quarta-feira, 29 de abril de 2009

“C” - ENTRE A CULTURA E O CAOS

A guerra tinha apanhado “C” no último ano antes da licenciatura em História. Como o irmão mais velho já tinha avançado ao abrigo do recrutamento obrigatório e a mãe estivesse sozinha, o exército permitiu-lhe adiar a mobilização. Entretanto havia conseguido o emprego de vigilante nocturno no Museu da cidade. A cidade onde morava, não sendo uma das principais, tinha a sua importância regional, concentrando em si o segundo maior porto de pesca do país. Naquela noite “C” estava preocupado. O irmão não escrevia já há duas semanas e as informações não eram nada animadoras. As tropas inimigas estavam-se a aproximar a uma velocidade enervante e “C” sabia que os sistemas defensivos da cidade eram demasiado fracos para conter um ataque em massa durante muitos dias. Sabia também que aquele era um dos pontos essenciais de uma segunda linha urbana, antes do ataque final à capital. Aquela guerra não lhe dizia muito. Entre deuses que falavam línguas diferentes ou políticas cheias de boas intenções como o Inferno ou a simples ganância de conquista do poder, as razões para a destruição e a matança eram sempre as mais estúpidas e as mais comuns para começar uma guerra. Enquanto bebia o seu café trazido de casa antes da primeira ronda da noite, “C” pensava por etapas em voz alta, falando para a sua cadela “Batata” que o acompanhava. Ninguém se tinha lembrado de um plano para protecção das peças do museu em caso de bombardeamento. As galerias da cave lá de baixo estavam meio ocupadas com os arquivos, as peças em espera para restauro e uma série de materiais auxiliares de exposição. Ao contrário dos museus da capital não havia sido estabelecido um plano de contingência no caso da guerra passar por ali. O administrador do museu era um seboso sobrinho do Presidente da Câmara que já estaria a milhas dali com o rabo entre as pernas. A juventude de “C” não o fazia conseguir encaixar como é que um tipo tão ignorante estivesse à frente dos destinos do museu. É claro que a sua grandiosidade não era comparável com os museus da capital se bem que o facto de se tratar de uma cidade fundada pelos romanos permitisse a exibição de uma série de peças bastante antigas e importantes a nível arqueológico que enriqueciam o seu património. Desde bustos de Governadores romanos a armaduras da Idade Média, passando por um sarcófago egípcio até quadros do Renascimento, o panorama era bastante vasto e rico sendo visita obrigatória da maioria das escolas ao longo do ano. Os estrondos da artilharia inimiga faziam-se ouvir desde pouco antes do jantar. A mãe tinha ficado devidamente instruída por ele. Dormia na arrecadação de alçapão fechado para o mundo. “C” sabia que ficaria em segurança. Caminhando pelos corredores do museu, o que o preocupava era a fragilidade do espólio em caso de bombardeamento. Tomou uma decisão. Precisava de carregar tudo o que conseguisse para a cave antes que fosse tarde demais. Mas por onde é que havia de começar? Pelas armaduras ou pelos quadros? Estava sozinho e não tinha muito tempo. Por isso optou por começar pelos mais leves. Quadros e peças comuns. Durante duas horas conseguiu esvaziar a sala renascentista sempre acompanhado pelo entusiasmo da cadela que abanava o rabo julgando tratar-se de uma brincadeira. Seguiram-se pontas de seta e alguns cacos de cerâmica da Pré-história enrolados em folhas de jornais, antes de entrarem nos sacos pretos do lixo. Pelas 5 da manhã já tinha conseguido evacuar o equivalente a duas galerias. Na cave os testemunhos da História acotovelavam-se sem educação nem respeito por antiguidades enquanto ocupavam o nicho mais confortável para se recolocarem. Lá fora o som dos combates aumentava de ritmo e intensidade. Rajadas dispersas de metralhadoras solitárias emitiam o rouco desespero da realidade urbana prestes a capitular. Ao amanhecer “C” carregava o sarcófago de madeira às costas depois de já ter “evacuado” a tampa para a cave. Do tecto começaram a tombar algumas partes do telhado, seguidos do estrondo de uma parede que desmoronava como se feita de areia molhada. Uma parte do telhado caiu mesmo em cima de “C” e da cadela que sucumbiram sem um ruído.
Dois séculos mais tarde, depois de o que restava do museu haver sido completamente reduzido a cinzas, a cidade decidiu erigir um novo edifício. Um novo espaço para a Câmara Municipal. Ao iniciarem as obras descobriu-se que o património outrora julgado perdido, ou pelo menos uma parte substancial dele, se encontrava dois pisos abaixo do nível do solo praticamente intacto. Reinaugurado meses depois, o novo Museu da cidade mostrava de novo o rosto com uma importante colecção de relíquias do passado que o tempo e o acaso conservaram além de guerras, catástrofes naturais e sucessivas gerações de cidadãos. Era particularmente interessante a descoberta (não registada em ficheiro nenhum) de um sarcófago egípcio com cadáver lá dentro, acompanhado por um cão. O assunto foi durante meses alvo de polémica na comunicação social, onde arqueólogos, historiadores e jornalistas se defrontavam em duas teses diametralmente opostas em relação àquele achado. A múmia não podia ser o utente daquele sarcófago, os egípcios preferiam gatos a cães, o sarcófago era se calhar um objecto comprado em feira hippie no séc. XX e não do seu tempo original, etc. Enquanto os egos se pavoneavam nas televisões, outra guerra se ia preparando, sempre mais destruidora e mais definitiva que a anterior…

