terça-feira, 27 de março de 2018

OS VENTOS DA HISTÓRIA NUNCA MENTEM




Estamos a viver tempos que só não lhes chamaria estranhos na medida em que se inscrevem na ordem repetitiva da História. Tudo acaba por se repetir embora nunca da mesma forma. Em espiral (ascendente ou descendente depende do ponto de vista). E não é preciso avaliar os acontecimentos à lupa para deles conseguir obter uma visão mais ou menos transparente, para encontrar atrás do folclore, do circo propagandístico em que se transformou a comunicação social, uma outra realidade, uma outra intencionalidade quanto à forma como se pretende que as populações pensem. Há nos últimos tempos duas referências que me chamam demasiado a atenção para não conseguir ficar calado. São elas o assassinato do ex espião russo em Inglaterra e a prisão de dirigentes catalães acusados do crime de sedição (incitação à rebelião, levantamento popular). Denominadores comuns das duas situações, a ignorância estimulada e a desagregação de um império.
Na Catalunha aguarda-se a próxima colecção de disparates. Puidgemont foi demasiado depressa demasiado longe, Rajoy utilizou a força excessiva e desadequada, o rei escondeu-se atrás do chefe do governo em vez de assumir as suas responsabilidades de chefe do estado, logo, elemento agregador, árbitro, moderador de conflitos. Nesta história onde não há heróis, apenas incompetentes, uma questão política que só poderá ter um desenvolvimento e uma conclusão política foi tratada (e mal) como uma questão judicial; um sentimento de autonomia e independência foi transformado numa afronta directa à potência ocupante sem recursos para a resposta musculada; a instituição de onde se reconhece a postura de equilíbrio e ponderação das décadas anteriores (aquela que conduziu o processo de transição democrático e que o reafirmou quando Tejero Molina ocupou o Parlamento, que encerrou os tempos negros da luta armada da ETA, que mandou calar ditadores em directo em cimeiras internacionais, e que , por fim tornou a Espanha num estado soberano democrático e europeu aos olhos do mundo) é hoje uma sombra daquilo que foi.
Aguarda-se a próxima sucessão de disparates, dizia eu. Os dirigentes catalães estão detidos não pelo crime de sedição (que a meu ver não cometeram) mas sim por crime de pensamento. Nessa linha Rajoy vai ter que prender mais alguns milhões de catalães que votaram favoravelmente no referendo que previa a possibilidade da independência catalã. E os independentistas?  O que é que se segue? A revolta armada? Porque com o regresso de conceitos como "presos políticos", "exílio", etc, daqui a não muito tempo já não estamos a falar num estado democrático. Porquê? Porque num estado democrático é suposto aceitar as opiniões divergentes, é suposto dialogar, negociar, encontrar compromissos. A última vez que uma situação semelhante teve lugar em Espanha os guerrilheiros da ETA eram condenados à morte pelo garrote e o carro de um primeiro ministro voava à altura de quatro andares num atentado terrorista. E agora Filipe VI? Qual é a Espanha que sua majestade está preparado para dirigir? A continuação do legado do seu pai, uma nova guerra entre os seus súbditos ou o regresso aos tempos negros do franquismo? A União Europeia também tem uma palavra a dizer sobre a crise da Catalunha. Ainda ninguém percebeu é qual…
E por fim uma palavra de desagrado para o PSOE e de certa forma toda a esquerda espanhola que neste processo ou assobiou para o lado ou se escondeu atrás dos acontecimentos em segundo plano. Espanha é um estado composto de várias nações e é no equilíbrio, no diálogo e no compromisso que assenta a sua vitalidade. Ignorar a identidade cultural, linguística, ignorar a diferença para impôr a autoridade das botas da polícia, dizem os ventos da História, acaba sempre mal.

