A ideia de que o objecto da história e, em particular, os objectos da
história de arte, tenham origem num movimento rememorativo, ao mesmo tempo que
preenche uma expectativa de redenção, dá conta de uma catástrofe que não se pode
evitar, a saber, a transformação da vida em cinzas. Na verdade, a história trata
com cinzas, restos funerários e não é possível pôr entre parêntesis a dominância
destrutiva desse elemento catastrófico. Benjamin di-lo da melhor maneira: “O que
passou, o já não existir, trabalha apaixonadamente no seio das coisas. A isso
confia o historiador o seu interesse. Ele tira partido dessa força e conhece as
coisas tal como são no instante em que já não são.”(Das Passagen-Werk, [D.
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Maria Filomena Molder,
Dia Alegre, Dia
Pensante, Dias Fatais
Este texto reconhece uma dívida e agradece a
inspiração na obra Mal d’Archive de Jacques Derrida. A dívida, como é
óbvio, inicia-se logo no título. Pese embora a homografia e a quase homofonia de
“mal”, o pathos do vocábulo francês invoca o desejo, quase a obsessão apaixonada
com o arquivo, descartando a relação que a palavra portuguesa mantém com
categorias ético-morais; o mais aproximado a que podemos chegar na nossa língua
é a expressão “mal de amor”. Queremos manter o significado da língua francesa e
lá chegaremos, se tudo correr bem, ao paralelismo com a língua
portuguesa.
Voltando ao texto de Derrida, convirá saber que o mesmo é a
transcrição de uma conferência proferida pelo filósofo em Junho de 1994, em
Londres, por ocasião de um colóquio internacional intitulado: Memória: a
questão dos arquivos, organizado por René Major e Elizabeth Roudinesco, sob
os auspícios da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da
Psicanálise, do Museu Freud e do Instituto de Arte Courtauld. A
conferência-ensaio procurava reelaborar o conceito de arquivo na actualidade
numa única configuração que englobasse as dimensões política, técnica, ética e
jurídica. O pendor problematizante do pensamento de Derrida conduz a questão
para os terrenos de uma metafísica difusa, afirmando, mais ou menos nestes
termos, que nunca conseguimos renunciar, mesmo que inconscientemente, a exercer
poder sobre o documento, a sua posse, retenção ou interpretação. Acreditamos que
esta linha de problematização dialoga com uma formulação que Michel Foucault
desenvolve em A Arqueologia do Saber, obra na qual o filósofo francês
analisa a questão do documento e a sua transformação em monumento, ou seja, “a
história tende à arqueologia – a descrição intrínseca do documento”. Como se
percebe, a fulgurante inteligência francesa, pela voz dos dois filósofos,
desloca a problemática do arquivo; embora o nome “arquivo” ainda conserve a
memória do arkhê grego, conserva-se ao abrigo dessa memória,
esforçando-se por esquecê-la: a passagem dos arquivos da esfera privada para a
esfera pública, a sua abertura a investigadores e não-investigadores –
idealmente, a todos os cidadãos que os requeiram – retirou-lhes o carácter de
secretismo e confidencialidade que conferia poder exclusivo a quem os detinha,
ou seja, esvaziou de conteúdo uma outra concepção de arkhê que remete
para o comando e o domínio sobre uma comunidade exercidos pelos arcontes (os
primeiros guardiões) dos arquivos. Como se vê, a família semântica de arquivo
tem uma dimensão física (a morada dos documentos), histórica (tudo o que é
relativo, já que o absoluto não tem história), normativa (a faculdade de exercer
poder concernente ao controlo e manipulação dos arquivos) e ontológica (o ser do
arquivo remete para tudo aquilo que é primordial, originário, original, para os
aristotélicos “primeiros princípios”).
