Dedicado a Itzíar, a mulher que inventou um escritor
1 + 1 = 1
A nostalgia do poeta mergulha-o numa melancolia tão profunda,
num langor tão glauco, numa amargura tão dolorosa que o sol lhe parece estar
sempre velado. Essa nostalgia embebe a luz do filme, penetra as paisagens e
estende sobre as personagens um manto húmido de fria desolação. É natural que
assim seja; em "Nostalghia", Andrei Tarkovski exorciza a sua própria
história, o seu próprio desgosto. Com efeito, tal como a personagem principal
(chamado, relembremos, Andrei) o poeta que passa por Itália a fim de recolher
informações sobre um músico russo do século XVIII, Tarkovski é um exilado.
Tendo que se afastar do seu país natal para assegurar a sobrevivência e
continuidade da sua obra, não cessa de viver o desgosto desse exílio, de ir
beber numa fonte desaparecida na sua memória, de implorar o passado; uma tarefa
ainda mais excruciante uma vez que a sua arte se apoia na inspiração da cultura
do país do qual teve que fugir.
Mas, fiel ao aforismo de Saint-Exupéry que afirma que a
nostalgia é o desejo de não se sabe o quê, o mal de que sofre o autor não se
resume à separação geográfica, por muito dilacerante que ela seja; é também, é
sobretudo espiritual .Porque o que desejam os dois Andrei, é de reintegrarem
não a casa paterna, nem o seio materno, mas antes esse Paraíso perdido de uma
fé cega. Aquilo que procuram, é regressar muito atrás, ao tempo em que
Deus e o Homem viviam lado ao lado, ao abrigo da chuva e do cinismo.
Essa sede do absoluto, essa nostalgia metafísica, assola ainda
mais brutalmente Domenico, o eremita meio-louco, meio-sábio que Andrei encontra
no curso das suas pesquisas. Enquanto Andrei enterra silenciosamente o seu
sofrimento, passeando-se num país que o entorpece mais do que o encanta,
Domenico grita aos quatro ventos a sua angústia. Pendurado na estátua de Marco
Aurélio na escadaria do Capitólio em Roma, arenga os ouvintes, alertando-os
contra a excessiva vaidade da sociedade materialista, exortando-os a
reencontrarem esse momento da História em que nos desviámos do caminho justo,
antes de ele mesmo se imolar pelo fogo. Tal como Pierrot Le Fou, que se suicida
com dinamite a fim de gozar a Eternidade, curará as suas dores abdicando da
vida. Será a morte o único modo de acalmar a nossa alma ? Duvide-se; com
efeito, se para Tarkovski a vida sem fé é um inferno, a morte não é a solução.
Na atroz agonia das chamas, ao som do "Hino à Alegria" de Beethoven,
num fracasso monumental, Domenico não encontra repouso nem paz. Isso, sabe-o
Andrei. Numa longa sequência hipnotizante - e uma das mais belas sequências
cinematográficas de todos os tempos - vai atravessar a longa piscina dos banhos
com uma vela acesa, tentando proteger a frágil luz da sua crença contra todos
os ventos do mundo. Quando falha, nós falhamos com ele. Quando consegue, é toda
a Humanidade que se redime. Tal como Sísifo, confere sentido aí, onde só havia
absurdo.
Tal como a sua crença, o cinema de Takovski é um cinema
extraordinariamente exigente. Não se vai até ele sem um acto inicial de
despojamento. Os seus filmes abrem-se sobre as nossas cabeças como catedrais, e
todo o supérfluo faria figura de sacrílego. E, sobretudo, é uma arte poética,
feita de uma sensualidade quase palpável: a água, omnipresente, deslava as
cores da película; o fogo acaricia a obscuridade, mais do que a desvanece; a
brisa acaricia as velhas pedras; a erva, verde como a esperança, verde como o
desgosto e longa como a cabeleira das mulheres, nada entre a Terra e o Céu, a
sombra e a luz - em suma, a Natureza ela mesma vacila, bela como uma promessa
ou lúgubre como o Nada. É desse modo que o filme balança entre a madrugada e o
crepúsculo, acordando com o orvalho ou agonizando sob a chuva. Ao caos da
realidade, Tarkovski opõe a ordem dos poemas, a absoluta beleza do reencontro,
do recentramento para que aponta a inscrição na parede da casa de Domenico
invadida pela chuva: 1+1=1. E, é claro, a eternidade de um homem e de uma
mulher que, quando falam, não expressam outra coisa senão aquilo que
sentem um pelo outro.
2 comentários:
Belo texto
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