terça-feira, 3 de dezembro de 2024
DEZEMBRO FELIZ
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
NO CAOS DA CALMA...A ENTRADA
Décimo oitavo dia do nono mês de dois mil e vinte e quatro.
terça-feira, 9 de julho de 2024
PORQUE É VERÃO
No nono dia do sétimo mês de dois mil e vinte e quatro entra o vento pelo balcão adentro e a folhagem das árvores dança em frente. A Dora trota feliz entre o jardim e o pomar, parando só para pôr o focinho no ar que traz o cheiro equino da vizinhança mais ao lado. Serão póneis, serão cavalos ? São amigos certamente, que relincham à presença dela, à visão dos flancos e das curvas delineados pelo sol nascente.
sábado, 1 de junho de 2024
NÃO PISEM A RELVA
Tudo o que escrevi aqui, há não sei quantos anos, não passou de vozearia, palavras ocas, ruído, tanto ruído incomodativo e inútil, cheio de pompa, presunção e ilusão. Não soube preservar o silêncio, guardar o recato, conservar o bem mais precioso de todos, abster-me de fazer juízos, de emitir opiniões, de construir estruturas de ideias falsas, proclamações que a ninguém interessam, nem sequer a mim mesmo. Por isso, adeus, passem bem, sejam felizes, mantenham-se quentes e em segurança. Eu vou andando. Ou não.
quarta-feira, 1 de maio de 2024
quinta-feira, 25 de abril de 2024
segunda-feira, 15 de abril de 2024
NÃO VÁS PARA AÍ
No princípio tudo é fascínio e aventura, tudo é um universo
para desbravar, um espaço à espera de conquista. Não há dores nem receios,
hesita-se pouco. Descemos vagarosamente os degraus de pedra e entramos
suavemente na maré. Depois vamos ganhando mais confiança e arriscamos um
mergulho. Primeiro nos degraus mais baixos e pouco a pouco subindo até lá
acima. Contemplando o horizonte introduzimos a vertigem do salto. Em poucas
tentativas já somos amigos do mar e passamos horas a brincar com ele, nadando
nas suas águas, mergulhando, percorrendo os caminhos de um mundo diferente do
nosso. Às vezes uma voz fraca faz-se ouvir ao longe.
Não vás para
aí
E nós vamos e continuamos a ir sem ligar nenhuma a avisos longínquos.
Ficamos na água até bater o queixo e voltamos para casa ao fim do dia. Nesse tempo não há preocupações nem vertigens, não há medo nem frio.
Depois qualquer coisa vai acontecendo com o passar do tempo.
O passo desacelera, o corpo aumenta de peso, a paciência muda de capacidade.
Continua a vontade de saltar para dentro de água mas de uma forma mais
moderada. Uma vez por outra a vontade de nadar mas o frio e as dores começam a
pesar no corpo. Já não apetece lá ficar tanto tempo, há muitas coisas para
fazer. E uma voz soa lá longe.
Não vás para aí
E em certos dias não vamos. Preferimos passear ao fim da
tarde pelo passeio marginal. Continuamos amigos, continuamos a passar tempo
juntos mas desta vez de um forma mais ponderada. Em vez de nadar todos os dias
começamos a apreciar o diálogo mais calmo, o passeio, a contemplação do outro
mundo ao lado do nosso.
Não vás para aí
E num instante os anos passam e a vontade que era toda começa
a encolher. As pernas, o fôlego e o passar dos dias encolhem com ela.
Estabelecem limites, impõem disposições, ditam a severidade das regras.
Voltamos ao mar, voltamos sempre lá para visitar um amigo mas precisamos de uma
sombra, de um lugar para nos sentarmos. E ficamos a ver os outros mais novos
que caminham pela marginal ou os outros ainda mais novos que mergulham
despreocupados. Já não é uma voz a dizer
Não vás para aí
É outra coisa que sai cá de dentro, outra coisa que se veste
em forma de aviso, autoritária.
Não podes ir para aí
De maneira que nos deixamos por ali ficar sentados a sentir
a brisa ao fim da tarde, os cheiros do mar e continuamos a nossa conversa com
um velho amigo. O Tempo não termina, encolhe como os nossos corpos, vai-se ajeitando
como um gato antes de se deitar dando voltas e voltas. Tudo fica mais pequeno
até desaparecer. E de repente damos conta que estávamos dentro de um filme, ou
de uma máquina que filmava e que aos poucos a lente vai-nos absorvendo até aos
limites do enquadramento. Depois somos levados até nos tornarmos parte da
maquinaria que produz as imagens e que faz correr toda a acção. E ao longe
voltará a fazer-se ouvir uma voz
Não vás para aí
A mesma que sempre ouvimos e à qual nunca obedecemos. Nessa
altura percebemos. Não era do mar que ela estava a falar.
