sábado, 23 de maio de 2009

FUMO E PACHECO PEREIRA


Em 1995 Wayne Wang realizou SMOKE, com o argumento baseado na primeira história de Paul Auster, premiado no New York Times, que lhe abriu as portas para uma carreira de sucesso. Fazendo um filme de amigos e para amigos, a história arrastou-se tanto que acabaram por fazer segundo filme no mesmo ano (BLUE IN THE FACE) com o que tinha sobrado do primeiro. Numa tabacaria de Brooklyn o tempo vai passando ao sabor das visitas e das conversas dos que por ali aparecem numa base regular. A amizade com Auggie (Harvey Keitel), o gerente da loja, acaba por se tornar inevitável. Para marcar o tempo, Auggie tem um passatempo que consiste em fazer uma fotografia todas as manhã antes de abrir a loja. No mesmo ângulo, sobre o mesmo enquadramento, invariavelmente todos os dias. Auggie colecciona vários álbuns dessa sua tarefa diária. Um dia mostra-os a um amigo que o interroga acerca da utilidade desse passatempo tão esquisito. Afinal, qual é a piada de fazer todos os dias a mesma fotografia. É então que Auggie lhe faz abrir a capacidade de observação. Não havia duas fotografias iguais. Mais ou menos escuro significava a diferença entre dias de Sol ou dias de nuvens. As roupas dos transeuntes diziam se era um dia frio de Inverno ou de Verão. O envelhecimento também podia ser visto se calhasse repetir duas vezes a mesma pessoa em imagens separadas no tempo. Ou seja, o registo fotográfico e solitário de Auggie desenhava a realidade, uma parte dela, sempre na mesma posição. O que parecia que nunca se mexia, afinal tinha vida própria, evolução.
Vem tudo isto a propósito de Pacheco Pereira. Sendo assíduo frequentador do seu blog (ABRUPTO), não consegui deixar de reparar, para além das toneladas de informação útil, que PP se dedica, embora não numa base diária, a fotografar um recanto do jardim de S. Amaro em Lisboa, o mesmo espaço, vezes sem fim. Abaixo da imagem coloca uma legenda: “A passagem do tempo num banco do jardim de S. Amaro”. Umas vezes há lá pessoas sentadas outras o banco está vazio. Uns dias há mais Sol outros a imagem é mais escura. Ora este hábito idêntico ao gerente de uma tabacaria de Brooklyn é sintomático. Se por um lado se revela numa manifestação típica de solidão, por outro é demonstrativa de amor pelo espaço vivido (provavelmente o jardim fica próximo da sua casa).
Politicamente estou nos antípodas de PP o que me deixa completamente à vontade para elogiar a sua obra enquanto pensador e historiador. As suas fotografias do espaço vazio funcionam enquanto pequenas metáforas de um homem isolado entre os seus pares. Já tive ocasião de ler alguns trabalhos seus de interesse histórico que constituem elementos imprescindíveis para compreender a realidade do século passado. Afastado das correntes da moda, nos jornais e nas faculdades, PP resiste. Um dos seus mais conhecidos trabalhos, a biografia de Álvaro Cunhal, é um exemplo paradigmático. Ao se propor relatar a biografia de um homem, PP evita entrar na sua intimidade mais recôndita (e cientificamente menos interessante) para relatar a história do Partido Comunista Português (que de certa forma se confunde com a própria existência de Cunhal). Com rigor científico, o investigador consegue ilustrar de uma forma elegante o percurso de uma personalidade marcante da vida política do séc. XX sem se deixar influenciar pelo mito, pela propaganda ou pela admiração.
Outro trabalho importante de PP consistiu numa crónica publicada no Público aquando dos funerais da irmã Lúcia e de Álvaro Cunhal. Para mim foi como se tivesse sido feito um TAC ao Inconsciente Colectivo” do povo português. Como eu o invejei naquele dia...
PP é intelectualmente honesto e politicamente faccioso. E depois?? O seu grande azar é ter nascido inteligente num país que se orgulha de ser ignorante, revelar sinais aristocráticos de conduta séria num partido de saloios, ter a obsessão do rigor científico num quotidiano onde são as meias frases e as meias verdades a sentenciar as coisas. Mas também não se pode queixar. Tem um espaço semanal em televisão, outro em revista e ainda outro no “Público”. Alguém há-de ouvir as suas ideias, de uma forma ou de outra. A sua solidão intelectual e política é que não o abandona. Nem isso, nem a sua devoção pelo espaço onde vive, o país onde nasceu. Daí as suas fotografias a um banco de jardim, tiradas quase diariamente.

ARTUR

3 comentários:

A.Teixeira disse...

Bom texto, Artur, embora tenha que pedir ao Matos Guita ou então ao professor Marcelo para te dar a respectiva nota.

Subscrevo a tua conclusão que José Pacheco Pereira é, no global, "intelectualmente honesto e politicamente faccioso", embora já me tenha deparado com um punhado de situações em que a honestidade intelectual leva com o "cartão azul" e sai de campo por alguns minutos...

Artur Guilherme Carvalho disse...

Escrevi esta crónica porque admiro tipos intelectualmente honestos e que na maior parte das vezes falam sozinhos. quanto à nota ( ao contrário do Dario que me perguntava se eu era do volley antes de fazer as minhas provas de fim de período, e am caso afirmativo, me dava sempre mais uma hipótese de saltar em altura), com o Matos Guita nunca ia além do 13, mesmo com o cartão passado de elemento do Dep. de Arqueologia. quanto ao Prof. Marcelo não sei. Acabei Constitucional com 14 com o Prof. Jorge Miranda. 1 abraço

redjan disse...

Artur...li o post e confirmei:

ouvir-te é um gosto .. ler-te é APRENDER!!!!!!!!!