Por fim o assassinato de um ex espião russo em solo inglês. A histeria do ocidente a expulsar diplomatas russos. Uma história muito mal contada, a fazer lembrar as armas de destruição maciça do Iraque que afinal não existiam. Uma primeiro ministro britânica a tratar do Brexit com a delicadeza de um elefante numa loja de louças que diz que foram os russos mas insiste em não apresentar provas com o coro e a aprovação do império em declínio que viu furados os seus planos para tomar conta da Síria e que vai assistindo à perda da hegemonia isolada no mundo com a ascensão de novas potências a descartar o dólar enquanto moeda de referência nas transacções petrolíferas. Nada tenho contra ou a favor de Putin, não mora perto de mim. Mas já quanto aos Estados Unidos e Inglaterra, assusta-me ver os destinos destas duas grandes nações nas mãos de incompetentes em estado de negação. Lembram-se da I Guerra Mundial? Começou porque um Arquiduque foi assassinado. A partir daí, de erro em erro a Europa mergulhou numa das suas mais negras noites em que milhões se mataram alegremente para nada. No fim quem é que ganhou alguma coisa com isso? Bancos e conglomerados económicos. É preciso pensar duas e três vezes de cada vez que as notícias são despejadas em cima de nós. Já repararam que as estações de "informação"dizem todas a mesma coisa sem diferenças que se vejam? Que as notícias são bombardeadas vindas do nada até à exaustão e depois desaparecem? Hoje só se fala de amendoins, daqui a um mês só existem melões. Ao crimethought (conceito orwelliano de crime de pensamento) dos catalães juntamos  o pensamento monolítico de verdade variável. E toda esta conjugação, todo este cenário nos vai afastando quer da realidade quer da nossa natureza. Ao aceitarmos como naturais as atrocidades do passado, ao entendermos como inevitável a destruição e o cataclismo humano, ao sermos carneiros entregues aos lobos para que nos devorem. Os ventos da História sopram sempre mais do que uma vez. E nunca mentem.

Artur

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segunda-feira, 19 de março de 2018

THE MASS ORNAMENT - SIEGFRIED KRACAUER




The Mass Ornament . Weimar Essays, Siegfried Kracauer  Siegfried Kracauer; translated by Thomas Y. Levin.-London : Harvard University Press, 1995



Na introdução à versão norte-americana de “Das Ornament der Masse”, Thomas Levin chama a atenção para uma metodologia programática presente na secção de abertura do ensaio com o mesmo título, datado de 1927, na qual Kracauer enuncia o modo como a insignificância dos artefactos quotidianos os capacita para se tornarem índices ou sintomas de condições históricas específicas:
                “A posição que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinada com maior rigor a partir de uma análise de expressões inconspícuas ao nível superficial do que a partir dos juízos que essa época produz a propósito de si mesma. Já que esses juízos são expressões de tendências de uma era particular, não oferecem testemunho conclusivo sobre a sua constituição geral. Pelo contrário, as expressões ao nível superficial, em virtude da sua natureza inconsciente, providenciam acesso não mediado à substância fundamental do estado das coisas. Correlativamente, o conhecimento do estado das coisas depende da interpretação dessas expressões de nível superficial. A substância fundamental de uma época e dos seus impulsos desapercebidos iluminam-se reciprocamente”.

