Passado até à exaustão nos diversos canais televisivos, comentado extensivamente nos restantes meios de comunicação social , o filme "Dá-me o Telemóbel Já !" causou tsunamis de indignação e as mais diversas interpretações, procurando escalpelizar o episódio e atribuir culpas e responsabilidades, extrapolando para o nosso estado cultural e civilizacional e fazendo previsões em relação à incerteza de um futuro assente na educação e formação dos nossos jovens. Pela minha parte, não vejo o mínimo motivo de indignação e considero que todas as interpretações falham o essencial da questão. De facto, creio que esta obra cinematográfica constitui uma das mais notáveis realizações da cultura portuguesa contemporânea e um feito só alcançável por uma geração de iluminados. Considero que "Dá-me o Telemóbel Já !" é a recriação actualizada de "Antigona" de Sófocles, a sublime tragédia grega que se perfila como um dos marcos cimeiros da civilização e cultura ocidentais, sendo que Patrícia, a jovem protagonista, encarna a personagem titular; a professora interpreta Creonte; o telemóvel Polinice, e os restantes alunos, o coro. A encenação ficou a cargo da criancinha que realizou o filme, tendo-se o seu fulgurante nome perdido para a posteridade. Os paralelos entre a tragédia grega e a portuguesa são inúmeros, a começar pelo próprio tema: Antígona quer sepultar o corpo de seu irmão Polinice, acto que seu tio Creonte, tirano de Tebas, não pode permitir. Antigona considera que o dever sagrado de enterrar os mortos se sobrepõe aos ditames do tirano e que a sua consciência deve ser a única guia do seu comportamento, enfrentando a morte inevitável em nome do sagrado dever. No caso de "Dá-me o Telemóbel Já !", a actualização da tragédia faz-se com sotaque do Porto, Patrícia/Antigona e a Professora/Creonte dançando um bailado macabro ou "ballet" grotesco em torno da posse do sagrado objecto telemóbel demonstrando Patrícia um inegável talento de actriz: basta atentar no "pathos", na agonia e nos gritos lancinantes e horripilantes com que reclama a transcendente ordem ética que guia o seu comportamento. O "já !" final comunica a urgência e a inexorabilidade da exigência com um clamor que cala fundo na alma do espectador. Creonte também vai muito bem, procurando implementar a sua autoridade e determinações através de uma máscara de fraqueza e impotência. Na realidade, e a pergunta pode colocar-se em relação à tragédia grega e também à portuguesa, quem tem mais poder ? Aquele que não teme a morte nem as consequências em nome de um dever e de uma consciência moral que não pertence ao mundo humano, mas ao divino, ou aquele que procura impôr leis e ditames, apoiando-se numa autoridade que só ao humano pertence ? Quanto ao Coro, seria injusto não destacar a sua meritória actuação, começando pela sublime frase, de finíssimo recorte literário : "ó gorda, ó peixona, sai da frente !", seguindo-se outros comentários excelentes do ponto de vista dramatúrgico, bem exemplificados em frases como: "Altamente !" e "Olha, a belha bai cair". Mas, não é tudo no que concerne a cruzamentos e intertextualidade em "Dá-me o telemóbel já !". Os espíritos mais esclarecidos encontrarão uma clara referência a "Huis Clos" de Jean-Paul Sartre, uma das obras maiores da dramaturgia do século XX. Nessa peça, Sartre imaginava o Inferno como um espaço fechado, sem móveis nem objectos, nas quais diversas personagens sem nada para fazer, nada em que se ocupar , são obrigadas a conviver entre si por um período de tempo indeterminado (a eternidade, supomos nós) . Ao tédio segue-se a intolerância, a hostilidade e o ódio, dando origem à suprema definição de Inferno: "L'Enfer sont les autres". Por tudo o que fica exposto, resta concluir que podemos dormir descansados: o Futuro (que é sempre tempo demais) está entregue a uma genial geração de artistas, actores, cineastas, tragediógrafos et alia, que se manifestam através de obras como este paroxístico "Dá-me o Telemóbel Já ". Bem-hajam.
7 comentários:
Como diria o grande João Pinto, defino o teu texto com uma só palavra: continuas em grande !
Grande pinta este texto!!! Gostei mesmo.
Interessante comparação sobre aquele que tem sido o acontecimento mais importante deste país nas ultimas semanas. A minha análise é menos histórica e mais actual... Repare-se que o “encenador”, aquele que dirige soberbamente o “coro”, alinha a cobertura numa estratégia inteligente capaz de fazer inveja a muito repórter da nossa comunicação social. Profere palavras que enganam os menos atentos orientando-os para uma “bimbalhada nortenha”. Na realidade, este realizador é uma criatura inteligente que conseguiu o feito de criar uma obra impar demonstrativa da cultura deste país ao mesmo tempo que a divulgava massivamente. O facto de não ter optado pelo HD, conferiu um grau de realismo e de interligação à “geração SMS”, indispensável ao seu sucesso perante estes. Agradeço sinceramente a este anónimo lenhador e defensor da cultura local e nacional, esperando que possamos ver outras obras da sua autoria, quem sabe se teremos a sorte de aproveitar o seu génio para conseguir fazer chegar à história e a cultura à geração que representa. Por exemplo, uma longa-metragem rodada nos Montes Hermínios sobre Viriato, utilizando apenas “telemóbeis”. Parabéns…
sabes bem meu puto!
A ideia de estabelecer um paralelo entre a grandeza da tragédia grega e a mesquinhez e mediocridade da tragédia portuguesa só podia sair da cabeça de um iluminado. Embora não concorde com esta forma de abordar um assunto desta magnitude, acho o texto perfeito, sendo a forma irónica levada até às últimas consequências. Parabéns !
É o que é não existe.
F.............-se Artur.... golo do meio campo este texto ... vai lá vai !!!! Quase que digo ... quase ... bendito telemóvel e meninos bestas de bestas adultas que os deseducam !!
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