Não vás para aí
E nós vamos na mesma, como sempre fomos, sem lhe dar ouvidos…
Artur
domingo, 7 de abril de 2024
É DOMINGO
terça-feira, 12 de março de 2024
HISTÓRIAS DENTRO DE HISTÓRIAS
Acordo de manhã sentindo-me perdido, sensação que me
acompanhou quase sempre ao longo de uma vida inteira. A busca incessante de um
rumo seria só por si razão suficiente para encontrar algum. Mas não foi. Não há
certezas de nada, nunca houve. Só dúvidas, só questões, só interrogações que
ficam a pairar no ar como uma constipação prolongada que nunca mais tem fim.
Desligo a televisão e o telefone, elementos que entendo manterem no ar um
quadro de emoções paralisante, uma depressão inútil, um ambiente que imobiliza
e enfraquece a vontade. Percorro a estante no corredor, testemunho de uma vida,
marcos de existência. Uma biblioteca como caminho percorrido. Estico um braço e
viro a cara na direcção oposta. Tiro um livro, um livro qualquer. Todos os
livros interessam, todos os livros contam alguma coisa. São vozes caladas que
conspiram no silêncio das narrativas. Aprende-se sempre qualquer coisa com
eles, ouve-se a história de alguém…de alguma coisa. As histórias são a maneira
que encontrámos para não nos sentirmos sozinhos, a resistência ao conceito da morte,
do nosso estatuto de coisa finita, que termina irremediavelmente. Deixando
testemunho, real ou ficcional, vencemos o nosso fim, continuamos o diálogo com
os que ainda hão-de vir, ficamos depois de partir.
Somos histórias dentro de histórias, pedaços de tempo que se
cruzam ou caminham em paralelo deixando para trás os registos de passagem para
que alguém os leia no futuro enquanto os acumula na sua própria caminhada. São
memórias antigas, paixões, ódios, aventuras. Os livros estão cá e continuarão a
estar muito depois de partirmos contando partes da realidade, vivida ou
ficcionada, dialogando com quem os quiser abrir. Ensinam sempre alguma coisa,
descrevem paisagens por explorar, abrem horizontes nas nossas mentes permitindo
evoluir na forma como nos vemos a nós e ao mundo onde vivemos.
Ao longo do corredor uma estante serve de registo da
caminhada, um gigantesco depósito de memórias e narrativas sempre actuais para
quem a quiser visitar. Tem sempre uma resposta, uma ideia, uma emoção guardada
para entregar.
No mundo das vozes que se vão calando alguém continuará a
falar, a pensar, a colocar questões. No mundo das estantes esquecidas em
corredores das casas haverá sempre o ruído de passos curiosos que se
aproximarão e esticarão o braço na direcção de uma capa, de um título, de uma
encadernação apelativa. E por momentos a solidão deixará a casa para fumar um
cigarro lá fora, a morte será acometida de uma longa constipação daquelas que
nunca mais acabam. E a conversa será eterna.
Artur
domingo, 3 de março de 2024
20230303
Terceiro dia do terceiro mês de dois mil e vinte e quatro
sábado, 3 de fevereiro de 2024
ATRAVÉS DA TEMPESTADE
Perante a cegueira do ódio, perante a anestesia da
degradação e a banalidade do mal, atravessamos os tempos presentes como uma
enorme tempestade sem grande margem de espaço para a contrariar. Baixamos a
cabeça e esperamos que os estragos sejam mínimos ou resignamo-nos ao nosso fim.
De uma forma ou de outra recorremos a todos os esforços para manter a
serenidade. Com ela é possível somar os dias com um mínimo de paz, atravessar
estes tempos imaginando que um dia terão forçosamente que terminar.
