domingo, 28 de fevereiro de 2021

A TROCAR AS VOLTAS


 

 

 

Vigésimo sexto dia do segundo mês de dois mil e vinte e um.
Piada local, quando me deparo com os vizinhos destes caminhos e canadas, é que estou farta de sol e nunca me esqueço do protetor solar. O facto é que, desde que cheguei, as sardas voltaram ao lugar onde estavam , e os pensos rápidos vão alternando nos dedos da mão direita. Imagino que este seja um inverno de teste para locais longe do estado de emergência. Talvez um castigo, talvez uma prova, ou somente um acaso. Nestes tempos que correm, mascarados e nebulosos, estar na ilha mãe que por sinal é a ilha que pariu o meu pai e todos os nossos antepassados até ao décimo quinto tio avô Velho, é a maior benção
Da nossa família, num lugar em que somos todos parentes, os mais ligados à terra são os Figueiredos e os Falcões. Nunca conheci nenhum muito chegado às artes de marear e quando, ainda miúda, comecei a ir mar adentro, a minha mãe dizia-me que era herança do lado madeirense. Nem vou divagar mais sobre as minhas andanças entre cabos, velames, e tormentas. Outro dia em que esteja com os pés na água salgada e sem ver terra vermelha há pelo menos uma semana. Agora, com quatro meses daqui, o apelo da terra é tão grande que me esqueço de ir ver o mar e de que estou num torrão de noventa e sete quilómetros quadrados no meio dele. O cheiro dos rebentos floridos toma conta de mim como a própria primavera. Com a chuva nas duas mãos e o sol no pensamento, passeio sob a lua com um lobo como sombra. Juntos farejamos a passagem das estações, das matas e das pastagens. A erva molhada, os excrementos bovinos, o intenso aroma doce da respiração das flores adormecidas, o fumo das criptomérias, dos incensos e outras madeiras azóricas que ardem em fornos com promessas de pão quente. Há manhãs em que ele me traz um ovo e o deposita depois do portão, outras em que se refastela a comê-lo deitado qual nababo em pleno Rajastão. E é entre estas meadas de estórias que desfio os dias sem parar senão para o ímpeto da contemplação. Das notícias só o que me contam ou vou lendo por aqui. Aos meus colegas e amigos desejo-lhes força e coragem para as decisões que tomarem. Apesar de estar reformada por uma rasteira do destino, estou aqui porque desenvolvi a arte de aproveitar a festa da vida até ao apanhar da última cana do último foguete. Estou aqui porque dou pouco uso tanto ao indicador como ao dedo médio para o respetivo pirete. Estou aqui porque a dormência não me adormeceu aquilo que é preciso para seguir em frente, alongar-me e desbravar caminho. E estou aqui porque tenho uma médica de família, maravilhosa, que me acompanhou sempre e percebeu que eu estava a ficar deprimida, me receitou o que era preciso para eu me ir equilibrando perante as decisões irreversíveis que o destino tomou por mim, e me fez ver que uma incapacidade não diminui mas pode adicionar, apurar, o melhor que temos. Por isso acordo com chuva e digo que estou farta de sol, até o dia em que estiver farta de chuva.
 
 Elsa Bettencourt

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

PORQUE É QUE PORQUÊ ?


 

Daqui a uns meses o tema mudará…muda sempre. O virus pandémico acabará por ser neutralizado por uma vacina, por imunidade colectiva ou, discretamente sairá de cena dando como encerrados os seus trabalhos. Algumas partes dos teóricos da conspiração acabarão por se revelar verdadeiras, outras não. Nessa altura outro medo nascerá, outra tragédia nos irá encher os dias para que a nossa condição de ovelhas assustadas não seja alterada. Se pararmos para pensar e respirar um bocadinho a maior parte das coisas passa a ter outro sentido, o medo torna-se menos intenso e aquilo que achamos ser fica posto em causa. Não passamos de um cagagésimo de tempo a viver num cagagésimo de espaço no meio do universo. Porque é que haveríamos de ser importantes? Porque é que havemos de acreditar sem espírito crítico outros como nós que dirigem o circo enquanto nos sujeitamos sempre a montar as bancadas? Um circo que está sempre em perigo, ora pelo fogo, ora pelas chuvas, ora pelo vento, ora pela falta de pessoas na assistência?

