terça-feira, 3 de dezembro de 2024

DEZEMBRO FELIZ


 

Neste dia primeiro do décimo segundo mês de dois mil e vinte e quatro escrevo já tarde. Está um frio bom lá fora e tenho as estrelas limpídas a brilhar sobre a cabeça. Este ano, cada dia dele, foi de muita gratidão e aprendizagem, talvez por ter sido um ano de muita dor, muita terapia, muito amor, silêncio encoberto por gargalhadas sonoras. Nenhuma das minhas melhores amigas, nem um dos meus melhores amigos,está aqui,nem o meu filho, nem as minhas filhas, nem a minha neta. Sou filha única e órfã de pai e mãe há demasiados anos para sequer contar com um abraço que conforte qualquer queda. A segurança do vosso amor é que me desenha cada passada e me ampara todas as quedas. A lembrança dos vossos abraços é como o calor destas estrelas que sobre mim brilham tão límpidas no céu de veludo escuro.
Brindo aos amores passados com um chá a ferver entre as mãos e novamente agradeço, mesmo aos que me magoaram, porque aos que eu magoei já lhes pedi perdão. Ganhei músculo contra déspotas com pelugem fofinha e instagramável.
Sou tão voluntariosa como apaixonada e isso leva-me a cuidados redobrados com esta menina que dança debaixo da pele de senhora de meia idade. Trago comigo os ensinamentos de casa,da escola, da praia e das tempestades,dos voos, duma vida cheia de tudo e dos livros,filmes e músicas que vou devorando ao longo dos anos que são bastante inferiores ao número de hemáceas que compõem a minha corrente sanguínea mas não renováveis a cada cento e vinte dias.
Aprendi, finalmente, a não me deixar para trás, nunca. No fim do dia, antes de me deitar, depois duma caminhada noturna com os animais que fazem parte deste lugar, recolho-me da vida como é e embrenho-me naquilo que também me compete. As linhas diárias de escrita, os lençóis aquecidos pelo ferro de engomar, as portadas das janelas fechadas, a máquina de roupa pronta a rodar, a cama do lobo esticada ao lado da minha, as plantas regadas, a louça a pensar se vai ser lavada, as panelas ainda quentes dos sabores partilhados. Sou pessoa de muitas pessoas, sou uma solitária que adora gente por cada característica que as compõe.
Amanheci ainda antes do céu abrir neste dia terceiro do último mês. Há nuvens com pinceladas de cor de laranja sobre as árvores na quadrícula esquerda da janela da cozinha. Está frio e o café acorda-me docemente enquanto a visão de mais um dia bom alegra-me o acordar. A cada dia novos amigos aparecem e antigos amigos reaparecem. Preparo as botas e a camisola mais quente. As tarefas aqui são como o trânsito na segunda circular, lentas. De resto em nada se comparam.
Dezembro feliz!

Elsa Bettencourt

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

NO CAOS DA CALMA...A ENTRADA

 Décimo oitavo dia do nono mês de dois mil e vinte e quatro.

É a ideia de mim a amar-te que ainda amo. Podias ter morrido ontem que me seria igual. Começaste a morrer no primeiro minuto em que me espancaste com as palavras de moribundo intoxicado pela poeiras castanhas do teu deserto emocional.
É a ideia de mim a amar que amo. Podias morrer num dia qualquer que eu já tinha enterrado a ideia de ti, daquilo que pensei que eras e daquilo que tu me fizeste pensar que era. Somente uma forma de chegares aos teus propósitos como num escadote, num caixote e eu Quixote, eternamente Quixote, a debelar moinhos de vento, sendo Dulcineia, Rocinante e Sancho, a iluminar-me nas noites pardas com a estrela menor como archote. É a ideia de amar acima de todas as coisas, a mim, a ti, ou a quem for, que alimenta a vida que quero simples,escorreita e límpida, sem rancores nem amargores pela constatação da existência de verdadeiros estupores como tu e os que te assemelham, sem chispa nem centelha, sugadores de esperança e bem aventurança, disseminadores de todos os vícios e dores.
É a ideia do amor que eu amo, é ele que me cura, acorda e adormece, me faz sonhar, questionar, acreditar e continuar.
É ele que eu vejo em todas as coisas que me rodeiam, na grandeza das almas que me cercam, no olhar de cada filha, do meu filho, da minha neta, duma amiga, dum amigo, do meu fiel escudeiro peludo de olhos de veludo, da égua que me abraça a cada chegada, das gatas que me seguem como a uma semelhante.
É a ideia de ser assim que me faz cultivar cada lugar de mim, reinventar cada queda e ser a minha própria escada, transformar em tudo o que antes era nada, ser no caos da calma a entrada.
Elsa Bettencourt

terça-feira, 9 de julho de 2024

PORQUE É VERÃO


 No nono dia do sétimo mês de dois mil e vinte e quatro entra o vento pelo balcão adentro e a folhagem das árvores dança em frente. A Dora trota feliz entre o jardim e o pomar, parando só para pôr o focinho no ar que traz o cheiro equino da vizinhança mais ao lado. Serão póneis, serão cavalos ? São amigos certamente, que relincham à presença dela, à visão dos flancos e das curvas delineados pelo sol nascente.

