O homem caminhou uma boa parte do dia debaixo de um Sol
permanente e impiedoso. A última boleia tinha-o deixado à beira da estrada solitária,
pouco depois do meio-dia. Estava cansado e tinha sede. Tinha ainda uns bons
cinco, seis quilómetros pela frente. O caminho recordado apresentava
incertezas, espaços vazios abertos pelo passar dos anos. Podia estar mais perto
ou mais longe do lugar, podia até ter escolhido a estrada errada. Assim que
avistou o mar recuperou o ânimo. Seria a partir daí a referência maior até
chegar à casa. Paralelo, ao longe, embora nunca fora de vista. Era assim que
lembrava as manhãs de Verão quando acordava no andar de cima embalado pelos
cheiros do café e das torradas do pequeno-almoço dos avós. De uma forma ou de
outra acabaria por lá chegar. Acreditava nos sistemas de navegação universais
que atraem os corpos através do pensamento que emanam, na familiaridade da lei
da atracção, em suma, tinha a certeza que chegaria onde queria chegar porque
assim tinha de ser. As botas cobertas de pó tinham mudado de cor. A mochila
puxava-lhe as costas, puxava-lhe os ombros, puxava-o para dentro da terra
através de uma espécie de peso que ia aumentando. Pouco antes do final da tarde
uma brisa ligeira veio aliviar por algum tempo aquela canseira geral que tomava
conta dele. Já devia estar perto. Finalmente ao longe um caminho com ciprestes
altos e uns arbustos dispersos nas margens. Plantas teimosas que resistiram e
que, ao fazê-lo, lhe apontavam a direcção do que procurava. E não se tinha
enganado. No fim daquele caminho abria-se o edifício de dois pisos meio
amarelado meio acastanhado, meio descascado de pintura. Uma casa desabitada com
partes penduradas, pedaços de telhas quebradas no chão, janelas sem vidros, portas
entreabertas de forma permanente, ervas daninhas à solta na entrada. O alpendre
da entrada era uma estrutura incompleta e desdentada de tábuas soltas com ervas
a crescer pelo meio delas. Os intermináveis
lanches no Verão eram ali, entre fatias de pão caseiro barradas com
manteiga e cachos de uvas. Tinha chegado
finalmente. Esquecendo por instantes o cansaço continuou ainda mais
determinado. Contornou a casa pelo lado poente e atravessou o espaço onde ficava
a casota do cão e o estacionamento do barco do avô (depois o barco do tio, e
durante alguns anos a teimosia dele em Setembro de ir às docas da cidade que
ficava para Norte em busca de pechinchas de barcos para vender que os donos já
não queriam) no Inverno. Do outro lado da casa o que restava do jardim e, em
frente, ao longe, o mar. Entrou pela
porta da cozinha muito lentamente como quem visita um dormitório a meio da
noite sem querer acordar ninguém. Só o vento e alguma madeira rangente lhe
disseram alguma coisa. Depois da cozinha a sala, os almoços e jantares, a
família toda reunida o ruído da boa disposição, o princípio da idade adulta e a
sensação de que se viveria para sempre…que todos viveriam para sempre. O lugar
do móvel da arrumação da louça e ao lado a porta para o pátio interior. Se bem
se recordava havia lá dentro um poço ao centro. Talvez ainda tivesse água,
talvez ainda se conseguisse ver o pôr do Sol do terraço, talvez houvesse ainda
um quarto para poder passar a noite. Abriu a porta e reconheceu o poço e o
páteo, e o céu por cima da cabeça iluminado por um Solde fim de tarde amarelo
torrado. A mochila foi escorregando pelas costas abaixo até ao chão. Espreitou
para dentro do poço e constatou que ainda tinha água. Um balde tosco e
ferrugento agarrado a uma corda quer se ia desfazendo foi até lá abaixo. Quando
içou o balde quase cheio sentiu a frescura da água. Levou-a à boca e percebeu
rapidamente que era salobra por isso não bebeu muito. Lavou a cara e despejou o
resto pela cabeça abaixo. Depois sentou-se ajeitando a mochila para servir de
almofada. Pousou a cabeça e ficou a olhar para o céu satisfeito em ter
conseguido chegar ali, ao lugar onde mais de metade das suas recordações se
encontravam enquadradas. A casa desfazia-se aos poucos e ele não tinha
capacidade para a poder recuperar, a família ia desaparecendo, uma geração
atrás da outra e, ele próprio já caminhava a passos largos na estrada do seu
último terço de existência. Sentia-se como a casa, a desfazer-se lentamente em
frente ao mar dia após dia, ano após ano. Sem conseguir tomar uma decisão
vagueava entre o passado e o presente certo de que em algum tempo não muito
longínquo tudo iria desparecer, até ele e as suas indecisões, as suas memórias,
a sua vontade. Com tudo isto a girar dentro dele acabou por se deixar adormecer.
Estava tão cansado que não se preocupou em ficar ali, ao relento, entregue ao
silêncio e à solidão. Algum tempo depois caiu a noite e tudo ficou escuro à
excepção das estrelas no céu.
A certa altura julgou ouvir o ranger de uma porta que abria
e se voltava a fechar. Um ruído longínquo que atribuiu ao vento, não fazendo
caso disso. Depois a mesma sequência de sons. Três, quatro vezes. Mesmo assim
não ligou e enroscou-se melhor para continuar a dormir. Algum tempo depois teve
a sensação de estar acompanhado, a presença de mais do que uma pessoa perto
dele. Abriu os olhos e ficou assustado com o que viu. Quatro vultos de pé
cercavam o poço virados para dentro sem se mexerem. Levantou-se bruscamente e observou-os.
Permaneciam nas suas posições, quietos a olhar em frente, indiferentes à sua
presença. Numa segunda observação percebeu serem homens de diferentes idades e
ao fim de mais algum tempo deu conta que todos eles eram ele próprio em
diferentes tempos da sua existência. Um rapaz com cerca de dez anos, um jovem
de vinte, um adulto de quarenta e, ao seu lado esquerdo um homem bastante
idoso. E todos tinham o seu rosto. Ocupou o espaço vazio que faltava e
deixou-se ficar ali olhando para um e para outro sem nada dizer. Devia ser um
sonho por muito estranho que parecesse. Só que nunca tinha tido nenhum parecido
com aquela situação. A certa altura o idoso olhou para ele e sorriu. Depois
falou como se estivesse à conversa com um amigo de longa data.
Tenho oitenta e quatro anos e ainda consigo ir com as mãos
até ao chão sem dobrar as pernas.
E logo de seguida dobrou o corpo pela cintura abrindo as
mãos até tocar o chão tal como havia dito. Levantou-se lentamente.
Nada mal, hã?
O homem sorriu e comentou:
Com essa idade isso é muito bom.
O velho abriu a expressão das sobrancelhas enquanto sacudia
as mãos. Depois apontou para os outros um por um, por ordem crescente de idade.
Depois para o homem. Por fim para ele.
Dali até aqui e daqui até sabe-se lá onde. Não te preocupes.
De uma maneira ou de outra tudo se resolve ou nada fica por resolver. Não é
grave. Nada é grave e tudo acaba por passar. Por isso, não te preocupes. Por
cada idade nova há um fantasma do passado atrás de nós. É apenas uma pele que
vai acabando por cair. Faz aquilo que tiveres que fazer e segue o teu caminho.
Nós cá estaremos para te ajudar.
Artur