ARTUR

“M” – ENTRE O MAR E AS MONTANHAS

“M” vivia perto o mar e desde pequeno que se sentia fascinado por um rádio que o avô gostava de ouvir todas as noites em detrimento da televisão. Nesse rádio, na patilha seleccionadora de frequências, havia a Onda Curta, uma espécie de alcance planetário capaz de encontrar qualquer estação de rádio em qualquer parte do mundo. Certas noites, avô e neto ficavam ali em silêncio a receber idiomas estranhos e músicas exóticas que o mais velho ia identificando. Marroquino em oração na mesquita, noticiários russos, folclore chinês, etc. O mundo cabia naquela caixa de sons entrando e saindo ao sabor do botão da sintonia, intervalado de ruídos imperceptíveis, testemunhos “squelch” do vazio ou da geografia das estradas do éter. Quando já estavam fartos de correr mundo tentavam encontrar as comunicações das embarcações de pesca. Era a última fase do serão: ouvir as mensagens dos pescadores de um barco para o outro. Umas vezes ficavam apreensivos em noite de temporal, outras riam-se à gargalhada com os palavrões ou os pontapés na gramática que davam. Antes de desligar o aparelho o avô dava a noite por encerrada com uma interjeição que o fazia rir desde pequeno. Olhava para ele do cimo dos seus fartos bigodes brancos e dizia a palavra mágica: “Trolaró Dumdum”. Esse era o toque de recolher.
Quando “M” cresceu continuou a viver na mesma casa do avô após a sua morte. Por lá casou e teve os seus filhos. O rádio das ondas curtas manteve-se no escritório e em funcionamento mas um dia “M” decidiu que queria mais. Lembrou-se então de adquirir o equipamento necessário para se tornar radioamador. Assim, as suas noites passaram a ser de microfone na mão e ouvido à escuta de um hipotético interlocutor. Deu-se o nome pomposo de Águia 30 e com esse indicativo perscrutava o infinito, convidando alguém a sentar-se na sua sala para dois dedos de conversa. Só que, por insuficiência técnica, por incapacidade da aparelhagem ou aselhice do dono, o certo é que nunca ninguém respondia aos chamados de Águia 30. O tempo foi passando, os filhos foram crescendo e… nada. “M” envelhecia alegremente mas não desistia. Todas as noites, religiosamente, lá estava ele agarrado ao microfone: “ Alô. Aqui Águia 30, escuto!” E a escuta prolongava-se sem que ninguém se dignasse responder. Os netos baptizavam-no de “águia sem retorno”, a mulher deixou de ligar, limitando-se a servir-lhe um chá entes de se ir deitar. Para não dar o tempo por perdido, “M” voltava a ligar de vez em quando o aparelho de ondas curtas. Uma das sessões mais animadas tinha sido numa noite de Verão em que tinha conseguido interceptar as comunicações dos bombeiros num incêndio na serra. Ficou até de manhãzinha atento pois o fogo poderia alastrar até perto de onde vivia. Felizmente não foi assim. Noutra noite, quando já tinha pontapeado devidamente o equipamento de radioamador resolveu mostrar o outro aparelho ao neto mais velho. Ficaram ali algum tempo até terminarem nos pescadores. Depois o neto foi-se deitar e “M” continuou à escuta. Estava meio adormecido quando julgo ouvir de um dos barcos uma interjeição familiar. “Trolaró Dumdum” Abriu os olhos meio aparvalhado. Seria mesmo aquela comunicação que ele teria ouvido??
Na manhã seguinte a mulher de “M”encontrou-o virado para o mar, sentado no cadeirão do escritório com o rádio de onda curta ligado. Parecia estar a dormir embora o seu coração já não batesse. O rosto tinha uma expressão tranquila, sinal de ausência de dor. Apagou o rádio e ficou ali por uns instantes a fazer-lhe festas no cabelo enquanto observava pela janela o lindo dia de Sol a erguer-se sobre o mar.

