Caderneta de Cromos #12: Arnaldo Mesquita
De À pala de Walsh · Em 15 de Maio, 2022Caderneta de Cromos é um questionário breve, impertinente quanto baste, mais ou menos imbecil, sobre o mundo do cinema, em geral, e sobre o mundo em toda a sua inteireza, em particular. Arnaldo Mesquita trabalha na Biblioteca da Cinemateca Portuguesa, local obrigatório para qualquer um que se queira armar em bom, isto é, em estudante de cinema (toda a gente sabe como isso serve de livre-trânsito para se entrar, à pala, nas melhores boates do país). Indexando todo o tipo de livros, artigos e outros tantos documentos alusivos à Arte Sétima, o Arnaldo – que nalgumas paragens é conhecido como “o bot Arnaldo” – é dotado de uma altíssima inteligência natural, produzindo “tiradas” frescas sobre o mais variado leque de assuntos. Tem sempre a bateria carregada, alimentando-se de altas leituras filosóficas e espirituosas conversas entre amigos. Descarrega a fúria contra os filisteus – e a situação de algumas bancadas parlamentares – nos seus tempos livres, praticando Aikido ou, como dizem os cinéfilos, “armando-se em Steven Seagal”. Nem de propósito, Seagal é um dos autores mais citados ao longo deste questionário que começa com cinema underground, extremamente selecto, assinado por realizadores estranhíssimos, e termina no seu zarolho favorito – máxima ousadia, máximo choque: não é o nosso santo padroeiro. Cita-se e enaltece-se “o exemplo de Seagal”, mas também se fala de Arthur Schopenhauer, António-Pedro Vasconcelos, Elem Klimov, Will Smith e, outro actor conhecido, Volodymyr Zelenskyy.
1. Em conversas casuais no teu gabinete na Cinemateca, já te ouvimos falar de Wittgenstein, Benjamin, Filomena Molder… Mas depois acontece sempre a mesma coisa, que, desculpa lá que te diga, é super chata: vamos ao IMDB e não encontramos os seus filmes. Em que fórum da dark web descobriste e descarregaste a obra destes realizadores?
Tenho uma imensa admiração pelo labor crítico, esforço teórico e elaboração metafísico-conceptual de todos os participantes desse farol da inteligência que se denomina “À Pala de Walsh”. Se se chamasse “A Pala de Walsh” tal não diminuiria em nada a supracitada admiração. Reconheço que os também supracitados participantes têm a qualidade dos seus defeitos, ou os defeitos da sua qualidade (a ordem dos factores é irrelevante), a principal dos quais (defeitos e qualidades) é a juventude (não se preocupem: como alguém disse, é uma doença que passa depressa) e o seu cortejo de uma insaciável curiosidade; querem saber tudo, conhecer tudo, vasculhar até aos íntimos recantos uma realidade que, para além de ter fraca qualidade, tem o supremo e irritante defeito de estar sempre a mudar. Mais uma vez, não se preocupem; a maturidade há-de ensinar-vos que, afinal, não há nada para conhecer.
Concretamente, esses rapazes e essa rapariga não querem ser conhecidos, estão-se nas tintas para o reconhecimento e exigem o maior secretismo aos (raros) admiradores dos seus filmes, sob pena de desaparecerem num qualquer limbo e de não voltarem ao cinema. Todos eles vêem o cinema como “coisa mental”, “forma que pensa” e outras parvoíces do género, o que não abona nada a favor da sua sanidade mental. De qualquer modo, a questão é essa: secretismo absoluto, acessíveis apenas a um restrito grupo de iniciados, pessoas dispostas a viver e a morrer pelo supremo privilégio de terem acesso a essas obras rarefeitas.
2. Sei-te praticante de artes marciais (ajuda-me aí: qual é mesmo?). Nesse sentido, impõe-se saber a tua opinião sobre o resultado final, e principais incidências, dos seguintes embates: Bruce Lee contra Charles Chaplin; Tom Cruise contra Douglas Fairbanks; Demi Moore contra Will Smith; André Ventura contra João Miguel Tavares.
A arte marcial que eu pratico é o Aikido (que alguns engraçadistas militantes designam como Aikidói – nunca na minha presença, é claro). Quanto aos vaticínios, são os seguintes: Charles Chaplin vence Bruce Lee sem apelo nem agravo; o chinês não pode competir com o jogo de pés, nem com as expressões faciais do comediante; a não ser que Tom Cruise esmague Fairbanks com um míssil disparado do seu F-18, este último vence; na sua altura a coisa era mais artesanal, tudo feito à mão, o que lhe confere maior capacidade de adaptação e habilidades com que o moderno nem sonha; Demi Moore, depois de ter a primeira e única mulher a conseguir concluir o curso dos SEALS, vence Will Smith sem lhe dar hipótese (já se Jada fosse ela mesma combater, em vez de mandar o marido fazer o trabalho sujo por ela, não arrisco um resultado); André Ventura e João Miguel Tavares nunca combateriam entre si, nem com ninguém. Uma coisa é arremessar lama e coisas podres nos jornais e no Parlamento. Outra, muito diferente, é enfrentar fisicamente outrem; os cãezinhos amestrados, para além de ressoarem a voz dos donos, nunca se atrevem a morder verdadeiramente.