É verão e a natureza das coisas simples a despertar os sentidos da estação mais quente.
Os gatos dormitam pela casa e quase se incomodam com a passagem abrupta de vassouras e aspiradores. Resmungam e passam para o lado de fora a tremer os maxilares para a próxima presa enquanto eu caço do lado de dentro as palavras e as poeiras, as teias esquecidas e a contas perdidas, bilhetes e cartas de amor escritas antes de eu nascer.
Tudo isto vai da grande realidade onde sou até às pequenas onde vou. O meu núcleo vai-se abrindo a cada dia às funções repetidas e às por fazer, como a ondulação gerada pela pedra que atiramos ao lago. Há um efeito para cada pequeno feito e é assim que vou andando, já que perguntam e dizem que têm saudades, hoje melhor do que ontem e menos bem do que amanhã.
Tocou o despertador e esta tarefa terminou. Os gatos voltaram aos seus lugares, a Dora aguarda a taça de cereais e o Lucky dorme profundamente atrás de mim. Os pássaros aumentaram a sinfonia anunciando um dia melhor.

Elsa Bettencourt

sábado, 1 de junho de 2024

NÃO PISEM A RELVA

 Tudo o que escrevi aqui, há não sei quantos anos, não passou de vozearia, palavras ocas, ruído, tanto ruído incomodativo e inútil, cheio de pompa, presunção e ilusão. Não soube preservar o silêncio, guardar o recato, conservar o bem mais precioso de todos, abster-me de fazer juízos, de emitir opiniões, de construir estruturas de ideias falsas, proclamações que a ninguém interessam, nem sequer a mim mesmo. Por isso, adeus, passem bem, sejam felizes, mantenham-se quentes e em segurança. Eu vou andando. Ou não.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

PAUL AUSTER


 



                                                                           1947 - 2024

segunda-feira, 15 de abril de 2024

NÃO VÁS PARA AÍ


 


No princípio tudo é fascínio e aventura, tudo é um universo para desbravar, um espaço à espera de conquista. Não há dores nem receios, hesita-se pouco. Descemos vagarosamente os degraus de pedra e entramos suavemente na maré. Depois vamos ganhando mais confiança e arriscamos um mergulho. Primeiro nos degraus mais baixos e pouco a pouco subindo até lá acima. Contemplando o horizonte introduzimos a vertigem do salto. Em poucas tentativas já somos amigos do mar e passamos horas a brincar com ele, nadando nas suas águas, mergulhando, percorrendo os caminhos de um mundo diferente do nosso. Às vezes uma voz fraca faz-se ouvir ao longe.

 

          Não vás para aí

 

E nós vamos e continuamos a ir sem ligar nenhuma a avisos longínquos. Ficamos na água até bater o queixo e voltamos para casa ao fim do dia. Nesse tempo não há preocupações nem vertigens, não há medo nem frio.

 

Depois qualquer coisa vai acontecendo com o passar do tempo. O passo desacelera, o corpo aumenta de peso, a paciência muda de capacidade. Continua a vontade de saltar para dentro de água mas de uma forma mais moderada. Uma vez por outra a vontade de nadar mas o frio e as dores começam a pesar no corpo. Já não apetece lá ficar tanto tempo, há muitas coisas para fazer. E uma voz soa lá longe.

    Não vás para aí

E em certos dias não vamos. Preferimos passear ao fim da tarde pelo passeio marginal. Continuamos amigos, continuamos a passar tempo juntos mas desta vez de um forma mais ponderada. Em vez de nadar todos os dias começamos a apreciar o diálogo mais calmo, o passeio, a contemplação do outro mundo ao lado do nosso.

 

   Não vás para aí

 

E num instante os anos passam e a vontade que era toda começa a encolher. As pernas, o fôlego e o passar dos dias encolhem com ela. Estabelecem limites, impõem disposições, ditam a severidade das regras. Voltamos ao mar, voltamos sempre lá para visitar um amigo mas precisamos de uma sombra, de um lugar para nos sentarmos. E ficamos a ver os outros mais novos que caminham pela marginal ou os outros ainda mais novos que mergulham despreocupados. Já não é uma voz a dizer

 

   Não vás para aí

 

É outra coisa que sai cá de dentro, outra coisa que se veste em forma de aviso, autoritária.

 

  Não podes ir para aí

 

De maneira que nos deixamos por ali ficar sentados a sentir a brisa ao fim da tarde, os cheiros do mar e continuamos a nossa conversa com um velho amigo. O Tempo não termina, encolhe como os nossos corpos, vai-se ajeitando como um gato antes de se deitar dando voltas e voltas. Tudo fica mais pequeno até desaparecer. E de repente damos conta que estávamos dentro de um filme, ou de uma máquina que filmava e que aos poucos a lente vai-nos absorvendo até aos limites do enquadramento. Depois somos levados até nos tornarmos parte da maquinaria que produz as imagens e que faz correr toda a acção. E ao longe voltará a fazer-se ouvir uma voz

 

   Não vás para aí

 

A mesma que sempre ouvimos e à qual nunca obedecemos. Nessa altura percebemos. Não era do mar que ela estava a falar.

