sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Emblema para um Romance

O nevoeiro levanta-se sorrateiro e discreto, como fumo imperceptível das profundezas da terra, para em pouco tempo encher ruas e esquinas da cidade, desenhando todo um novo quadro espacial da paisagem urbana.
A realidade já não é real, as formas deitam-se a ser adivinhadas, as distâncias calculam-se por aproximação. Um manto de água evaporada abraça prédios e automóveis e envolve as pessoas que transforma em sombras, espalhando um desconforto húmido pela cidade. O tempo fica suspenso na incerteza dessa nova ordem. Apressa-se o andamento a caminho de casa onde um recanto confortável e acolhedor possa aliviar o mau estar dos ossos. Nas ruas, só o som dos passos dá sinal de vidas em movimento. Sons cadenciados, apressados, que se afastam ou aproximam a caminho de algum lugar.
Como fantasmas, invisíveis, caminham, correm sem se saber de quê ou para onde. Sombras que atravessam o manto frio e húmido ao arrepio do andar, tendo como referência de navegação os candeeiros, lampiões suspensos em halos solitários e difusos de brilho, marcando uma distância sempre finita de percorrer...e sempre infinita para alcançar a luz.
Sombras no nevoeiro, poeira no vento dos tempos, grãos de um areal imenso que nunca conseguiram perceber por inteiro. Sombras à sombra de uma condição de mentiras, roubos, injustiças, crimes, amor e ódio. Meio empurradas, meio inconscientes, meio senhoras da sua vontade, filhos da ignorância e do medo, acendem aqui e ali tímidas velas brancas de paz, círios de lembranças celestes, esperanças de amor dentro do caos.
Sombras que atravessam o nevoeiro, atravessando o seu caminho pela cidade, de uma rua á outra, do nascimento até morrer. Como podem, como sabem, como aprendem...tentam atravessar.
Sombras meio animais, meio humanas, filhas de um Deus estranho e ausente, cruel e galhofeiro.
O nevoeiro abraça a cidade num beijo húmido, como que varrendo as suas artérias entre um tempo que parte e um outro que se instala. E nesse meio espaço as pessoas, as plantas e os animais, entre o medo e o amor, abrandam os seus ritmos e contemplam esse tempo suspenso mastigando memórias de vida, ensaiando presságios de morte.
De manhã o Sol volta a nascer, o rio cresce de dentro da bruma para correr para o mar e a vida volta a saír de casa para ser vista, trabalhada, reflectida, melhorada, sobrevivida. Para trás ficará a noite anterior como evento cada vez mais distante, cada vez mais esquecido. Na próxima noite de nevoeiro voltará a suspender o tempo e a redesenhar o espaço, relembrando na vida que pára, as danças esquecidas do baile da eternidade...
ARTUR

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