O importante não é a queda mas o impacto, o importante não é
o impacto mas a velocidade…O importante é tentar perceber essa vertigem que nos
empurra, essa força descomunal empenhada em nos destruir só porque sim. Sem
medo aceitemos essa força e naveguemos pelos territórios do caos enquanto houver
embarcação. Nada faz sentido nem nunca fez. Por isso o melhor é tornar o nosso
trajecto numa experiência de cooperação e solidariedade. Para quê? Para não dar
o caminho como perdido, a existência como desperdício e a evolução como inútil…
Artur
domingo, 28 de janeiro de 2024
I SIT AND LOOK OUT UPON ALL THE SUFFERINGS OF THE WORLD
I sit and look upon all the sorrows of the world, and upon all opression and shame,
I hear secret convulsive sobs from young men at anguish
with themselves, remorseful after deed done,
II see in low life the mother misused by her children,
dying, neglected, gaunt, desperate,
I see the wife misused by the husband, I see the treacherous seducer of young women,
I mark the ranklings of jealousy and unrequited love attempted to be hid, I see these sights on the earth,.
I see the workings of battle, pestilence, tiranny, I see martyrs and prisoners,
I observe a famine at sea, I observe the sailors casting lots who shall be killed to preserve the lives
of the rest,
I observe the slights and degradations cast by arrogant persons upon laborers, the poor, and upon negroes and the like;
All these - all the meanness and agony without end I Sitting look out upon,
See, hear, and am silent
Whalt Withman ( 1819 - 1892)
sábado, 27 de janeiro de 2024
INDO COM AS FOLHAS QUE SE SOLTARAM
sábado, 20 de janeiro de 2024
O CIRCO DE OLISIPO
quinta-feira, 18 de janeiro de 2024
QUINTA FEIRA DE AMIGOS DE 2024
UMA RUA COMO AS OUTRAS
É uma rua como as outras onde o dia chega de manhã e acorda
as cores e as formas muito devagar. Uma rua como as outras que vai juntando
histórias e caminhos dos que por ali passaram. Uma livro aberto à descoberta e ao
correr da passagem dos dias multiplicado pelas cidades com prédios e carros em
movimento, janelas observadoras, obras ocasionais, tardes mansas de fim de
semana, um arquivo de sonhos e tragédias, inícios e pontos finais de
existências que passaram por aquele espaço.
Uma rua como as outras que se recolhe ao anoitecer e deixa
ligadas as luzes de presença dos candeeiros, o brilho das montras, o rasto dos
faróis dos carros que a atravessam. Uma rua projectada, construída, percorrida,
vivida, uma existência prolongada pela sua razão de ser, pela sua utilidade,
estação de passagem, chegada e partida para o resto da cidade.
Uma rua como as outras que começa perto de um rio e que
cresce para o interior em busca de uma avenida principal a quem passa o
testemunho da direcção.
Uma rua como as outras de importância única no breve espaço
que serve, pedaço de caminho entre duas realidades, observatório de movimento, ensaio
de registo, começo e fim da existência
nunca traduzida em linguagem normal.
Uma rua como as outras que um dia se cruzou no nosso caminho
e, sem nada dizer, conseguiu manter uma longa conversa, estimulou uma reflexão
e permitiu uma imagem para recordação futura.
Uma rua como as outras, solitária e persistente na sua
função de rua, aberta aos ciclos do Sol e às estações do ano, dona da sua
utilidade, sempre disponível para um breve diálogo ocasional de boa vizinhança.
Artur
terça-feira, 2 de janeiro de 2024
PELA ÁGUA
Dedicado a Itzíar, a mulher que inventou um escritor
1 + 1 = 1
A nostalgia do poeta mergulha-o numa melancolia tão profunda,
num langor tão glauco, numa amargura tão dolorosa que o sol lhe parece estar
sempre velado. Essa nostalgia embebe a luz do filme, penetra as paisagens e
estende sobre as personagens um manto húmido de fria desolação. É natural que
assim seja; em "Nostalghia", Andrei Tarkovski exorciza a sua própria
história, o seu próprio desgosto. Com efeito, tal como a personagem principal
(chamado, relembremos, Andrei) o poeta que passa por Itália a fim de recolher
informações sobre um músico russo do século XVIII, Tarkovski é um exilado.
Tendo que se afastar do seu país natal para assegurar a sobrevivência e
continuidade da sua obra, não cessa de viver o desgosto desse exílio, de ir
beber numa fonte desaparecida na sua memória, de implorar o passado; uma tarefa
ainda mais excruciante uma vez que a sua arte se apoia na inspiração da cultura
do país do qual teve que fugir.