 

   Não vás para aí

 

E nós vamos na mesma, como sempre fomos, sem lhe dar ouvidos…

 

Artur

 

(Imagem de Luis Pereira)

domingo, 7 de abril de 2024

É DOMINGO

 



Aqui também é domingo e os sinos já tocaram. O frasco de café está quase a acabar e eu conto cada colherada até ao último contacto. Não guardo fotografias nem rancores, fecho as portas destas memórias bem fechadas atrás de mim e construo novos caminhos sobre os mais antigos, aqueles que existiam muito antes de nós. Acordei para ver mais um episódio de Little Bird e com eles fiz a cerimónia de despedida do Niizh. O vento continua a soprar e eu tenho mais pontos para contar no meu primeiro pano de arraiolos. Os animais, um a um vêm saudar-me, as árvores dançam a valsa do vento de oeste e o pinheiro bravo maior mantém-se de pé apesar da ferida que trespassa a casca até ao cerne. Tem mais de duzentos anos e guarda a paisagem até ao florescimento da última pinha.
Aqui estamos, no sétimo dia do quarto mês de dois mil e vinte e quatro, entre guerras e pesares, alegrias e mal estares, nesta janela que requer um paninho com vinagre para limpar a vista salpicada de maresias e poeiras, em vésperas de eclipse solar parcial (só)aqui nos Açores. Entretanto é altura de colher as pétalas de flor de laranjeira espalhadas pelo chão para tisanas de noites tranquilas. É domingo.

Elsa Bettencourt

terça-feira, 12 de março de 2024

HISTÓRIAS DENTRO DE HISTÓRIAS


 


Acordo de manhã sentindo-me perdido, sensação que me acompanhou quase sempre ao longo de uma vida inteira. A busca incessante de um rumo seria só por si razão suficiente para encontrar algum. Mas não foi. Não há certezas de nada, nunca houve. Só dúvidas, só questões, só interrogações que ficam a pairar no ar como uma constipação prolongada que nunca mais tem fim. Desligo a televisão e o telefone, elementos que entendo manterem no ar um quadro de emoções paralisante, uma depressão inútil, um ambiente que imobiliza e enfraquece a vontade. Percorro a estante no corredor, testemunho de uma vida, marcos de existência. Uma biblioteca como caminho percorrido. Estico um braço e viro a cara na direcção oposta. Tiro um livro, um livro qualquer. Todos os livros interessam, todos os livros contam alguma coisa. São vozes caladas que conspiram no silêncio das narrativas. Aprende-se sempre qualquer coisa com eles, ouve-se a história de alguém…de alguma coisa. As histórias são a maneira que encontrámos para não nos sentirmos sozinhos, a resistência ao conceito da morte, do nosso estatuto de coisa finita, que termina irremediavelmente. Deixando testemunho, real ou ficcional, vencemos o nosso fim, continuamos o diálogo com os que ainda hão-de vir, ficamos depois de partir.

Somos histórias dentro de histórias, pedaços de tempo que se cruzam ou caminham em paralelo deixando para trás os registos de passagem para que alguém os leia no futuro enquanto os acumula na sua própria caminhada. São memórias antigas, paixões, ódios, aventuras. Os livros estão cá e continuarão a estar muito depois de partirmos contando partes da realidade, vivida ou ficcionada, dialogando com quem os quiser abrir. Ensinam sempre alguma coisa, descrevem paisagens por explorar, abrem horizontes nas nossas mentes permitindo evoluir na forma como nos vemos a nós e ao mundo onde vivemos.

Ao longo do corredor uma estante serve de registo da caminhada, um gigantesco depósito de memórias e narrativas sempre actuais para quem a quiser visitar. Tem sempre uma resposta, uma ideia, uma emoção guardada para entregar.

No mundo das vozes que se vão calando alguém continuará a falar, a pensar, a colocar questões. No mundo das estantes esquecidas em corredores das casas haverá sempre o ruído de passos curiosos que se aproximarão e esticarão o braço na direcção de uma capa, de um título, de uma encadernação apelativa. E por momentos a solidão deixará a casa para fumar um cigarro lá fora, a morte será acometida de uma longa constipação daquelas que nunca mais acabam. E a conversa será eterna.

 

Artur


domingo, 3 de março de 2024

20230303


 Terceiro dia do terceiro mês de dois mil e vinte e quatro

Que fazer à dor quando
ela transpira pelos olhos
e não a conseguimos segurar?
Será tempestade no nosso olhar,
soluços a ribombar,
ou somente um cravo espetado
no músculo de amar?
Ficarão os nossos passos presos
pelos grilhões da incerteza
ou serão asas cheias de penas
e nenhuma leveza?
Há coisas que não se explicam
senão pela posição das estrelas,
pelo nosso reflexo na íris dum animal,
ou pela sombra do mastro
no horizonte redondo
da memória nada virtual.
Elsa Bettencourt

sábado, 3 de fevereiro de 2024

ATRAVÉS DA TEMPESTADE

 

Perante a cegueira do ódio, perante a anestesia da degradação e a banalidade do mal, atravessamos os tempos presentes como uma enorme tempestade sem grande margem de espaço para a contrariar. Baixamos a cabeça e esperamos que os estragos sejam mínimos ou resignamo-nos ao nosso fim. De uma forma ou de outra recorremos a todos os esforços para manter a serenidade. Com ela é possível somar os dias com um mínimo de paz, atravessar estes tempos imaginando que um dia terão forçosamente que terminar.