Como se entende este programa e quais as suas consequências no esquema interpretativo desenvolvido por Kracauer ao longo dos ensaios que constituem esta colectânea ?  Noutros termos,  como é que o domínio da realidade empírica – e em particular as suas superfícies, previamente rejeitadas como reino do vazio e da ausência – veio a assumir um papel tão central no pensamento de Kracauer ? Cremos que tal se deve a uma alteração radical da compreensão da filosofia da história, fruto de um longo diálogo com Walter Benjamin e Theodor Adorno, que redunda na substituição de um modelo histórico estático como queda ou declínio por uma concepção da história como processo de desencanto e de antagonismo entre as forças da natureza e as da razão. Por outro lado, o estudo sobre as novelas detectivescas revela uma combinação dos seus interesses filosóficos iniciais com a investigação da cultura de massas; ostensivamente um estudo sobre a acção detectivesca, esse ensaio conhece uma dívida para com a obra de Kierkegaard, cujo modelo de esferas interrelacionadas  (estética, ética e religiosa) foi apropriado por Kracauer. Esta importação de Kierkegaard  só aparentemente é arcaica; tal como Hannah Arendt comentou a Anson Rabinbach  (“In The Shadow of Catastrophe: German Intelectuals Between Apocalypse And Enlightment”), depois da I Guerra Kierkegaard era o filósofo do dia. Que razão dita a  profunda influência de um pensador tão intensamente cristão em intelectuais de confissões religiosas diferentes é uma questão que não pode ser respondida aqui, bastando que fiquemos com a ideia de que o pensamento de Kierkegaard  configurou a noção de vocação crítica desenvolvida por Kracauer e que esse pensamento oferece um enquadramento trágico para a agenda político-cultural de Kracauer durante o período de Weimar.
No que ao cinema diz respeito, Kracauer é sobretudo conhecido pela obra “From Caligari To Hitler : A Psychological History Of The German Cinema”  de 1947, na qual apresentava uma história do cinema alemão dos anos entre as guerras mundiais, argumentando que os seus temas reflectiam as condições psicológicas e sociais que conduziram ao nazismo, e também pelo livro “Theory of Film: The Redemption of Physical Reality” (1960), no qual assume a noção chave que subjaz à sua conceptualização de estética cinematográfica  “material”: o cinema é essencialmente uma extensão da fotografia, partilhando com esse médium uma marcante afinidade com o mundo físico e visível que nos rodeia. O cinema torna-se ele próprio quando regista e revela a realidade física.  Apesar da importância capital destas duas obras, acreditamos que elas estão longe de sintetizar todo o pensamento cinematográfico de Kracauer, sendo justamente nos ensaios dos anos 20 aqui coligidos que podemos encontrar as perspectivas, antevisões e visões prospectivas que hão-de configurar as teorizações posteriores, conferindo-lhes um sentido e uma lógica interna que, de certo modo, as tornou um cânone. Assim,  a estética do cinema construída por três dos mais importantes  pensadores do século XX – Theodor Adorno, Walter Benjamin e Sigfried Kracauer, abre a possibilidade de pensar a experiência da modernidade sob a perspectiva de uma crítica filosófica  que opera a partir da arte e dos meios de comunicação de massas.  Habitualmente, a maioria dos trabalhos no domínio da teoria crítica sobre a temática da arte, da tecnologia e da cultura de massas reduzem o campo problemático a uma caracterização da indústria cultural de Adorno e Max Horkheimer como pessimista e elitista oposta ao optimismo tecnológico que Benjamin desenvolveu no ensaio  “A Obra de Arte na Época da Sua Reprodutibilidade Mecânica”.  É neste contexto que se revela a importância fulcral da obra de Siegfried Kracauer , autor central para fundar e  discutir ao mesmo tempo uma teoria do cinema.
     Os escritos coligidos neste volume, cujo significativo subtítulo “Weimar Essays” remete imediatamente para uma época histórica e as suas determinações,  para além de críticas de cinema, são constituídos por recensões de novelas detectivescas e literatura de divulgação, textos sobre o circo, a cidade, o desporto, o teatro, entre outros) e manifestam exuberantemente a intenção de desenvolver uma estética cinematográfica a partir de uma perspectiva da modernidade. Ao longo da obra torna-se evidente uma outra translação muito significativa do pensamento de Kracauer: a compreensão pessimista da modernidade, que compartilha com Max Weber e Georg Simmel, entre outros,  que afirma a privação humana de um horizonte de experiência que permitiria aos homens conferir sentido aos processos relacionados com a técnica, a ciência e a economia capitalista, evolui para uma curiosidade astuta em relação aos fenómenos da vida moderna, em particular, a cultura de massas.  O objectivo passa a ser, não o fundamento de uma noção expandida de modernismo estético, mas relacionar a fotografia e o cinema com aquilo que, para o autor, define o século XX : a produção, o consumo e a emergente sociedade de massas. Se quisermos levar mais longe e aprofundar o contraste com o pensamento de Walter Benjamin, diremos que, onde Benjamin via o esvaziamento do tradicional sentido aurático  como  algo de positivo que poderia libertar as massas de qualquer tendência de queda no totalitarismo (nazi ou fascista), Kracauer acreditava que a modernidade representava “um esvaziamento de sentido, uma bifurcação do ser e da verdade” (Thomas Levin “Introduction”). Portanto, ao contrário de Benjamin, Kracauer descreve o modo como a ascensão das massas mediatizadas é acompanhada pelo esvaziamento de sentido – um esvaziamento impulsionado pelos valores capitalistas que competem com e minam as formas não-fetichizadas de conferir poder às massas.