Mas, fiel ao aforismo de Saint-Exupéry que afirma que a
nostalgia é o desejo de não se sabe o quê, o mal de que sofre o autor não se
resume à separação geográfica, por muito dilacerante que ela seja; é também, é
sobretudo espiritual .Porque o que desejam os dois Andrei, é de reintegrarem
não a casa paterna, nem o seio materno, mas antes esse Paraíso perdido de uma
fé cega. Aquilo que procuram, é regressar muito atrás, ao tempo em que
Deus e o Homem viviam lado ao lado, ao abrigo da chuva e do cinismo.
Essa sede do absoluto, essa nostalgia metafísica, assola ainda
mais brutalmente Domenico, o eremita meio-louco, meio-sábio que Andrei encontra
no curso das suas pesquisas. Enquanto Andrei enterra silenciosamente o seu
sofrimento, passeando-se num país que o entorpece mais do que o encanta,
Domenico grita aos quatro ventos a sua angústia. Pendurado na estátua de Marco
Aurélio na escadaria do Capitólio em Roma, arenga os ouvintes, alertando-os
contra a excessiva vaidade da sociedade materialista, exortando-os a
reencontrarem esse momento da História em que nos desviámos do caminho justo,
antes de ele mesmo se imolar pelo fogo. Tal como Pierrot Le Fou, que se suicida
com dinamite a fim de gozar a Eternidade, curará as suas dores abdicando da
vida. Será a morte o único modo de acalmar a nossa alma ? Duvide-se; com
efeito, se para Tarkovski a vida sem fé é um inferno, a morte não é a solução.
Na atroz agonia das chamas, ao som do "Hino à Alegria" de Beethoven,
num fracasso monumental, Domenico não encontra repouso nem paz. Isso, sabe-o
Andrei. Numa longa sequência hipnotizante - e uma das mais belas sequências
cinematográficas de todos os tempos - vai atravessar a longa piscina dos banhos
com uma vela acesa, tentando proteger a frágil luz da sua crença contra todos
os ventos do mundo. Quando falha, nós falhamos com ele. Quando consegue, é toda
a Humanidade que se redime. Tal como Sísifo, confere sentido aí, onde só havia
absurdo.
Tal como a sua crença, o cinema de Takovski é um cinema
extraordinariamente exigente. Não se vai até ele sem um acto inicial de
despojamento. Os seus filmes abrem-se sobre as nossas cabeças como catedrais, e
todo o supérfluo faria figura de sacrílego. E, sobretudo, é uma arte poética,
feita de uma sensualidade quase palpável: a água, omnipresente, deslava as
cores da película; o fogo acaricia a obscuridade, mais do que a desvanece; a
brisa acaricia as velhas pedras; a erva, verde como a esperança, verde como o
desgosto e longa como a cabeleira das mulheres, nada entre a Terra e o Céu, a
sombra e a luz - em suma, a Natureza ela mesma vacila, bela como uma promessa
ou lúgubre como o Nada. É desse modo que o filme balança entre a madrugada e o
crepúsculo, acordando com o orvalho ou agonizando sob a chuva. Ao caos da
realidade, Tarkovski opõe a ordem dos poemas, a absoluta beleza do reencontro,
do recentramento para que aponta a inscrição na parede da casa de Domenico
invadida pela chuva: 1+1=1. E, é claro, a eternidade de um homem e de uma
mulher que, quando falam, não expressam outra coisa senão aquilo que
sentem um pelo outro.
FECHA(R) OS OLHOS
1. Durante muitos anos Manuel S. Fonseca assinou
uma coluna no Expresso intitulada "O Cinema dá o que a Vida Tira".
Nela, o autor, com a sua verve característica, explorava o modo como o cinema,
de certa maneira, compensa esse lado obscuro da vida, apostado em frustrar as
expectativas, desejos e desígnios do ser humano, ou seja, como compensa,
através da ilusão, do artifício do sonho (a famosa "matéria de que os
sonhos são feitos"), aquilo que a vida se dedica a transformar em falha,
ausência, carência. Perante "Fechar os Olhos" apetece-me inverter a
fórmula e transformá-la em "A vida dá o que o cinema tira.
Talvez não seja exactamente assim. Porquê
"fechar os olhos" ? Justamente, este título paradoxal remete para uma
constante do cinema de Erice: é preciso fechar os olhos para podermos ver
aquilo que o cinema partilha do visível do quotidiano; fechar os olhos para
podermos ver aquilo que está à nossa frente, para podermos ver e acolher a
estranheza e a diversidade que residem em cada um de nós e a que só fechando os
olhos podemos aceder e compreender o profundo e o insondável da sua profunda e
misteriosa unidade.