O importante não é a queda mas o impacto, o importante não é o impacto mas a velocidade…O importante é tentar perceber essa vertigem que nos empurra, essa força descomunal empenhada em nos destruir só porque sim. Sem medo aceitemos essa força e naveguemos pelos territórios do caos enquanto houver embarcação. Nada faz sentido nem nunca fez. Por isso o melhor é tornar o nosso trajecto numa experiência de cooperação e solidariedade. Para quê? Para não dar o caminho como perdido, a existência como desperdício e a evolução como inútil…

Artur

domingo, 28 de janeiro de 2024

I SIT AND LOOK OUT UPON ALL THE SUFFERINGS OF THE WORLD


 

I sit and look upon all the sorrows of the world, and upon all opression and shame,

I hear secret convulsive sobs from young men at anguish

with themselves, remorseful after deed done,

II see in low life the mother misused by her children,

dying, neglected, gaunt, desperate,

I see the wife misused by the husband, I see the treacherous seducer of young women,

I mark the ranklings of jealousy and unrequited love attempted to be hid, I see these sights on the earth,.

I see the workings of battle, pestilence, tiranny, I see martyrs and prisoners,

I observe a famine at sea, I observe the sailors casting lots who shall be killed to preserve the lives

of the rest,

I observe the slights and degradations cast by arrogant persons upon laborers, the poor, and upon negroes and the like;

All these - all the meanness and agony without end I Sitting look out upon,


See, hear, and am silent


Whalt Withman   ( 1819 - 1892)

sábado, 27 de janeiro de 2024

INDO COM AS FOLHAS QUE SE SOLTARAM


 


Vigésimo sétimo dia do primeiro mês de dois mil e vinte e quatro
Hoje o vento sopra e ruge como os animais das fábulas infantis. As árvores dançam, vergam-se, endireitam-se, balançam e aquietam-se entre expirações. Inspiro. A floresta é a minha vizinha mais próxima e é comigo que ela conversa, é com ela que eu desabafo. Sinto-me a guardiã deste lugar na minha pequenez quase insignificante. O tronco do incenso serve para medir a intensidade do sopro e se a copa passa para o primeiro vídro de cima da janela de guilhotina então o lobo está furioso.
-Vou soprar e soprar até a tua casa abaixo deitar!
-Vais soprar e soprar até perderes o ar. Estás só a passar!
Há raizes soltas e árvores doentes, árvores novas acabadas de romper desta terra abençoada. Há árvores saudáveis que seguram as irmãs até à queda. Quando a queda acontece, se acontecer, elas transformam-se e passam a gerar mil outras formas de vida. Por isso uma árvore morre sempre de pé, mesmo que caia.
Esta é a continuação da quinta feira de amigas que festejamos aqui nos Açores. Árvores ou mulheres, lobos ou contratempos. Somos geradoras de muita vida e empatia. Somos cuidadoras e guardiãs, tecedeiras de afetos e cumplicidades. Somos bailarinas, semeamos danças e plantamos castelos. Reconstruímos a nossa essência como a aranha faz a teia. Somos sangue, seiva, artéria e veia. Rimos das nossas desgraças e choramos com os nosso disparates. E marchamos contra todos os ventos que não venham do coração. E deixamo-nos ir a ficar, deixando-nos ficar a ir.
É este o vento que sopra hoje. Eu fico e vou. Voo com as folhas que se soltaram e fico bem aqui dentro de mim.

Elsa Bettencourt

sábado, 20 de janeiro de 2024

O CIRCO DE OLISIPO




𝙎𝙖𝙗𝙞𝙖 𝙦𝙪𝙚... ⁉️
🔻…𝙊 𝘾𝙞𝙧𝙘𝙤 𝙙𝙚 𝙊𝙡𝙞𝙨𝙞𝙥𝙤 ocupava a área da actual Praça D. Pedro IV, ou Rossio e a sua envolvente, em Lisboa.
▪️Foi no século II d.C que este
monumental edifício público romano foi construído fora dos limites da cidade de 𝙁𝙚𝙡𝙞𝙘𝙞𝙩𝙖𝙨 𝙄𝙪𝙡𝙞𝙖 𝙊𝙡𝙞𝙨𝙞𝙥𝙤 e ao lado da sua necrópole noroeste (identificada, por exemplo, na actual Praça da Figueira).
▪️Era no 𝘾𝙞𝙧𝙘𝙤 que se desenrolavam os “ludi circenses”, como as corridas de bigas e quadrigas (em carros de dois e quatro cavalos, respectivamente) ou as lutas de animais.
. Era também palco de eventos comemorativos oficiais.
▪️Os primeiros vestígios do 𝘾𝙞𝙧𝙘𝙤 surgiram em 1961, durante as obras do Metropolitano, na Praça da Figueira.
. Nessa altura, no entanto, o elemento construtivo com 6 m de largura identificado, foi erroneamente interpretado como parte de uma estrada ou de um cais.
👉 Apenas em 1994 essa perspectiva foi revista, quando se encontraram novas evidências, na escavação arqueológica associada à obra do Metropolitano, no Rossio.
👉 Efetivamente, a 6,5m de profundidade, reconheceu-se parte da arena e um novo troço do que agora se confirmou ser a 𝙨𝙥𝙞𝙣𝙖 – o muro largo que divide longitudinalmente o 𝘾𝙞𝙧𝙘𝙤 em duas metades, em torno do qual decorrem as corridas de cavalos.
▪️A 𝙨𝙥𝙞𝙣𝙖 fazia parte de um complexo que incluía 𝙚𝙪𝙧𝙞𝙥𝙪𝙨 - bacias de água com uma função simultaneamente decorativa e prática, nas quais os cavalos se podiam refrescar.
▪️Em associação, foi também posto a descoberto um plinto, provavelmente de uma estátua, como era característico.
❗️Embora não esteja visível actualmente, quem se deslocar ao Rossio pode imaginar o 𝘾𝙞𝙧𝙘𝙤 𝙙𝙚 𝙊𝙡𝙞𝙨𝙞𝙥𝙤 no local com o auxílio da informação disponibilizada através de um QRCode instalado em duas placas colocadas no pavimento, uma em cada lado da Praça D. Pedro IV.
🔺️ Mas, para já, não precisa de imaginar…👇
❗️Veja o vídeo inserido no website www.lisboaromana.pt
com a reconstituição do 𝘾𝙞𝙧𝙘𝙤 e de parte da necrópole noroeste da cidade de 𝙁𝙚𝙡𝙞𝙘𝙞𝙩𝙖𝙨 𝙄𝙪𝙡𝙞𝙖 𝙊𝙡𝙞𝙨𝙞𝙥𝙤 em: https://lisboaromana.pt/imovel/circo-1#search
📸 Imagens extraídas de 𝙊 𝘾𝙞𝙧𝙘𝙤 𝙙𝙚 𝙊𝙡𝙞𝙨𝙞𝙥𝙤 (https://vimeo.com/470515952
), episódio disponível no site do projecto 𝙇𝙞𝙨𝙗𝙤𝙖 𝙍𝙤𝙢𝙖𝙣𝙖 - 𝙁𝙚𝙡𝙞𝙘𝙞𝙩𝙖𝙨 𝙄𝙪𝙡𝙞𝙖 𝙊𝙡𝙞𝙨𝙞𝙥𝙤 (https://lisboaromana.pt/technical-record
), produzido para o município lisboeta (DPC/CAL Centro de Arqueologia de Lisboa) pela @eraarqueologiasa, realizado por @raul_losada_film com coordenação científica do nosso colega arqueólogo do CAL @Rodrigo Banha da Silva e recriação arqueológica 3D da autoria de @cesar_figueiredo.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

QUINTA FEIRA DE AMIGOS DE 2024


 


Arquipélago dos Açores- Quinta feira de amigos de dois mil e vinte e quatro.
Que vocês, rapazes da minha vida, sejam amigos como desde a primeira pedra que atiraram para proteger o melhor, sejam amigos como no dia que esfolaram os joelhos juntos no primeiro jogo, sejam amigos como quando assumiram culpas que não eram vossas, sejam amigos como no primeiro dia, como no primeiro acampamento, como no primeiro baile ou primeiro festival, como no primeiro desgosto de amor ou no primeiro beijo, como na primeira perda do melhor amigo em que estavam lá todos para se despedir menos ele. Celebrem a memória do melhor amigo seja ele pai, filho, ou outro alguém que já tenha partido e brindem com os presentes, tornem-nos próximos se estiverem ausentes. Celebrem a raridade duma amizade que é tão grande que parece eterna mas será sempre menor do que a vossa existência. Usem a amizade como um kit de primeiros socorros, sejam os pensos rápidos uns dos outros, sejam o gesso dos vossos membros fraturados e estanquem as feridas uns aos outros. Sejam matilha, sejam lobos, uivem pelo bem e por qualquer luta desigual. Dispam as armaduras e celebrem a raridade deste lugar de livre arbítrio e liberdade.
Feliz Dia dos Amigos

Elsa Bettencourt

UMA RUA COMO AS OUTRAS


 


É uma rua como as outras onde o dia chega de manhã e acorda as cores e as formas muito devagar. Uma rua como as outras que vai juntando histórias e caminhos dos que por ali passaram. Uma livro aberto à descoberta e ao correr da passagem dos dias multiplicado pelas cidades com prédios e carros em movimento, janelas observadoras, obras ocasionais, tardes mansas de fim de semana, um arquivo de sonhos e tragédias, inícios e pontos finais de existências que passaram por aquele espaço.

Uma rua como as outras que se recolhe ao anoitecer e deixa ligadas as luzes de presença dos candeeiros, o brilho das montras, o rasto dos faróis dos carros que a atravessam. Uma rua projectada, construída, percorrida, vivida, uma existência prolongada pela sua razão de ser, pela sua utilidade, estação de passagem, chegada e partida para o resto da cidade.

