quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O SONHO


(Foto de Sofia P. Coelho)
O sonho partiu ao amanhecer, deixando nos lençóis um breve rasto que se podia cheirar. O barco caiu no degrau da linha do horizonte antes de desaparecer atrás das vagas monótonas e da bruma do mar. Os passos que se foram desenhando ao longo da praia desapareceram nos primeiros instantes da próxima maré-cheia. Ficou o piar das gaivotas, um cachimbo apagado que adormeceu na mesa da sala, uma página escrita até metade com uma frase por acabar. A vida foi tropeçando cada vez mais vezes nas pedras e nos buracos da areia, foi perdendo vontade e chama, à medida que a noite caminhava sem destino para a manhã se instalar. As pernas deslizaram sem vontade para fora da cama, deixando que os pés se fossem enterrando na realidade, o corpo flutuou pelo mar dentro, esquecido do frio. O cigarro acendeu-se ao fim de várias tentativas sopradas pelo vento. E deixou-se queimar, perdido no meio dos dedos.
Tudo se apresentava ou tentava apresentar na sua melhor forma antes de desaparecer. Tudo começava em força para melhor poder acabar. E o que ficava repetia-se, repetia-se até à exaustão, sem fim. Era o que entrava e saía desta monotonia que marcava alguma coisa. O que começava e corria tranquilamente na essência do seu fim. O que ficava para se repetir pertencia a este lugar. Mas tudo o resto, tudo o que não era mais do que breve visitante, tudo o que estava de passagem, tudo aquilo que tinha um fim era apenas a força da vida do quadro inteiro. Sem esse elemento passageiro, os ciclos não tinham significado, não serviam para nada. Esse elemento que éramos nós, os intrusos, temporários utilizadores dos cenários eternos repetidos sobre si próprios. E não havia magia nem significados escondidos nem propósitos transcendentes nem nada a não ser a normalidade com que tudo acontece, mesmo quando acontece de forma anormal.
A página escreveu-se, a frase terminou, o cachimbo fumou-se, o amor explodiu, a fogueira ardeu. E quem partiu fechou a porta da casa alugada e devolveu as chaves ao dono. Alguém ficou na praia a dizer adeus até o adeus partir também, perdido no meio dos dedos. O sonho partiu ao amanhecer…

Artur

2 comentários:

Unknown disse...

...com que facilidade e clareza transportas as ideias em palavras, ou as palavras em ideias...muito bonito Artur...gostei das imagens...Parabéns

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Alfa.