ARTUR

“J” E OS JOGOS

J era um homem que no passado tinha tido grandes projectos e ambições na sua área de trabalho. Umas vezes por culpa sua, outras por razões completamente exteriores à sua vontade, a maior parte dos seus projectos acabou por não se concretizar. Umas vezes por rasteiras invejosas, outras por inércias gigantescas, outras ainda por razões do dever, da obrigação distribuída por uma série de pressupostos que de comum tinham o facto de ignorarem a vontade dele. Tinha chegado do médico com uma série de advertências em relação aos cafés, cigarros, álcool e um sem fim de restrições em forma de aviso cardíaco. “Bardamerda” – pensou, enquanto abanava a cabeça afirmativamente ao senhor de bata branca muito sério e antecipador de males. – Preservar a vida porquê? Será que habito num Paraíso cujo único problema é o de não se dar a conhecer em dia nenhum? Continuar a carregar pedras em nome de quê? Da imperfeição humana que dá mais dores do que um par de coices de mula furiosa? Da inexorável marcha degradante do corpo no plano inclinado do fim? Da insistência absurda da espécie em se manter animalesca mesmo na presença da sua finitude? Da repetição dos erros com a memória deles? Bardamerda.
Sabia que tinha mais um projecto para concluir mas desleixava-se voluntariamente com ele. Talvez fosse já uma das medidas encontradas de combate ao stress. Sentava-se à frente do computador, abria o documento em questão, lia-o durante alguns minutos e devolvia-o ao arquivo. A seguir vasculhava a prateleira dos jogos e escolhia um. Cartas, As Cruzadas, Soldados perdidos em floresta asiática, aviões supersónicos em missão sobre as águas do Golfo. Nessa altura vivia intensamente a fantasia em que mergulhava. Vociferava contra a batota da banca em ter baralhado mal as cartas, vibrava com a tomada de Jerusalém, cansava-se na corrida virtual pela selva à procura do esconderijo ideal que despistava os seus perseguidores, ficava triste por ter sido abatido por radares inimigos ao largo de Tripoli.
Esta era a sua vibração. Um mundo virtual mas tão intenso que o fazia voltar à vida, renascer emoções genuínas após a sua entrada. Muito mais que um filme ou um livro. Era despido de si e do mundo que o rodeava que "J" se sentia vivo, sem obrigações nem culpas. Ele já não era ele nem o outro. A sua mente transportava-se para um ecran de vários milhares de “pixels” para se transformar num elemento integrado do mundo que escolhia numa prateleira de CD’s.
Para trás deixava a vontade, a frustração, as dores e qualquer tipo de elemento de contrariedade. Aos poucos “J” já não era “J”, mas qualquer coisa entre a imaginação e a alienação mental. O seu destino estava traçado como traçados estavam todos os destinos de quem alguma vez se atreveu a estar vivo. As suas costas vergavam com o peso das dores e tristezas que lhe caíam em cima como condenações por delito de existência. Os seus dias no trabalho eram acções mecanizadas, o estritamente necessário para não morrer de fome e não dormir ao relento. Até o sorriso era mecânico, de acordo com as formalidades comportamentais. Em casa libertava-se em frente aos jogos, escolhendo os cenários, sendo personagem de realidade virtual. Lá fora o planeta e a sua espécie aceleravam os seus rituais de barbaridade e auto-destruição a caminho do fim, sem que nada se interpusesse nessa gigantesca empreitada. “J” estava fora desse jogo. Desistiu de hipotecar a consciência, de alugar a sua boa vontade, de vender os poucos valores que lhe restavam. Era praticamente nada. Um “nada” com um projecto ainda por acabar que acabaria quando lhe viesse a vontade de o fazer. Até lá projectava a mente para dentro de mundos inventados na esperança que nesse último reduto se pudesse encontrar alguma das migalhas da eternidade.

