Nono dia do segundo mês de dois mil e vinte e um.
Um cão encontrou-me para eu o abraçar.
Mesmo estando numa ilha que só contou menos de meia dúzia de casos, até aqui os abraços se condicionam ao mínimo.
Os beijos antes considerados em excesso, e até os apertos de mão que eram coisa dos países mais a norte, deixaram de fazer sentido e estão na lista dos maiores propagadores do vírus.
Eu encontrei o cão para não me descuidar dos afetos, dos passeios, das gargalhadas, da liberdade de arfar contra o vento sem medo, e sobretudo para resgatar pelo menos um animal do canil local. E porque é justo que, tendo tempo e espaço, o dê a quem mais precise.
A doçura deste cão emana de cada pelo, dos olhos cor de canela e mel, na pata que me dá e a minha mão aperta. Vejo homens feitos, mulheres de idade chegada ao século completo, e crianças que sempre tiveram medo de cães, a agarrarem-se a ele com um abraço já quase esquecido.
A admiração nos olhos deles é surpreendente. A alegria é contagiante. Às vezes até me agradecem que deixe que o abracem.
A minha vizinha de 1926 deu-lhe um bocadinho de pão, contou-me, e depois convidou-o para entrar em casa. Ele aceitou o pão, mas olhou em volta a ver onde eu estava. Não me viu e não entrou. Sentou-se aos pés dela para receber as festas que ela adora dar-lhe
Tudo o que lhe dou tenho recebido em dobro. Aliás, em toda a minha vida tem sido assim. Tive uma profissão ao serviço de outros e foi algo que me ensinou muitíssimo.
A recompensa imediata foi a de conhecer gente magnífica e as partes do planeta que quis. As que não quis não me fazem falta (neste momento). Tenho muito para viajar aqui dentro deste torrão de lava antiga.
A minha próxima meta é ensinar o Lucky a estar à vontade na água, já que a metade Terranova está adormecida.
Ontem molhou as patas da frente na piscina, e ficou a
ver-me nadar com um olhar curioso. Os ensinamentos da Sara da Diogo Cão estão a surtir grandes efeitos apesar de ter perdido o clicker. A recompensa tem sido mais festas do que rodelas de salsicha e vejo que até gosta mais.
Eu que nunca tive pachorra para estar sempre aos abraços, agora tenho um cão que os pede e me obriga a desatar os nós do afeto. Está comigo há pouco mais de dois meses, foi abandonado duas vezes, carrega traumas que nem sonho, e no entanto é um doce. Temos muito para aprender um com o outro, eu sobretudo.
Os dias desenrolam-se como uma meada infinita todos cheios de descobertas recheadas de pequenas felicidades e tristezas. Compacto-as em lugares diferentes e às vezes até as misturo. Divido-me a reconstruir escadas de entradas centenárias,a fazer canteiros de raiz, a carregar turfa de um lado para o outro, a resgatar troncos e a fazer a manutenção do espaço que me resguarda.
Até encontrei o clicker que julgava perdido. Às vezes até me encontro ao espelho, no reflexo duma superfície aquosa, num vidro acabado de polir. O céu cinzento regressou sem nunca ter partido e deixa-me a opção de colorir da cor que me apetecer. É o livre arbítrio a agir.
Elsa Bettencourt,
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