3. Por trabalhares na Biblioteca da Cinemateca há uns valentes anos (quantos mesmo?) e tanta obra teres aí indexado (quantas mesmo?), deves ser das pessoas do país que mais pestanas queimou a ler livros sobre história, crítica e teoria do cinema. Apelando à tua memória relativamente aos tantos artigos e livros que indexaste, gostávamos de saber: um livro que te marcou até ao dia de hoje, passando a ser “obra de cabeceira” (daquelas que “espetas” no primeiro estudante de cinema que te apareça à frente) e um artigo que te surpreendeu pelo seu máximo arrojo (não vale citar textos do APV na Cinéfilo em que o autor de A Bela e o Paparazzo (2010) põe nos píncaros Godard, Oliveira ou Glauber Rocha).
Um esclarecimento preambular: na realidade, a minha reputação assenta num falso pressuposto, que passo a explicar: há uns anos, criei um bot – também chamado Arnaldo (narcisismo oblige) que leu quase tudo e fez o restante trabalho por mim. Assim, limitei-me a representar um papel, que me assentou bem, sem o respectivo mérito. Como estamos numa sociedade que valoriza a designada “meritocracia”, peço que não revelem a ninguém este segredo. Afinal, não me convém ser agora desmascarado, colocando em risco a minha iminente reforma e a possibilidade de passar o resto dos meus dias com os pés dentro de água, a ver crescer a relva e a contar os dias que faltam para a reforma da reforma.
Almoço periodicamente com a minha oftalmologista e com uns advogados pós-modernos que me aconselharam a não responder a este inquérito. No entanto, resolvi responder pela razão contrária àquela que agora adianto: quando fiz cinquenta anos, percebi que não somos obrigados a aceder a todos os pedidos que nos fazem, apenas porque são feitos de uma forma amável e porque as pessoas que os formulam são também elas amáveis e nos são agradáveis e por quem, de resto, temos grande estima e consideração (caso dos palianos-walshianos). Mas poderemos dizer não e continuar a ser nós próprios; podemos recusar e continuar a achar soberba a imagem que vemos no espelho quando nos levantamos? Creio que não, mesmo que a recusa seja amável, mesmo que imbuída de uma racionalidade impecável. Por isso, e como dizia Richard Burton no Bitter Victory (Cruel Vitória, 1957) de Nicholas Ray: “I always contradict myself”, aqui estou a contradizer-me alegre e com a inconsciência própria da senectude. E respondo: o livro é Os Filmes de Culto. Dá imenso jeito em festas regadas a álcool partilhar os nossos guilty pleasures com outros embriagados que, de qualquer modo, não sabem do que estão falar (como eu próprio) ou com mulheres interessantes que não falam do que sabem; o artigo, esse, é sem dúvida, aquele em que François Truffaut resolve o mistério do actor que representa Nosferatu no filme de Murnau; ficamos a saber que é o próprio Nosferatu que faz de Nosferatu.
4. Tens escrito amiúde sobre autênticas pérolas disponíveis no acervo da Biblioteca da Cinemateca, no âmbito da rubrica do site da Cinemateca Portuguesa, Textos & Imagens. A última entrada, a 59ª, é dedicada à obra de referência A Audiovisão de Michel Chion. Está tudo bem, mas… muito nos espanta que ainda não tenhas dedicado um número (ou mais do que um número, diga-se) a essa magnum opus sobre ontologia da imagem cinematográfica intitulada Seagalogy (Updated and Expanded Edition): A Study of the Ass-Kicking Films of Steven Seagal de Vern. Andas distraído ou…?
Esta resposta é fácil. Ainda não escrevi sobre esse livro, porque tenho receio de vir a ser eu próprio vítima do esplendoroso modo como Segal faz uso das suas capacidades para a pancadaria sem limites e sem contraditório (diga-se em abono da verdade que Segal, antes de enveredar pela nobre arte da pancadaria a torto e a direito, foi um grande praticante e mestre de Aikido e portanto sei do que falo). Mas não fica esquecido: escreverei um dia destes. Sob pseudónimo, é claro.
5. Já agora: qual foi o “texto & imagem” que te deu mais prazer escrever e qual aquele que te deu mais trabalho, a ponto de desejares fazer uma gravata ao seu autor(a)?
O que me deu mais prazer foi o texto sobre os cartazes das terças-feiras clássicas do JUBA. Como não existe documentação sobre o tema e, consequentemente, ninguém sabe nada sobre ele, pude inventar e aldrabar à vontadinha, sem ninguém para me contradizer nem vir aborrecer-me com insinuações, perguntas e sugestões sobre o modo de melhorar o texto e torná-lo uma coisa decente e apresentável em sociedade. O que me deu mais trabalho foi o primeiro, que se debruçava sobre os Cahiers du Cinéma, e é fácil perceber a razão: está tudo dito sobre os referidos cadernos e toda a gente é neles especialista. Inventar coisas novas foi muito difícil e custoso e acho que falhou redondamente. Mas, eu sou um admirador leal de Samuel Beckett e lembro-me muitas vezes de uma frase de À Espera de Godot (estive quase a escrever À Espera de Godard…): “Falhar, falhar cada vez melhor”.