É aqui que nos despedimos de Jacques Derrida; a
“vontade de poder” dá lugar à vontade de saber e ao desejo de verdade. Que
verdade ? Uma conhecida lei da Física estabelece que não é possível conhecer
simultaneamente a velocidade e posição de um determinado objecto (partícula) já
que, para conhecer a sua posição é preciso “iluminá-lo” e quando isso acontece,
ele muda de posição e de velocidade. Significa isto que a observação afecta
sempre a “verdade do objecto”. Ao longo do ano de 2018 – Ano Europeu do
Património Cultural e 70. Aniversário da Cinemateca Portuguesa –, e parte do ano
de 2019, “gente da casa” e outra, que dela não sendo, dela não deixa de o ser,
seleccionou, pensou e escreveu, debaixo da rubrica Textos &
Imagens, sobre diversos objectos que representam os vários arquivos que
constituem o arquivo do CDI (segundo a feliz formulação de Teresa Borges),
afectando-os e revelando o desejo de memória e o desejo de verdade de que
falávamos; o arquivo de arquivos move-se, tem dinâmicas e lógicas internas que
se ocultam e desocultam à medida do trabalho que sobre ele e a partir dele se
desenvolve. As novas perspectivas que todos esses contributos trouxeram a
objectos que pareciam fixos e instalados em categorias comuns e que, mercê desse
trabalho, mudaram de posição e de velocidade, permanecem os mesmos, sendo já
outros.
Como todos os arquivos, o do CDI requer uma
domiciliação e um suporte estável, o que o liga de certo modo à inescapável
determinação topográfica dos arquivos desde tempos imemoriais (a arkhê
dos arquivos à guarda dos arcontes). Supõe também a dimensão comum a essa
arkhê, a arqueologia. Exceptuando algumas instâncias determinadas pela
necessidade de conservação da integridade dos documentos/monumentos, ou
jurídico-legais, está totalmente aberto à comunidade, sinal de uma modernidade e
de uma actualidade perenes, que dispensam o estabelecimento de uma autoridade
hermenêutica legítima com acesso privilegiado a fontes recusadas a
não-especialistas; o desejo de verdade é cosmopolita e democrático; o poder
arcôntico que detinha em exclusividade as funções de unificação, identificação e
classificação caminha a par e passo com o poder de consignar, isto é, de reunir
os signos num sistema de sincronia ideal, no qual não existe distanciação
absoluta, heterogeneidade ou segredo que o separe dessa consignação, ou da sua
função institucional. Não cabe aqui discutir – embora fosse interessante fazê-lo
– o impacto deste arquivo sobre a historiografia do cinema em Portugal e talvez
também o impacto sobre a historiografia do arquivo e do arquivismo. É um
trabalho que está por fazer e que, certamente, será feito um dia. De uma coisa
estamos certos: este projecto de saber, de prática e de instituição, de
comunidade e consignação é atravessado na totalidade do campo por uma questão
política: a da res publica.
A Cinemateca é assim uma imensa sala de projecção,
não só dos filmes, mas de tudo aquilo que com eles se relaciona, recusando a
falsa aproblematicidade dos objectos; eles são, no fim de contas, uma
inesgotável “planície de verdade” cuja pensabilidade nunca se esgota; ocultam-se
e desvelam-se como enigmas; criam novos valores, sendo a sala de projecção não
só a possibilidade de experiência dos objectos, mas a condição dos próprios
objectos da experiência. Precisamos urgentemente de voltar à presença e à
familiaridade.
Começámos agora a era do medo, sobretudo o medo de
perdermos o controlo das circunstâncias e rotinas da nossa vida diária.
Compreendemos que, talvez, já não sejamos só nós que já não conseguimos moldar
as nossas vidas, conferir-lhes sentido, dar-lhes um rumo, mas que também quem
nos governa tenha perdido o controlo, para forças que os transcendem e que se
situam no domínio do inimaginável. Estamos, sem dúvida, garantidamente menos
confiantes nos nossos objectivos e aspirações comuns. Como celebremente comentou
o politólogo John Dunn, o passado está um pouco melhor iluminado que o futuro;
vemo-lo com mais nitidez. Mais do que nunca, vamos precisar de instituições
públicas sólidas, credíveis, poderosas no que toca à criação de confiança
comunitária – confiança no projecto colectivo –, capazes de fornecerem serviços
fiáveis fornecidos por um sector público devidamente financiado. Algumas dessas
instituições já existem.
Arnaldo Mesquita
* Texto publicado originalmente na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, na secção "Sala de Projeção". A fotografia pertence ao filme "Toute la Mémoire du Monde" de Alain Resnais.