ARTUR

terça-feira, 21 de abril de 2009

LINHA DE PASSE


LINHA DE PASSE

Walter Salles / Daniela Thomas

Brasil, 2008

Numa favela de S. Paulo moram quatro meio- irmãos com a sua mãe comum, Cleuza, referência de unidade no pequeno núcleo familiar. Cada um, mais do que perseguir um sonho, limita-se a tentar sobreviver com as duras côdeas que a vida lhes vai dando todos os dias. Dânio é um futebolista que tenta desesperadamente encontrar uma oportunidade no futebol profissional. A completar 18 anos, tudo começa a ficar muito mais difícil. Atrás emergem milhares, mais novos e mais talentosos, cilindrando por completo as suas aspirações. Dênis trabalha de noite numa bomba de gasolina e converte-se à religião sendo elemento de uma pequena igreja onde descarrega a sua ansiedade. Dinho trabalha na sua motorizada como correio (motoboy), percorrendo as ruas de S. Paulo diariamente. Por fim, Reginaldo, o mais pequeno, apesar de ter talento para o futebol, a sua vontade é ser condutor de autocarro tal como o seu pai que nunca conheceu. Por isso passa os seus tempos livres a viajar no transporte público espreitando os rostos dos motoristas na esperança de que um deles seja o seu progenitor.
Tendo como pano de fundo a magia do futebol e o espaço urbano de uma das maiores cidades do mundo, o filme decorre ao ritmo de uma viagem de mota pelas ruas, saltando da realidade de um personagem para a de outro a uma velocidade estonteante. A este propósito é extremamente relevante a cena de abertura em que Cleuza assiste a um desafio de futebol do seu clube do coração (Corinthians) no estádio do Morumbi. À entrada das equipas em campo ergue-se a bandeira gigantesca do tamanho da bancada por sobre as cabeças dos fãs. As mãos erguem-se no ar para melhor manipular o movimento do enorme pano. De mãos de multidão erguidas no ar dentro do estádio o plano passa para outro cenário de mãos na mesma posição, só que desta vez dentro da igreja frequentada por Dênis.
O destino destes jovens está irremediavelmente traçado num jogo onde já perderam antes de nascer. Ninguém quer saber deles ou dos seus sonhos e aspirações. Acabarão inexistentes no anonimato de uma realidade que os devora sem tréguas. E no entanto eles riem, choram, lutam e sonham. Numa palavra: vivem. É esse anonimato que Salles homenageia ao retratar um pouco da nenhuma memória de quem, tendo passado por este mundo nunca teve direito a existir.
Com um traço inequivocamente neo-realista de registo social, o filme segue a linha de outros títulos a que o realizador já nos tinha habituado, como por exemplo o extraordinário CENTRAL DO BRASIL (98). A realidade é simplesmente retratada sem julgamentos.
Na impossibilidade de alterar o que quer que seja ao “estado das coisas”, resta ao homem uma atitude que, ainda que ao de leve, o consiga contrariar. Coloca-lhe um espelho à frente e regista a realidade enquanto memória do absurdo da sua própria condição.
Nomeado para a Palma de Ouro do último Festival de Cannes, o filme acabaria por arrecadar o prémio para a melhor actriz Sandra Corveloni.

