretexto de não se sabe “para quê”
nem “porquê”, sofrimentos em mares de lágrimas, ondas que não terminam, a
resistência até ao fim porque sim, porque não nascemos para ser pisados,
humilhados, massacrados por anões que se julgam donos desta merda. Não nascemos
para ser escravos de uma ordem tirana, nem agora nem nunca em tempo nenhum por
mais reencarnações que possamos ter, para que outros aprendam essa consciência.
Às vezes a sabedoria de um livro, o preenchimento de um filme, a tua mão, um
ritual em concertos, as nossas mãos no ar, as palavras a dançar, as imagens
alinhadas em harmonias perfeitas. O inferno é a ausência de razão, o absurdo, a
ausência de sentido. E nenhuma delas me esmagará sem luta, nenhuma delas tomará
conta da minha aldeia sem que eu lhe pegue fogo primeiro, nenhuma delas se
conseguirá rir quando finalmente se conseguir sentar em cima da minha cabeça.
Nenhuma delas me deitará abaixo definitivamente porque voltarei em noite de
Samhain e infernizarei os seus sonhos. A luta nunca termina, muda várias de
vezes de comboio na mesma direcção.
Artur