quarta-feira, 27 de junho de 2012

JÜNGER

Não tendo ainda sido elaborada uma biografia política de Ernst Jünger, um dos dois ou três grandes pensadores e escritores do século XX, gostaria de deixar algumas notas e reunir alguns elementos para o conhecimento do seu percurso político, esperando que, de alguma forma, esse percurso ilumine algumas das zonas obscuras deste nosso tempo. Convém, antes de iniciar esta pequena viagem, recordar que o pensamento de Nietzsche estrutura toda a obra de Jünger, projectada em primeiro lugar pela necessidade de organizar através da escrita a terrível experiência da I Guerra Mundial (na qual foi ferido 14 vezes e agraciado com a mais alta e rara condecoração militar germânica : a medalha "Pour Le Mérite", instituída por Frederico II da Prússia. Para se perceber o significado dessa condecoração, refiro o nome de outro ilustre agraciado : Erwin Rommel), processo que efectua através da obra "Tempestades de Aço". Essa reflexão sobre a experiência terrível nos campos de batalha origina uma primeira tese política: a guerra constitui-se como um confronto entre os indivíduos e o Ser bélico, do qual os sobreviventes saem transformados, já que passaram na horrenda prova. Esta tese inscreve-se totalmente no pensamento de Nietzsche, tornando-se um eco da célebre frase : "Aquilo que não me mata torna-me mais forte", e subscreve uma determinação essencial do pensamento do filósofo:  o home livre que livremente aceita o seu destino ("Amor Fati"). Ou seja, os sobreviventes da experiência bélica não se deixam enredar nos papéis de vítimas, tornam-se mais fortes e combativos; seres que desprezam os valores burgueses, opondo o sentido da acção ao cálculo, o desconforto à quietude do lar, o gosto do perigo ao sentimento de segurança, o desdém em relação ás necessidades materiais ao espírito do lucro, a camaradagem aos grupos de interesses.

Curiosamente, Jünger atravessa os anos vinte participando em revistas e grupados eivados do "pathos" nacionalista, antigos combatentes, nazis, nacionais-bolcheviques, autores de teatro de vanguarda, literatos, comunistas, todos frequentando os mesmos círculos, o que mostra até que ponto as correntes de ideias se confundiam e misturavam na República de Weimar. De qualquer modo, dou como adquirido que a obra "O Trabalhador" se constitui como a súmula do pensamento nacional-bolchevique : no princípio dos anos 30 Jünger concebe um império universal tecnocrático, sem classes sociais, mas desigual : uma sociedade na qual só o direito ao trabalho está garantido; tudo o resto precisando de ser conquistado pela força. Ao contrário do proletário marxista, o Trabalhador e a sua revolução não visam a propriedade privada, mas a cultura burguesa baseada sobre a razão, a moral e o individualismo. Claramente, Jünger nega a noção de progresso, motor do liberalismo e do marxismo. Seria interessante comparar esta visão com a de Walter Benjamin e a sua negação do conceito de progresso histórico, um tema de que já falei noutro texto publicado neste "blog".
Refiro ainda dois traços fundamentais do pensamento nacional-bolchevique que me são particularmente caros: o desprezo pela ideologia de massas a favor de um elitismo cultural e espiritual, a vontade de romper com o espírito burguês e a recusa do racismo e de todas as outras formas de discriminação. Este tipo de pensamento pode ser enquadrado no género de pensamento nacional socializante.

Ao contrário do que por vezes se diz, a relação de Jünger com o nazismo é tudo menos equívoca : para o provar bastaria ter em conta o seu comentário ao convite que lhe foi feito para ocupar um lugar elegível nas listas do partido nazi: "Prefiro escrever um verso a representar 60.000 cretinos no Parlamento".
Refiro agora um momento crucial no pensamento político do escritor. se no fim de "As Falésias de Mármore" o mal triunfa, sendo a obra uma indisfarçável alegoria do regime nazi, em "Heliopolis" (1949) instaura-se um precário equilíbrio de forças. De novo, a resistência é conduzida por um grupo aristocrático de militares. No entanto, Jünger constata o falhanço do seu empenhamento político e vira-se para a esfera simbólica do sagrado. Considera agora que as sociedades modernas são todas totalitárias, quaisquer que sejam as formas de governo. A questão é : como combater o Mal utilizando os seus métodos e dispositivos (tecnológicos). O Rebelde refugia-se nas florestas que todo o homem transporta em si : a arte e o pensamento. Com "Heliopolis" e "O Tratado do Rebelde", Jünger demarca-se da filosofia contemplativa e do retiro interior de "As Falésias de Mármore", afirmando a necessidade de resistência à alienação e totalitarismo da sociedade moderna. Na obra seguinte - "Eumeswil" - Jünger estabelece mais uma metamorfose das suas personagens : o Anarca que, ao contrário do anarquista, não deseja suprimir a autoridade, antes se acomoda e aprende a viver no seu seio, preservando sempre a sua liberdade de espírito. O Rebelde fugia da sociedade, o Anarca insere-se nela.

Em 1994, quando fez 100 anos, Jünger declara numa entrevista a propósito da figura de Martin Heidegger, que o escritor se deve distanciar da política, a fim de não se deixar contaminar. Não consigo decidir se tal declaração representa um desgosto ou uma lassidão do velho soldado-escritor em relação à longa evolução do seu pensamento : do empenho político total à "emigração interior".
De qualquer modo, o que me interessa deixar sublinhado é o facto de a sua ética aristocrática ter atravessado o século, mau grado as terríveis provações e o imenso desgosto provocado pela morte do seu filho durante a II Guerra Mundial, em Itália, enquanto ele mesmo fazia parte do exército de ocupação da França, conservou sempre o rigor moral e a liberdade de espírito que o tornou o terno "anarquista prussinao". O horror que sentia em relação à democracia parlamentar não se refletiu em polémicas verbais: espírito livre, recusou qualquer sujeição ou vassalagem em relação a partidos e regimes. Anti-burguês, desenvolveu a sua personalidade em detrimento do individualismo. O encontro com a técnica, simultaneamente criadora e destruidora, marca toda a sua obra, de "Tempestades de Aço" a "Eumeswil" : o soldado afrontou-a nos campos de batalha, o Trabalhador pretendeu dominá-la, o Rebelde desprezava-a, o Anarca utilizava-a.
Sem homens como Jünger, que respeito poderia a Humanidade ainda ter por si própria ?

NOTA: "Tempestades de Aço", "A Guerra Como Experiência Interior", "As Falésias de Mármore"e "Eumeswil" estão disponíveis em excelentes traduções portuguesas. De particular relevância, para quem se interessar por Jünger e pela sua época, recomendo as seguintes obras: "Ernst Jünger : Une Bio-Bibliographie" de Alain de Benoist e "Irrationalisme et Humanisme. Critique d'une ideólogie impérialiste" de Theodor Schwartz.

1 comentário:

Artur Guilherme Carvalho disse...

Excelente "posta", irmão. Tomei a liberdade de a encimar com uma fotografia onde se inclui os anos de nascimento e morte de Junger. Abraço