E porque é que não aproveitamos a vivência de tempos anormais para nos realinharmos no plano da existência e do comportamento ? Porquê ? Primeiro porque aquilo que nos acontece, a maior parte das vezes não tem nada a ver com a nossa vontade. Por mais que amemos alguém ele morrerá sem que nada possa ser feito por nós para o evitar. Se a Economia entra em crise, o nosso contributo de pouco ou nada valeu para isso acontecer. Por mais atentos que possamos estar em relação à preservação do ambiente, nunca chega. A degradação continua bem como o complexo de culpa que nos metem na repetição do discurso como se dependesse de nós. Não depende.  Os fenómenos da conjuntura são sempre insondáveis mas acabam sempre mal e com as piores consequências sobre os mais fracos. Sempre. Dá ideia de estarmos dentro de um jogo de futebol com um árbitro corrupto que e engana sempre para o mesmo lado.

O medo é orientado em vagas que se aproximam e afastam para melhor controle das multidões. Não percebemos nada do que se passa nem nunca vamos perceber.

 

 

 

 

 

 

Assumamos pois o cagagésimo que somos para cagar de alto neste cenário absurdo e sem sentido onde fomos obrigados a viver. Não saindo dele mas subvertendo-o através de acções e comportamentos com os quais nos consigamos identificar. Com razões de benefício e partilha com os outros, de conciliação com o ambiente, respeitando a vida e os mais fracos. Equilibrando as relações de trabalho. Transformando o Absurdo numa coisa mais agradável em que a ausência de sentido deveria premiar quem sempre o quis encontrar. Qualquer coisa deste género…

 

Artur

 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

ENTRE HERÓIS E ASSASSINOS


 

 

A propósito de heróis e de assassinos, a propósito de julgamentos simplistas e dificuldade em digerir o passado colectivo, a propósito de homens que carregaram consigo os seus fantasmas deixo-vos um extracto do meu último romance. Fala de um personagem fictício mas a história que conta pertence à realidade. Pertence a alguém que conheci. Como morreu este ano tomei a liberdade de a certificar. Vão com calma, leiam muito, ouçam bastante. Nada é como vos dizem...nunca. 


"

Lembro-me do tio Armando toda a vida a empurrar um escritório de contabilidade com mais dois economistas, um lugar escuro num rés-do-chão na Estrada de Benfica a cem metros do Jardim Zoológico. Falava muito pouco, vivia sozinho com os seus fantasmas ou com as suas vozes. Vozes que só conseguia calar com várias imperiais no café da esquina ao fim da tarde antes voltar para casa. As suas histórias chegavam a nós em pedaços de cada vez que nos encontrávamos num aniversário ou em qualquer outra ocasião para uma reunião de família. Sem nunca vacilar ou dar indícios de estar bêbado era a sua língua que se ia soltando movida pela viagem daquele dia pelos corredores da memória. Tinha sido casado mas separou-se assim que voltou da guerra. Durante anos não conseguiu ver o filho e, muitos anos depois foi o filho que não o quis ver mais. Soubemos que tinha voltado de África com uma Cruz de Guerra no peito e uma depressão que demorou anos a tratar. Quando bebia dizia-nos várias coisas

 

      Nunca acredites em nada do que te dizem.

 

Soltava pedaços do seu passado pouco se importando se alguém os apanhava no caminho. Falava de histórias povoadas de hipocrisia, de como ser jovem é quase igual a ser um idiota, um crédulo que espera dos outros um discurso de apoio e verdade, uma mão amiga que o ajude a entrar na vida. Falava de coisas horrorosas que se passaram na guerra sem as especificar. Usava metáforas, pintava os episódios com traços gerais

 

       Nunca acredites em nada do que te dizem porque é tudo mentira

 

Os pais dele e os pais da tia Amélia convenceram-nos que deviam casar, que era o melhor para eles, para o seu futuro. Convenceram-nos que não havia mais nada para procurar nos territórios das opções e eles acreditaram. O seu casamento foi uma união frutífera para todos menos para eles os dois. Depois foi a guerra. Convenceram-no que era preciso avançar, defender Portugal fora de Portugal, marchar para um espaço que só conhecia nos mapas. E ele acreditou, e ele foi. Três anos depois a sua rotina era um calvário de comprimidos de todas as cores, os internamentos a rotina dos meses, o ódio pela mulher e pelo filho uma força constante que o queimava por dentro. 

 

    Nunca acredites em nada do que te dizem porque é tudo mentira.