Arnaldo Mesquita


 Nota: Este texto foi originalmente publicado na página web da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema

     

segunda-feira, 5 de março de 2018

DESEMBARAÇO


                                                             Belém do Pará / Brasil


                                                                          Sofia

quinta-feira, 1 de março de 2018

LAÇOS DE FAMÍLIA






    Os jantares de amigos podem ter os desfechos mais inesperados que a própria imaginação não
consegue descortinar.  Nos primórdios, quando o sangue é quente e a adrenalina abunda pode haver uma total amnésia na
manhã seguinte, uma traulitada a mais na chapa do carro sem se conseguir
perceber bem como aconteceu ou um encontro desconfortável com a autoridade a
caminho de casa. No caso concreto de hoje, o encontro entre cinquentões
companheiros de colégio interno deu-se num ambiente informal embora bastante
discreto de um restaurante antigo pertencente a um dos ramos das Forças
Armadas. E quando digo formal estou-me a lembrar de que um dos convivas era o
próprio director do colégio. Mais do que a importância dos temas abordados é a
camaradagem e o prazer da companhia dos parceiros de juventude que impera sobre
a mesa. Recordar o tempo vivido em comum, os professores, os episódios
caricatos, fazer comparações com o tempo presente. Mas não vos vou maçar com
histórias de cinquentões que frequentaram a mesma escola juntos até ao final da
adolescência. No fim, três de nós acabámos por seguir no mesmo carro. Parados
num sinal perto da Casa da Moeda vi o local exacto onde se deu uma cena de uma
série da minha juventude. Disse para os outros: "Aqui há uma cena do ZÉ
GATO com o António Assunção a fazer de chulo infiltrado. Alguém se
lembra?" Dois minutos depois havia três alminhas a cantar o genérico da
série sem falhar uma parte da letra.  De repente voltávamos a ser adolescentes fascinados  com este agente da Judiciária, das suas cambalhotas contra o crime e de um mundo de actores que deram corpo a uma das primeiras ficções para televisão neste género. Era um tempo em que a Democracia
dava os seus primeiros passos e a RTP2 procurava a sua autonomia de conteúdos.
Zé Gato era um gajo normalíssimo de bigode, um anti herói que combatia ladrões,
traficantes e bandidagem em geral. Umas vezes com inteligência, outras à força
de porrada. Não era nenhum craque ianque com piadas adequadas que vencia sempre
no fim nem um gajo de leste com tiradas patrióticas em tudo o que fazia. Era um
dos nossos, um membro da família. Um dos actores, o Luis Lello, aqui a fazer o
personagem de "Matrículas", era o informador do Zé Gato. Prematuramente
desaparecido ficou também imortalizado no KILAS, O MAU DA FITA de Fonseca e
Costa no papel de Tereno. Na tenra juventude tinha namorado uma tia minha. Mais
tarde vim a saber que tinha estudado no mesmo colégio que nós o que o fazia
logo à cabeça nosso familiar. E voltámos a cantar a música do genérico. Nos
anos 90 no "Johny Guitar", estava eu a cantarolar esta música quando
uma voz atrás de mim me diz: "Essa fui eu que escrevi…" Era o Jorge
Palma. Na minha profissão tive um colega (hoje já reformado) que era primo
direito do realizador, Rogério Ceitil. E se perdêssemos mais algum tempo a
escalpelizar as várias linhas entre os nossos destinos e os dos que compunham a
série julgo que ainda encontraríamos mais algumas ligações. O (nosso) mundo é
definitivamente um lugar pequeno que aproxima pessoas que nunca se conheceram à
distância de um familiar.   Como
adolescentes a série marcou-nos imenso na medida em que foi um primeiro
contacto com a ficção nacional no género policial. Enquanto produção pioneira
foi o começo para outras aventuras como DUARTE E COMPANHIA. Numa nova sociedade
em construção o agente da Judiciária com mau feitio e sem grandes caganças
tentava sobreviver dentro do sistema corrigindo aquilo que podia com alguma
eficácia.
Basicamente
foi um momento que marcou uma geração e, pelos vistos com alguma profundidade.
Caso contrário far-se-ia a pergunta : "Porque é que três gajos com idade
para ter juízo cantam à meia noite dentro de um carro? O que é que os faz
correr pelos cantos mais escuros da memória..?"

Artur