2 Os eventuais leitores perdoar-me-ão a
extensão desta citação de André Bazin, que retiro dessa obra fundamental que é
"Qu'est-ce que le cinéma ?", mas a ideia nela contida constitui para
mim uma determinação essencial para compreender o enigma deste filme
assombroso e assombrado. Assim:
Une psychanalyse des arts plastiques pourrait considérer la pratique de l'embaumement comme un fait fondamental de leur genèse. A l'origine de la peinture et de la sculpture, elle trouverait le « complexe » de la momie. La religion égyptienne dirigée tout entière contre la mort, faisait dépendre la survie de la pérennité matérielle du corps. Elle satisfais-ait par là à un besoin fondamental de la psychologie humaine : la défense contre le temps. La mort n'est que la victoire du temps. Fixer artificiellement les apparences charnelles de l'être c'est l'arracher au fleuve de la durée l'arrimer à la vie. Il était naturel de sauver ces apparences dans la réalité même du mort, dans sa chair et dans ses os. La première statue égyptienne, c'est la momie de l'homme tanné et pétrifié dans le nation. Mais les pyramides et le labyrinthe des couloirs n'étaient pas une garantie suffisante contre la violation éventuelle du sépulcre ; il fallait encore prendre d'autres assurances contre le hasard, multiplier les chances de sauvegarde. Aussi plaçait-on près du sarcophage, avec le froment destiné à la nourriture du mort, des statuettes de terre cuite, sortes de momies de rechange, capables de se substituer au corps si celui-ci venait à être détruit. Ainsi se révèle, dans les origines religieuses de la statuaire, sa fonction primordiale sauver l'être par l'apparence. Et -sans doute peut-on tenir pour un autre aspect du même projet, considéré dans sa modalité active, l'ours d'argile criblé de flèches dans la caverne préhistorique, substitut magique, identifié au fauve vivant, pour l'efficacité de la chasse. Il est entendu que l'évolution parallèle de l'art et de la civilisation a dégagé les arts plastiques de ces fonctions magiques (Louis XIV ne se fait pas embaumer : il se contente de son portrait par Lebrun). Mais elle ne pouvait que sublimer à l'usage d'une pensée logique ce besoin incoercible d'exorciser le temps. On ne croit plus à l'identité ontologique du modèle et du portrait, mais on admet que celui-ci nous aide à nous souvenir de celui-là, et donc•, à le sauver d'une seconde mort spirituelle. La fabrication de l'image s'est même libérée de tout utilitarisme anthropocentrique. Il ne s'agit plus de la survie de l'homme, mais plus généralement de la création d'un univers idéal à l'image du réel et doué d'un destin temporel autonome. Quelle vanité que la peinture » si l'on ne décèle pas sous notre admiration absurde le besoin primitif d'avoir raison du temps par la pérennité de la formé ! Si l'histoire des arts plastiques n'est pas seulement celle de leur esthétique mais d'abord de leur psychologie, elle est essentiellementelle de la ressemblance ou, si l'on veut, du réalisme.[...] Dans cette perspective, le cinéma apparaît comme l'achèvement dans le temps de l'objectivité Photographique.Le film ne se contente plus de nous conserver l'objet enrobé dans son instant comme, dans l'ambre, le corps intact des insectes d'une ère révolue, il délivre l'art baroque de sa catalepsie convulsive. Pour la première fois, l'image des choses est aussi celle de leur durée et comme la momie du changement" . André Bazin , Qu'est-ce que le cinéma? pp 10-14
Quem vir este filme de olhos bem abertos, verá que se trata disso mesmo, de arrancar um ser à duracção temporal e negar a vitória da morte, afirmar que não se trata tanto de fixar a aparência do ser, mas, antes de tudo, que o ser não se deixa ficar na imagem fixa que uma vez foi registada e que perdura na relação. E a memória é o único antídoto contra a rigidez da fixação e a vitória da morte. Aliás, aqueles que estão familiarizados com o portentoso cinema de Victor Erice, reconhecerão que no seu centro está o poder da memória e a sua capacidade de tecer e reter laços, as ausências que ela preenche ou cruza. De ausências se trata: do actor Julio Arenas (o fabuloso José Coronado), dos filmes que Erice não pôde realizar (a segunda parte de "El Sur", a adaptação ao cinema de "El Embrujo de Shanghai" de Juan Marsé, a