 

O tio Armando nos aniversários de rosto fechado atrás de uma garrafa de whisky a querer dizer, a imaginar que iria conseguir

 

   filho

 

mas a sua boca cerrada como um túmulo, os olhos vagamente focados, a palavra que lhe saía da boca mas que acabava por se esconder, a família à volta, a algazarra e no entanto nos dedos, nos gestos mais simples

 

  filho

 

a palavra que nunca chegou a sair por que nada valia a pena e era tudo mentira. Um homem esmagado sobre si próprio que a família cuidava como se de um móvel raro se tratasse, com muito cuidado e respeito, as consultas e os internamentos em psiquiatria. A mãe sempre a desviar a atenção

 

   O vosso tio está muito cansado, é só isso

 

E as reuniões, os almoços de veteranos, as rixas nos bares mais manhosos da cidade, a policia a ligar lá para casa. O pai a caminho da esquadra, os dois de regresso no carro e quando mais entorpecido pelas drogas quase que um braço estendido, quase que uma palavra que dizia

 

  filho

 

uma palavra que nunca disse, uma palavra que  foi deixando desaparecer até não ser palavra nenhuma, um olhar vago com cada vez menos interesse e o filho a desaparecer também para uma cidade do interior sem ligações nem telefones nem mensagens no Natal

 

muito cansado para responder ou estabelecer qualquer tipo de contacto

muito cansado, só isso

 

Até que um dia o tio Armando tapado por uma bandeira nacional e dentro de uma caixa de madeira debaixo de um enorme aguaceiro no crematório municipal, vários camaradas de armas, rostos fechados como o dele, a família, o filho que veio já no fim com dois netos pela mão, as condolências, o fumo que da chaminé do crematório a serpentear no meio da chuva, o fumo que parecia querer dizer

 

filho

 

mas não disse

 

 o fumo que parecia querer dizer

 

Não acredites em nada do que te dizem porque é tudo mentira

 

As cinzas no fim que também queriam dizer qualquer coisa mas não disseram limitando-se a ficar ali dentro da sua cor cinzenta numa caixa prateada, as cinzas que pareciam querer dizer

 

filho

 

mas que se calaram como de resto todos os outros ali presentes enquanto decorria a cremação     

 

             as cinzas que quando mais tarde se precipitavam no mar em pleno nevoeiro da Praia Grande noutro dia de chuva e vento, as cinzas que por fim desabafaram antes de se despedir que houve uma operação na Guiné há muitos anos, um ataque de surpresa ao inimigo em que duas crianças de oito anos apareceram de repente no caminho. Duas crianças que rapidamente dariam o alarme comprometendo a operação, colocando as vidas deles em risco, não poderiam ser libertadas de maneira nenhuma. Duas crianças encostadas a uma árvore com as cabeças ligeiramente tombadas e um risco vermelho a atravessar o pescoço, duas crianças e um jogo macabro de quem tira a sorte naquele dia, e a faca de mato do tio Armando pendurada de uma mão a pingar

 

filho

 

de modo que nenhum pai gritou naquela noite, nenhuma árvore chorou, nenhum soldado chamou

 

filho

 

duas crianças que ficaram para ali para sempre encostadas a uma árvore de pescoço cortado na cabeça do soldado a quem tocou em sorte eliminá-las, duas crianças que nunca mais deixariam o soldado aproximar-se do seu filho sem se lembrar delas, duas crianças que viveram sempre com ele até ao fim. Isto contaram as cinzas enquanto a espuma das ondas as enrolava, enquanto o vento as espalhava para longe, isto tudo contava uma tarde fria e chuvosa de nevoeiro na Praia Grande, isto contavam várias vozes, vozes de um veterano perturbado pelos seus fantasmas, vozes de duas crianças sentadas na base de uma árvore antes de uma operação muito importante de que já ninguém se lembrava, isto contou aquele dia de cinzas e mar. E na praia, nos nossos passos silenciosos a areia repetia-nos sem pressa

 

nunca acreditem em nada que vos dizem porque é tudo mentira."

 

Artur

 

 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

A DIGERIR


 

 

Nono dia do segundo mês de dois mil e vinte e um.
Um cão encontrou-me para eu o abraçar.
Mesmo estando numa ilha que só contou menos de meia dúzia de casos, até aqui os abraços se condicionam ao mínimo.
Os beijos antes considerados em excesso, e até os apertos de mão que eram coisa dos países mais a norte, deixaram de fazer sentido e estão na lista dos maiores propagadores do vírus.
Eu encontrei o cão para não me descuidar dos afetos, dos passeios, das gargalhadas, da liberdade de arfar contra o vento sem medo, e sobretudo para resgatar pelo menos um animal do canil local. E porque é justo que, tendo tempo e espaço, o dê a quem mais precise.
A doçura deste cão emana de cada pelo, dos olhos cor de canela e mel, na pata que me dá e a minha mão aperta. Vejo homens feitos, mulheres de idade chegada ao século completo, e crianças que sempre tiveram medo de cães, a agarrarem-se a ele com um abraço já quase esquecido.
A admiração nos olhos deles é surpreendente. A alegria é contagiante. Às vezes até me agradecem que deixe que o abracem.
A minha vizinha de 1926 deu-lhe um bocadinho de pão, contou-me, e depois convidou-o para entrar em casa. Ele aceitou o pão, mas olhou em volta a ver onde eu estava. Não me viu e não entrou. Sentou-se aos pés dela para receber as festas que ela adora dar-lhe
Tudo o que lhe dou tenho recebido em dobro. Aliás, em toda a minha vida tem sido assim. Tive uma profissão ao serviço de outros e foi algo que me ensinou muitíssimo.
A recompensa imediata foi a de conhecer gente magnífica e as partes do planeta que quis. As que não quis não me fazem falta (neste momento). Tenho muito para viajar aqui dentro deste torrão de lava antiga.
A minha próxima meta é ensinar o Lucky a estar à vontade na água, já que a metade Terranova está adormecida.
Ontem molhou as patas da frente na piscina, e ficou a
ver-me nadar com um olhar curioso. Os ensinamentos da Sara da Diogo Cão estão a surtir grandes efeitos apesar de ter perdido o clicker. A recompensa tem sido mais festas do que rodelas de salsicha e vejo que até gosta mais.
Eu que nunca tive pachorra para estar sempre aos abraços, agora tenho um cão que os pede e me obriga a desatar os nós do afeto. Está comigo há pouco mais de dois meses, foi abandonado duas vezes, carrega traumas que nem sonho, e no entanto é um doce. Temos muito para aprender um com o outro, eu sobretudo.
Os dias desenrolam-se como uma meada infinita todos cheios de descobertas recheadas de pequenas felicidades e tristezas. Compacto-as em lugares diferentes e às vezes até as misturo. Divido-me a reconstruir escadas de entradas centenárias,a fazer canteiros de raiz, a carregar turfa de um lado para o outro, a resgatar troncos e a fazer a manutenção do espaço que me resguarda.
Até encontrei o clicker que julgava perdido. Às vezes até me encontro ao espelho, no reflexo duma superfície aquosa, num vidro acabado de polir. O céu cinzento regressou sem nunca ter partido e deixa-me a opção de colorir da cor que me apetecer. É o livre arbítrio a agir.
Elsa Bettencourt,

 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

QUANDO SE...

 
 

 

Quando tudo isto acabar vou voltar ao café com uma vitrina sobre a praça e ficar lá meia hora sentado a saborear o café, ou talvez mais tempo, quem sabe? Quando tudo isto acabar vou -me apresentar àqueles que sempre conheci como se fosse a primeira vez que nos encontramos. Vamos perder algum tempo a reconhecer os rostos a adivinhar a direcção do humor, vamo-nos demorar na leitura de cada palavra como se fosse a primeira vez que ouvimos aquele som. Quando tudo isto acabar, se ainda por cá andar, a única coisa que não quero ouvir é que tudo vai voltar à mesma forma do costume, ao habitual antes da tragédia. Se alguém me disser ou manifestar essa ideia pode ter a certeza que a enfio pela vitrina fora e à cambalhota até aos pés da estátua de quem ninguém sabe quem é a não ser os pombos. Será o prazer do café ao fim da tarde servido pela empregada sorridente que começou esta semana, serão os amantes que se transformaram em inimigos ou camaradas de armas para o resto da vida. Mas a vida antiga, não. Quando isto tudo acabar, se é que algum dia isso irá acontecer, vou ter que me voltar a conhecer o andar nas ruas, a reaprender a fala como alguém que convalesce de doença prolongada. E se vou ter que voltar a aprender-me a mim, aos outros e á vida em geral tenho a certeza que não vou reiniciar o programa que se desligou lá atrás. O programa que fazia de nós alegres escravos em liberdade, vítimas do nosso próprio lixo, desleixo, carrascos e vítimas da mesma equação.

Basta um café tranquilo com vista para a praça, basta o fumo da chávena e palavras por ouvir. Basta meia hora a ver as pessoas a andar lá fora ao Sol do fim do dia.

Quando tudo isto acabar não quero começar nada… Quero voltar a aprender o mundo e os outros, quero voltar a inventar-me num espaço novo. Começando por um café demorado em frente a uma praça qualquer…

 

Artur