Vigésimo sexto dia do segundo mês de dois mil e vinte e um.
Piada local, quando me deparo com os vizinhos destes caminhos e canadas, é que estou farta de sol e nunca me esqueço do protetor solar. O facto é que, desde que cheguei, as sardas voltaram ao lugar onde estavam , e os pensos rápidos vão alternando nos dedos da mão direita. Imagino que este seja um inverno de teste para locais longe do estado de emergência. Talvez um castigo, talvez uma prova, ou somente um acaso. Nestes tempos que correm, mascarados e nebulosos, estar na ilha mãe que por sinal é a ilha que pariu o meu pai e todos os nossos antepassados até ao décimo quinto tio avô Velho, é a maior benção
Da nossa família, num lugar em que somos todos parentes, os mais ligados à terra são os Figueiredos e os Falcões. Nunca conheci nenhum muito chegado às artes de marear e quando, ainda miúda, comecei a ir mar adentro, a minha mãe dizia-me que era herança do lado madeirense. Nem vou divagar mais sobre as minhas andanças entre cabos, velames, e tormentas. Outro dia em que esteja com os pés na água salgada e sem ver terra vermelha há pelo menos uma semana. Agora, com quatro meses daqui, o apelo da terra é tão grande que me esqueço de ir ver o mar e de que estou num torrão de noventa e sete quilómetros quadrados no meio dele. O cheiro dos rebentos floridos toma conta de mim como a própria primavera. Com a chuva nas duas mãos e o sol no pensamento, passeio sob a lua com um lobo como sombra. Juntos farejamos a passagem das estações, das matas e das pastagens. A erva molhada, os excrementos bovinos, o intenso aroma doce da respiração das flores adormecidas, o fumo das criptomérias, dos incensos e outras madeiras azóricas que ardem em fornos com promessas de pão quente. Há manhãs em que ele me traz um ovo e o deposita depois do portão, outras em que se refastela a comê-lo deitado qual nababo em pleno Rajastão. E é entre estas meadas de estórias que desfio os dias sem parar senão para o ímpeto da contemplação. Das notícias só o que me contam ou vou lendo por aqui. Aos meus colegas e amigos desejo-lhes força e coragem para as decisões que tomarem. Apesar de estar reformada por uma rasteira do destino, estou aqui porque desenvolvi a arte de aproveitar a festa da vida até ao apanhar da última cana do último foguete. Estou aqui porque dou pouco uso tanto ao indicador como ao dedo médio para o respetivo pirete. Estou aqui porque a dormência não me adormeceu aquilo que é preciso para seguir em frente, alongar-me e desbravar caminho. E estou aqui porque tenho uma médica de família, maravilhosa, que me acompanhou sempre e percebeu que eu estava a ficar deprimida, me receitou o que era preciso para eu me ir equilibrando perante as decisões irreversíveis que o destino tomou por mim, e me fez ver que uma incapacidade não diminui mas pode adicionar, apurar, o melhor que temos. Por isso acordo com chuva e digo que estou farta de sol, até o dia em que estiver farta de chuva.
Elsa Bettencourt
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