6. Quem te conhece sabe que és uma autêntica killing machine ao nível das citações filosóficas. Pedia-te então para dares o teu máximo e associares a melhor citação possível, que rapidamente te ocorra, aos seguintes nomes do showbiz internacional: Jean-Luc Godard, Yasujiro Ozu, Apichatpong Weerasethakul, Volodymyr Zelenskyy e – agora um nome americano, porque a parada está demasiado alta em matéria de “world cinema” – o documentarista Steve Bannon.
Para Jean-Luc Godard, “É melhor estar errado com Platão do que certo com todos os outros” (Santo Agostinho); para Ozu, “O ser é e o não ser não é” (Parménides); para o tailandês, “O desordenado amor por si mesmo é a causa de todos os males” (S. Tomás de Aquino); para Zelensky, “A liberdade dos lobos significa a chacina dos cordeiros” (Isaiah Berlin) e, para Steve Bannon, “O homem não é nada para além daquilo que a educação faz dele” (I. Kant)
7. A propósito de citações, como disse Nietzche: “O que é bom é leve.” Tens seguido a carreira de António-Pedro Vasconcelos?
Tenho. E para ele também uma citação: “Existe um único erro inato: o acreditarmos que nascemos para sermos felizes” (Schopenhauer).
8. Tenho-te como um cidadão engajado, politicamente esclarecido. Vivemos tempos turbulentos politicamente, pelo que te perguntava: aquela chapadona no Chris Rock foi bem dada ou corrigias alguma coisa ali no movimento de ancas do Smith?
Corrigia, sim senhor. Como praticante de Aikido, arte do equilíbrio e da energia, corrigia o evidente desequilíbrio provocado pelo balancear das ancas numa direcção. Se em vez do Chris Rock, fosse Steven Segal, outro galo cantaria e Will Smith teria sido projectado para o colo da sua simpática esposa. Como espectador do teatro do mundo, diria que até mesmo os queques (refiro-me aos bolos e não aos habitantes de Cascais, da Lapa e de outros sítios semelhantes) podem ser responsáveis pela ruína de toda uma vida, sem que a substância em si mesma possa ser culpabilizada. A heroína, por exemplo, sendo mais viciante, é muito mais inocente e capaz de dar mais alegria aos praticantes (refiro-me à substância opiácea e não à condição de certas mulheres que, tal Joana d’Arc ou a Padeira de Aljubarrota decidem repor as coisas nos seus termos e colocar a rapaziada no devido sítio). A propósito, quero esclarecer que sou 100% feminista e que a minha heroína (agora sim, uma mulher e não a tal substância) é a primeira feminista da história: Bettina von Arnheim ou Bettina Brentano.
9. Sei-te um fã de Elem Klimov, o realizador de Idi i smotri (Vem e Vê, 1985), obra que versa sobre os horrores perpetrados pelo exército alemão durante a Operação Especial de 39-45. Como encaras a possibilidade bem real de a qualquer altura tudo o que for russo, filmes, livros, cartazes, tudo!, ser alvo da mais imediata e terrível censura?
Em princípio, sou contra. Mas, na realidade estou-me nas tintas. Podem proibir o que quiserem: já cá cantam os DVDs e os livros e, portanto, o nível sancionatório não me atinge. É egoísta e egocêntrico, eu sei, mas não me importo. Os prazeres privados estão assegurados e ver Proshchanie (Adeus a Matiora, 1983) no conforto da minha sala reforça-me na convicção de que os ucranianos vão vencer. São grandes leitores de Dostoievski, Tolstoi, Turguenieve, Lermontov, Gogol e quejandos, mas sobretudo de Soljienitsine e sabem o que os espera se não forem capazes de colocar os mujiques em sentido rapidamente. A memória de Ivan O Terrível (o próprio e não o filme de Eisenstein) não os deixa descansados, nem os restantes fantasmas (não os cinematográficos, mas os outros) remete-os aridamente para o deserto das últimas hipóteses. Ou, como diria Ian McEwan, para a clínica nocturna do sofrimento catalogado.
10. Última questão, já que citaste Nicholas Ray e tens falado da nossa pala: era o teu zarolho favorito ou houve outros?
Nicholas Ray era o meu zarolho preferido, logo seguido de Walsh (não ficaria bem comigo próprio se não acrescentasse esse grande vulto do cinema e da oftalmologia falhada). Também poderia acrescentar Fritz Lang, mas as más-línguas dizem que era um zarolho falso e que só usava a pala para acrescentar charme ao seu charme natural. Outros dizem que foi o resultado de um encontro fatal entre Thea von Harbou (a sua legítima) e o binómio Lang/Brigitte Helm (estes dois num leito) que lhe deu cabo da visão estereoscópica. O Marechal António de Spínola não conta: o monóculo era apenas um adereço pseudo-aristocrático.
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