Uma rua como as outras que começa perto de um rio e que cresce para o interior em busca de uma avenida principal a quem passa o testemunho da direcção.

Uma rua como as outras de importância única no breve espaço que serve, pedaço de caminho entre duas realidades, observatório de movimento, ensaio de registo,  começo e fim da existência nunca traduzida em linguagem normal.

Uma rua como as outras que um dia se cruzou no nosso caminho e, sem nada dizer, conseguiu manter uma longa conversa, estimulou uma reflexão e permitiu uma imagem para recordação futura.

Uma rua como as outras, solitária e persistente na sua função de rua, aberta aos ciclos do Sol e às estações do ano, dona da sua utilidade, sempre disponível para um breve diálogo ocasional de boa vizinhança.

 

Artur


terça-feira, 2 de janeiro de 2024

PELA ÁGUA


 

Dedicado a Itzíar, a mulher que inventou um escritor


 

1 + 1 = 1

 

A nostalgia do poeta mergulha-o numa melancolia tão profunda, num langor tão glauco, numa amargura tão dolorosa que o sol lhe parece estar sempre velado. Essa nostalgia embebe a luz do filme, penetra as paisagens e estende sobre as personagens um manto húmido de fria desolação. É natural que assim seja; em "Nostalghia", Andrei Tarkovski exorciza a sua própria história, o seu próprio desgosto. Com efeito, tal como a personagem principal (chamado, relembremos, Andrei) o poeta que passa por Itália a fim de recolher informações sobre um músico russo do século XVIII, Tarkovski é um exilado. Tendo que se afastar do seu país natal para assegurar a sobrevivência e continuidade da sua obra, não cessa de viver o desgosto desse exílio, de ir beber numa fonte desaparecida na sua memória, de implorar o passado; uma tarefa ainda mais excruciante uma vez que a sua arte se apoia na inspiração da cultura do país do qual teve que fugir.

Mas, fiel ao aforismo de Saint-Exupéry que afirma que a nostalgia é o desejo de não se sabe o quê, o mal de que sofre o autor não se resume à separação geográfica, por muito dilacerante que ela seja; é também, é sobretudo espiritual .Porque o que desejam os dois Andrei, é de reintegrarem não a casa paterna, nem o seio materno, mas antes esse Paraíso perdido de uma fé cega. Aquilo que procuram, é  regressar muito atrás, ao tempo em que Deus e o Homem viviam lado ao lado, ao abrigo da chuva e do cinismo.

Essa sede do absoluto, essa nostalgia metafísica, assola ainda mais brutalmente Domenico, o eremita meio-louco, meio-sábio que Andrei encontra no curso das suas pesquisas. Enquanto Andrei enterra silenciosamente o seu sofrimento, passeando-se num país que o entorpece mais do que o encanta, Domenico grita aos quatro ventos a sua angústia. Pendurado na estátua de Marco Aurélio na escadaria do Capitólio em Roma, arenga os ouvintes, alertando-os contra a excessiva vaidade da sociedade materialista, exortando-os a reencontrarem esse momento da História em que nos desviámos do caminho justo, antes de ele mesmo se imolar pelo fogo. Tal como Pierrot Le Fou, que se suicida com dinamite a fim de gozar a Eternidade, curará as suas dores abdicando da vida. Será a morte o único modo de acalmar a nossa alma ? Duvide-se; com efeito, se para Tarkovski a vida sem fé é um inferno, a morte não é a solução. Na atroz agonia das chamas, ao som do "Hino à Alegria" de Beethoven, num fracasso monumental, Domenico não encontra repouso nem paz. Isso, sabe-o Andrei. Numa longa sequência hipnotizante - e uma das mais belas sequências cinematográficas de todos os tempos - vai atravessar a longa piscina dos banhos com uma vela acesa, tentando proteger a frágil luz da sua crença contra todos os ventos do mundo. Quando falha, nós falhamos com ele. Quando consegue, é toda a Humanidade que se redime. Tal como Sísifo, confere sentido aí, onde só havia absurdo.

Tal como a sua crença, o cinema de Takovski é um cinema extraordinariamente exigente. Não se vai até ele sem um acto inicial de despojamento. Os seus filmes abrem-se sobre as nossas cabeças como catedrais, e todo o supérfluo faria figura de sacrílego. E, sobretudo, é uma arte poética, feita de uma sensualidade quase palpável: a água, omnipresente, deslava as cores da película; o fogo acaricia a obscuridade, mais do que a desvanece; a brisa acaricia as velhas pedras; a erva, verde como a esperança, verde como o desgosto e longa como a cabeleira das mulheres, nada entre a Terra e o Céu, a sombra e a luz - em suma, a Natureza ela mesma vacila, bela como uma promessa ou lúgubre como o Nada. É desse modo que o filme balança entre a madrugada e o crepúsculo, acordando com o orvalho ou agonizando sob a chuva. Ao caos da realidade, Tarkovski opõe a ordem dos poemas, a absoluta beleza do reencontro, do recentramento para que aponta a inscrição na parede da casa de Domenico invadida pela chuva: 1+1=1. E, é claro, a eternidade de um homem e de uma mulher que, quando falam,  não expressam outra coisa senão aquilo que sentem um pelo outro. 

