quarta-feira, 29 de abril de 2009

“C” - ENTRE A CULTURA E O CAOS

A guerra tinha apanhado “C” no último ano antes da licenciatura em História. Como o irmão mais velho já tinha avançado ao abrigo do recrutamento obrigatório e a mãe estivesse sozinha, o exército permitiu-lhe adiar a mobilização. Entretanto havia conseguido o emprego de vigilante nocturno no Museu da cidade. A cidade onde morava, não sendo uma das principais, tinha a sua importância regional, concentrando em si o segundo maior porto de pesca do país. Naquela noite “C” estava preocupado. O irmão não escrevia já há duas semanas e as informações não eram nada animadoras. As tropas inimigas estavam-se a aproximar a uma velocidade enervante e “C” sabia que os sistemas defensivos da cidade eram demasiado fracos para conter um ataque em massa durante muitos dias. Sabia também que aquele era um dos pontos essenciais de uma segunda linha urbana, antes do ataque final à capital. Aquela guerra não lhe dizia muito. Entre deuses que falavam línguas diferentes ou políticas cheias de boas intenções como o Inferno ou a simples ganância de conquista do poder, as razões para a destruição e a matança eram sempre as mais estúpidas e as mais comuns para começar uma guerra. Enquanto bebia o seu café trazido de casa antes da primeira ronda da noite, “C” pensava por etapas em voz alta, falando para a sua cadela “Batata” que o acompanhava. Ninguém se tinha lembrado de um plano para protecção das peças do museu em caso de bombardeamento. As galerias da cave lá de baixo estavam meio ocupadas com os arquivos, as peças em espera para restauro e uma série de materiais auxiliares de exposição. Ao contrário dos museus da capital não havia sido estabelecido um plano de contingência no caso da guerra passar por ali. O administrador do museu era um seboso sobrinho do Presidente da Câmara que já estaria a milhas dali com o rabo entre as pernas. A juventude de “C” não o fazia conseguir encaixar como é que um tipo tão ignorante estivesse à frente dos destinos do museu. É claro que a sua grandiosidade não era comparável com os museus da capital se bem que o facto de se tratar de uma cidade fundada pelos romanos permitisse a exibição de uma série de peças bastante antigas e importantes a nível arqueológico que enriqueciam o seu património. Desde bustos de Governadores romanos a armaduras da Idade Média, passando por um sarcófago egípcio até quadros do Renascimento, o panorama era bastante vasto e rico sendo visita obrigatória da maioria das escolas ao longo do ano. Os estrondos da artilharia inimiga faziam-se ouvir desde pouco antes do jantar. A mãe tinha ficado devidamente instruída por ele. Dormia na arrecadação de alçapão fechado para o mundo. “C” sabia que ficaria em segurança. Caminhando pelos corredores do museu, o que o preocupava era a fragilidade do espólio em caso de bombardeamento. Tomou uma decisão. Precisava de carregar tudo o que conseguisse para a cave antes que fosse tarde demais. Mas por onde é que havia de começar? Pelas armaduras ou pelos quadros? Estava sozinho e não tinha muito tempo. Por isso optou por começar pelos mais leves. Quadros e peças comuns. Durante duas horas conseguiu esvaziar a sala renascentista sempre acompanhado pelo entusiasmo da cadela que abanava o rabo julgando tratar-se de uma brincadeira. Seguiram-se pontas de seta e alguns cacos de cerâmica da Pré-história enrolados em folhas de jornais, antes de entrarem nos sacos pretos do lixo. Pelas 5 da manhã já tinha conseguido evacuar o equivalente a duas galerias. Na cave os testemunhos da História acotovelavam-se sem educação nem respeito por antiguidades enquanto ocupavam o nicho mais confortável para se recolocarem. Lá fora o som dos combates aumentava de ritmo e intensidade. Rajadas dispersas de metralhadoras solitárias emitiam o rouco desespero da realidade urbana prestes a capitular. Ao amanhecer “C” carregava o sarcófago de madeira às costas depois de já ter “evacuado” a tampa para a cave. Do tecto começaram a tombar algumas partes do telhado, seguidos do estrondo de uma parede que desmoronava como se feita de areia molhada. Uma parte do telhado caiu mesmo em cima de “C” e da cadela que sucumbiram sem um ruído.
Dois séculos mais tarde, depois de o que restava do museu haver sido completamente reduzido a cinzas, a cidade decidiu erigir um novo edifício. Um novo espaço para a Câmara Municipal. Ao iniciarem as obras descobriu-se que o património outrora julgado perdido, ou pelo menos uma parte substancial dele, se encontrava dois pisos abaixo do nível do solo praticamente intacto. Reinaugurado meses depois, o novo Museu da cidade mostrava de novo o rosto com uma importante colecção de relíquias do passado que o tempo e o acaso conservaram além de guerras, catástrofes naturais e sucessivas gerações de cidadãos. Era particularmente interessante a descoberta (não registada em ficheiro nenhum) de um sarcófago egípcio com cadáver lá dentro, acompanhado por um cão. O assunto foi durante meses alvo de polémica na comunicação social, onde arqueólogos, historiadores e jornalistas se defrontavam em duas teses diametralmente opostas em relação àquele achado. A múmia não podia ser o utente daquele sarcófago, os egípcios preferiam gatos a cães, o sarcófago era se calhar um objecto comprado em feira hippie no séc. XX e não do seu tempo original, etc. Enquanto os egos se pavoneavam nas televisões, outra guerra se ia preparando, sempre mais destruidora e mais definitiva que a anterior…

ARTUR

Sem comentários: