sábado, 20 de abril de 2019

TU SABES, MEU





Lembras-te daquele livro que lemos no mesmo Verão depois dos exames? E daquele filme com o….aquele que se casou com a…tu sabes, meu. Lembras-te quando fomos acampar para aquele sítio ali…não muito longe de…logo a seguir a…? Não te lembras?
Houve um tempo e um caminho e dentro deles estivemos nós?  Houve dores e alegrias, eternidades e apocalipses, lágrimas e gargalhadas. Isso lembro-me. Tenho é dificuldade em encontrar as datas, dar um nome aos dias, aos sítios… Mas lembro-me, sem dúvida que me lembro. Como tu te deves lembrar, de certeza. Estavas lá tanto como eu, afinal as nossas vidas nunca se chegaram a afastar muito, antes correram como linhas paralelas que ocasionalmente se cruzaram no infinito. Este infinito que eu sei que existe, que aconteceu mas que me custa estabelecer tempos, colar etiquetas como na arrecadação de um museu. Ás vezes parece aquele filme do gajo que acordava todos os dias no mesmo dia. Como é que era o título do filme? Com aquele actor, o…que também entrou naquele filme do… quando éramos miúdos e nos borrávamos de medo? Tu sabes, meu.
Tu sabes tão bem como eu, ninguém está a inventar, ninguém consegue inventar uma vida, desenhar um espaço que é o nosso como se fosse para sempre. Um espaço onde cabemos confortáveis com as nossas memórias como um zeloso bibliotecário encarregue da segurança dos seu livros. Um lugar à prova de tempo e de acidentes que nunca pode acabar enquanto nos conseguirmos lembrar. Naquele lugar onde nascemos e fomos à escola, nascem agora outros que nunca vão saber quem fomos, nem os nossos nomes nem os nossos livros, nem os nossos filmes. O cinema foi abaixo, a Livraria já não existe, a livraria do senhor…daquele que coxeava e vendia jornais ao princípio numa esquina do jardim. Aquele, o…tu sabes.
Lembro-me mas vou-me lembrando cada vez com menos força. Sempre que volto aos assuntos do passado é como se perdesse uma parte, como se o tudo fosse caíndo aos bocados até não ser nada. Também acontece contigo? Então deve ser por isso que há coisas de que não nos conseguimos lembrar. E quando ninguém se lembrar seja do que for essa coisa desaparece. Não morre porque deixa de  ser lembrada e quando uma coisa deixa de ser lembrada deixa simplesmente de existir. Nunca aconteceu.
A morte é como aquela gaja que namorou contigo há muitos anos. Aquela…a que depois casou com o…aquele, tu sabes. É diferente, tem textura, faz sofrer, impõe-se, deixa marca.
Mas nós não. Nós vamo-nos lembrando de cada vez menos coisas, a vida vai perdendo bocados como nós. E daqui a nada nem uma voz perguntará sobre quem fomos ou hesitará em pedir os nossos nomes a um interlocutor dando pistas difusas de partes das nossas vidas.
Daqui a nada será como se nada tivesse acontecido…a nossa vida, as nossas dores e as nossas alegrias. Outras gerações nos sucederão iludidas da sua imortalidade, condenadas a deixar de ser recordadas. E não vejo mal nenhum nisso. Como dizia aquele gajo…o que morreu ainda novo com….tu sabes,meu…


Artur




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