FECHA(R) OS OLHOS

 



A Beleza é  o princípio do Terror


1. Durante muitos anos Manuel S. Fonseca assinou uma coluna no Expresso intitulada "O Cinema dá o que a Vida Tira". Nela, o autor, com a sua verve característica, explorava o modo como o cinema, de certa maneira, compensa esse lado obscuro da vida, apostado em frustrar as expectativas, desejos e desígnios do ser humano, ou seja, como compensa, através da ilusão, do artifício do sonho (a famosa "matéria de que os sonhos são feitos"), aquilo que a vida se dedica a transformar em falha, ausência, carência. Perante "Fechar os Olhos" apetece-me inverter a fórmula e transformá-la em "A vida dá o que o cinema tira.

Talvez não seja exactamente assim. Porquê "fechar os olhos" ? Justamente, este título paradoxal remete para uma constante do cinema de Erice: é preciso fechar os olhos para podermos ver aquilo que o cinema partilha do visível do quotidiano; fechar os olhos para podermos ver aquilo que está à nossa frente, para podermos ver e acolher a estranheza e a diversidade que residem em cada um de nós e a que só fechando os olhos podemos aceder e compreender o profundo e o insondável da sua profunda e misteriosa unidade.

 

2 Os eventuais leitores perdoar-me-ão a extensão desta citação de André Bazin, que retiro dessa obra fundamental que é "Qu'est-ce que le cinéma ?", mas a ideia nela contida constitui para mim uma determinação essencial para compreender o enigma deste filme assombroso e assombrado. Assim:

 

Une psychanalyse des arts plastiques pourrait considérer la pratique de l'embaumement comme un fait fondamental de leur genèse. A l'origine de la peinture et de la sculpture, elle trouverait le « complexe » de la momie. La religion égyptienne dirigée tout entière contre la mort, faisait dépendre la survie de la pérennité matérielle du corps. Elle satisfais-ait par là à un besoin fondamental de la psychologie humaine : la défense contre le temps. La mort n'est que la victoire du temps. Fixer artificiellement les apparences charnelles de l'être c'est l'arracher au fleuve de la durée l'arrimer à la vie. Il était naturel de sauver ces apparences dans la réalité même du mort, dans sa chair et dans ses os. La première statue égyptienne, c'est la momie de l'homme tanné et pétrifié dans le nation. Mais les pyramides et le labyrinthe des couloirs n'étaient pas une garantie suffisante contre la violation éventuelle du sépulcre ; il fallait encore prendre d'autres assurances contre le hasard, multiplier les chances de sauvegarde. Aussi plaçait-on près du sarcophage, avec le froment destiné à la nourriture du mort, des statuettes de terre cuite, sortes de momies de rechange, capables de se substituer au corps si celui-ci venait à être détruit. Ainsi se révèle, dans les origines religieuses de la statuaire, sa fonction primordiale sauver l'être par l'apparence. Et -sans doute peut-on tenir pour un autre aspect du même projet, considéré dans sa modalité active, l'ours d'argile  criblé de flèches dans la caverne préhistorique, substitut magique, identifié au fauve vivant, pour l'efficacité de la chasse. Il est entendu que l'évolution parallèle de l'art et de la civilisation a dégagé les arts plastiques de ces fonctions magiques (Louis XIV ne se fait pas embaumer : il se contente de son portrait par Lebrun). Mais elle ne pouvait que sublimer à l'usage d'une pensée logique ce besoin incoercible d'exorciser le temps. On ne croit plus à l'identité ontologique du modèle et du portrait, mais on admet que celui-ci nous aide à nous souvenir de celui-là, et donc•, à le sauver d'une seconde mort spirituelle. La fabrication de l'image s'est même libérée de tout utilitarisme anthropocentrique. Il ne s'agit plus de la survie de l'homme, mais plus généralement de la création d'un univers idéal à l'image du réel et doué d'un destin temporel autonome. Quelle vanité que la peinture » si l'on ne décèle pas sous notre admiration absurde le besoin primitif d'avoir raison du temps par la pérennité de la formé ! Si l'histoire des arts plastiques n'est pas seulement celle de leur esthétique mais d'abord de leur psychologie, elle est essentiellementelle de la ressemblance ou, si l'on veut, du réalisme.[...] Dans cette perspective, le cinéma apparaît comme l'achèvement dans le temps de l'objectivité Photographique.Le film ne se contente plus de nous conserver l'objet enrobé dans son instant comme, dans l'ambre, le corps intact des insectes d'une ère révolue, il délivre l'art baroque de sa catalepsie convulsive. Pour la première fois, l'image des choses est aussi celle de leur durée et comme la momie du changement" . André Bazin , Qu'est-ce que le cinéma? pp 10-14