da filha perdida do realizador, perdida em Xangai e que ele quer rever antes de morrer, a do filme dentro filme "La Mirada del Adiós", tantas e tantas ausências e perdas), tantas referências a tudo o que se perdeu no tempo. E a maravilhosa e misteriosa arte de Erice consiste nesse entrecruzar dos tempos (e das perdas), com uma absoluta indiferença pelo respeito por cronologias; o presente ressoa contínua e anacronicamente, ou seja, através do tempo. Na primeira parte, que decorre em Madrid, sucedem-se os sítios frios e algo inóspitos (do Prado, por exemplo, só vemos a entrada e a cafetaria, e toda a graça parece ter desertado de um mundo de onde o cinema está ausente, a um ponto que "ciudad del cine" é o nome de uma paragem suburbana que conduz a um estúdio de televisão. Na segunda parte, que decorre na Andaluzia, o mundo parece mais habitável e harmonioso, e justamente uma das dimensões mais exaltantes da diégese do filme, é a descoberta de que nesses espaços mais amigáveis e quentes é possível compreender aquilo em que a amizade se transformou depois de passar pelo crivo da memória. Esta, é a memória dos amados - um amigo perdido, uma mulher outrora amada, um filho morto - que se partilha ou se apaga e dos quais as fotografias, filmes e os objectos são os signos visíveis. Por isso falava eu antes na partilha da visibilidade do mundo, a tal que só é apreensível de olhos fechados. E também a memória dos corpos e dos gestos, o último reduto onde os amigos ainda se podem reencontrar, negando a amnésia. E a memória mais vasta, ao mesmo tempo mais impalpável e mais partilhável, que impregna todo o filme: as recordações de quadros, filmes, canções que vêm continuamente alimentar o presente. E também tema da espera: esperar a vida inteira por um momento perfeito em que tudo se recentre e tudo ganhe sentido ou, se se quiser, unidade.
Essencial também para a compreensão desta obra-prima é a convicção de que ela se alimenta sempre da memória do cinema e, em particular, do cinema de Victor Erice; as memórias íntimas que reaparecem à superfície para serem partilhadas. Recordar que a amizade pode ser vivida como Howard Hawks a fixou em "Rio Bravo" (que Erice directamente cita). Se foi uma vez assim, poderá ser sempre assim. E aqui vos remeto para a citação de Bazin.
E deixem que vos diga que me lembro de poucas sequências tão comoventes como aquela em que Ana ( a magnífica e surpreeendente Ana Torrent, numa brilhantíssima passagem de um grande plano a um plano aproximado, que se demora no rosto da actriz e em que a personagem se lembra do tempo em que acreditava nos Reis Magos e em que a menina de "O Espírito da Colmeia" aflora no rosto da mulher madura que ele agora é, murmurando "Sou Ana"... Perante esse plano de todas as emoções, o nosso coração colapsa. Pelo menos, o meu colapsou e fez-me voltar à memória a tese de André malraux segundo a qual a arte seria um anti-destino. Neste caso, um anti-destino, se o destino fôr a amnésia e o esquecimento do ser. e fez-me lembrar também o quanto a imagem cinematográfica é um olhar o outro, olhar a alteridade como uma outra identidade: olhos que se baixam, se fixam, cruzam e que tudo isso acontece na duração e que cada plano é esse instante preciso em que se passa de um a outro.
Sobretudo, a arte magistral deste cineasta secreto e íntimo que é Victor Erice consiste na subtileza com que nos faz pensar que o final de cada cena é, à sua maneira, um ADEUS, o momento de uma história sobre a qual os nossos olhos se fecham. E também, como diz Miguel ao seu amigo Max, é preciso envelhecer sem medo e sem esperança.
No fundo, de olhos abertos ou fechados, este filme sem paralelo, sem medo e sem esperança, que parte do inacabado e da ausência, não para os preencher, mas para os tornar motor de uma busca incessante em que se trata do reencontro (consigo mesmo e com o outro), reunir(se), rememorar incessantemente. O que significa que nenhum filme, nenhuma amizade, nenhuma vida, se completam e se acabam definitivamente. Não sabemos dizer se isso é bom ou mau, se a incompletude é beleza ou terror. Nem isso importa. A Erice importa sublinhar que é preciso viver cada fim, cada adeus, com a plenitude dos recomeços e das promessas que cada recomeço encerra. Saibamos todos envelhecer com essa sabedoria.