Quem vir este filme de olhos bem abertos, verá que se trata disso mesmo, de arrancar um ser à duracção temporal e negar a vitória da morte, afirmar que não se trata tanto de fixar a aparência do ser, mas, antes de tudo,  que o ser não se deixa ficar na imagem fixa que uma vez foi registada e que perdura na relação. E a memória é o único antídoto contra a rigidez da fixação e a vitória da morte. Aliás, aqueles que estão familiarizados com o portentoso cinema de Victor Erice, reconhecerão que no seu centro está o poder da memória e a sua capacidade de tecer e reter laços, as ausências que ela preenche ou cruza. De ausências se trata: do actor Julio Arenas (o fabuloso José Coronado), dos filmes que Erice não pôde realizar (a segunda parte de "El Sur", a adaptação ao cinema de "El Embrujo de Shanghai" de Juan Marsé, a da filha perdida do realizador, perdida em Xangai e que ele quer rever antes de morrer, a do filme dentro filme "La Mirada del Adiós", tantas e tantas ausências e perdas), tantas referências a tudo o que se perdeu no tempo. E a maravilhosa e misteriosa arte de Erice consiste nesse entrecruzar dos tempos (e das perdas), com uma absoluta indiferença pelo respeito por cronologias; o presente ressoa contínua e  anacronicamente, ou seja, através do tempo. Na primeira parte, que decorre em Madrid, sucedem-se os sítios frios e algo inóspitos (do Prado, por exemplo, só vemos a entrada e a cafetaria, e toda a graça parece ter desertado de um mundo de onde o cinema está ausente, a um ponto que "ciudad del cine" é o nome de uma paragem suburbana que conduz a um estúdio de televisão. Na segunda parte, que decorre na Andaluzia, o mundo parece mais habitável e harmonioso, e justamente uma das dimensões mais exaltantes da diégese do filme, é a descoberta de que nesses espaços mais amigáveis e quentes é possível compreender aquilo em que a amizade se transformou depois de passar pelo crivo da memória. Esta, é a memória dos amados - um amigo perdido, uma mulher outrora amada, um filho morto - que se partilha ou se apaga e dos quais as fotografias, filmes e os objectos são os signos visíveis. Por isso falava eu antes na partilha da visibilidade do mundo, a tal que só é apreensível de olhos fechados. E também a memória dos corpos e dos gestos, o último reduto onde os amigos ainda se podem reencontrar, negando a amnésia. E a memória mais vasta, ao mesmo tempo mais impalpável e mais partilhável, que impregna todo o filme: as recordações de quadros, filmes, canções que vêm continuamente alimentar o presente. E também  tema da espera: esperar a vida inteira por um momento perfeito em que tudo se recentre e tudo ganhe sentido ou, se se quiser, unidade. 

Essencial também para a compreensão desta obra-prima é a convicção de que ela se alimenta sempre da memória do cinema e, em particular, do cinema de Victor Erice; as memórias íntimas que reaparecem à superfície para serem partilhadas. Recordar que a amizade pode ser vivida como Howard Hawks a fixou em "Rio Bravo" (que Erice directamente cita). Se foi uma vez assim, poderá ser sempre assim. E aqui vos remeto para a citação de Bazin.

E deixem que vos diga que me lembro de poucas sequências tão comoventes como aquela em que Ana ( a magnífica e surpreeendente Ana Torrent, numa brilhantíssima passagem de um grande plano a um plano aproximado, que se demora no rosto da actriz e em que a personagem se lembra do tempo em que acreditava nos Reis Magos e em que a menina de "O Espírito da Colmeia" aflora no rosto da mulher madura que ele agora é, murmurando "Sou Ana"... Perante esse plano de todas as emoções, o nosso coração colapsa. Pelo menos, o meu colapsou e fez-me voltar à memória a tese de André malraux segundo a qual a arte seria um anti-destino. Neste caso, um anti-destino, se o destino fôr a amnésia e o esquecimento do ser. e fez-me lembrar também o quanto a imagem cinematográfica é um olhar o outro, olhar a alteridade como uma outra identidade: olhos que se baixam, se fixam, cruzam e que tudo isso acontece na duração e que cada plano é esse instante preciso em que se passa de um a outro.

Sobretudo, a arte magistral deste cineasta secreto e íntimo que é Victor Erice consiste na subtileza com que nos faz pensar que o final de cada cena é, à sua maneira, um ADEUS, o momento de uma história sobre a qual os nossos olhos se fecham. E também, como diz Miguel ao seu amigo Max, é preciso envelhecer sem medo e sem esperança.

No fundo, de olhos abertos ou fechados, este filme sem paralelo, sem medo e sem esperança, que parte do inacabado e da ausência, não para os preencher, mas para os tornar motor de uma busca incessante em que se trata do reencontro (consigo mesmo e com o outro), reunir(se), rememorar incessantemente. O que significa que nenhum filme, nenhuma amizade, nenhuma vida, se completam e se acabam definitivamente. Não sabemos dizer se isso é bom ou mau, se a incompletude é beleza ou terror. Nem isso importa. A Erice importa sublinhar que é preciso viver cada fim, cada adeus, com a plenitude dos recomeços e das promessas que cada recomeço encerra. Saibamos todos envelhecer com essa sabedoria.