Artur Guilherme Carvalho

Ornamenta #014


quarta-feira, 15 de abril de 2009

O TIL



Ia no carro com a rádio ligada sem me preocupar com muita coisa quando de lá de dentro me sai esta “pérola” dos TAXI. Em tempo nenhum viajei para uma tarde de Domingo onde havia aulas no dia seguinte e a tristeza dos dias há muito que havia sido apreendida pelas nossas consciências. Viajei para uma “boite” manhosa na Rua Correia Teles, mais concretamente o TIL. Se não conhecíamos os donos, por aqueles dias já éramos grandes amigos deles. Ao TIL viajava todo o tipo de fauna urbana desde putos como nós a marginais, policias, actores, bêbados, vendedores de droga, e tudo o mais que se poderia inventar. Naquela tarde de Domingo o ambiente estava bastante morno e triste, talvez por se estar a chegar a um fim de férias. As cervejas começaram a circular, os namorados a acender, os fumos a esvoaçar e, aos poucos as coisas iam animando. Uma parábola das nossas vidas desenhava-se naquela”matiné” dançante. Conscientes de que pouca ou mesmo nenhuma prenda boa nos poderia sorrir no futuro que se aproximava à nossa frente, havia a grande vantagem de ter vinte anos e a força que isso nos dava para aguentar o que viesse. Havia meio milhão de desempregados antes de começarmos a procurar trabalho, o país devia milhões ao FMI, os políticos chafurdavam na sua eterna e narcísica viagem ao fundo dos seus bolsos, etc. Por outras palavras, a Vida era uma velha pobre e andrajosa que nos acenava desculpas vazias para nos explicar que nela não tínhamos lugar. Dali para a frente era penar e continuar a penar…porque sim.
“Porque sim” para nós era curto, injustificável e, em última análise, um gigantesco absurdo sobre o qual nada conseguíamos perceber. Havia as namoradas, a cerveja e a droga que nos iam aliviando a tensão, desligando por instantes o cabo da consciência, a linha do pensamento. Nesse adormecimento temporário dizíamos à Vida que se fizesse a ela própria porque nós tínhamos mais em que pensar.
Devia faltar pouco para a hora do jantar, para os rostos dos nossos pais, quais estátuas de Buda em templo afegão, olhares no futuro, discurso no sacrifício e distância demasiado larga para poder perceber porque é que aquelas criaturas que tinham gerado eram de uma maneira tão estranha de entender. O eterno problema de comunicação entre deuses e homens.
Devia faltar pouco para a hora do jantar quando já tudo o que era para aquecer tinha atingido o topo da escala do termómetro. De repente começou a tocar esta música aparentemente vazia mas tão inocente que se acendeu qualquer coisa naquela discoteca. Como que previamente ensaiados, saltámos para a pista e dançámos. Dançámos feitos loucos como se aquela fosse a última dança das nossas vidas. Gritávamos a plenos pulmões: “Quem vê TV, sofre mais que no WC”. Casacos voavam no ar atrás das miúdas mais leves. Saltávamos como os homens do Paleolítico faziam em volta da fogueira em frente às paredes previamente desenhadas com figuras de animais e partes anatómicas humanas como uma mão, em véspera de uma grande caçada. Bisontes sob flechas desenhavam-se nas sombras das luzes coloridas, mamutes mortos à palmada, pterodáctilos abatidos à pedrada.
Naquela tarde dançávamos aos gritos como se não houvesse amanhã. À Vida dizíamos que viesse chatear noutra altura. Naquela tarde sabíamos que não tínhamos lugar em lado nenhum. No país atolado de dívidas e fome, no mundo que nos ignorava, na existência que nos condenava pelo simples facto de estarmos vivos.
Mas naquela tarde, ao menos naquela tarde, enquanto durava esta música…nós fomos felizes

ARTUR

Ornamenta #009


terça-feira, 14 de abril de 2009

O FIM DE COISA NENHUMA

Estava numa daquelas noites em que nada lhe apetecia. Pairava entre a sala e o escritório como andorinha perdida em tarde de Primavera a chover. Os rugidos televisivos iam ficando cada vez mais imperceptíveis de significação até se fundirem num ruído de fundo distante e permanente. Sentou-se à secretária empenhado em continuar o romance que estava a escrever mas que nunca mais conseguia acabar. Agora percebia porquê. Percebia porque é que insistia em adiar, porque é que não lhe dava vontade nenhuma quando tinha todo o tempo para o fazer e espaço nenhum para se queixar. Tinha-se apaixaonado por ele. Cada detalhe, cada capítulo, cada cena construída de forma meticulosa, sem deixar nada ao acaso. Cada personagem, a sua coerência interna, a sua linha de actuação ao longo da história, tudo estava programado com um rigor elevado. O rigor de quem ama muito aquilo que está a fazer. Acendeu o cachimbo entre hesitações bolorentas que a humidade desenhava nos fósforos. Finalmente lá conseguiu começar a dar umas baforadas a muito custo. Olhou para os livros na estante e fixou-se num com quem já não falava há muito tempo. Foi buscá-lo, dedilhou-o e tentou-se lembrar desta página ou daquela mais adiante. Sem efeito. Agarrou-o então e começou a devorá-lo, a falar com ele como se fosse a primeira vez que conversavam. Deitou-o abaixo em dois dias. No fim sentiu-se feliz por ter voltado a ler aquele livro escrito com a elegância e a desenvoltura de um homem que amava as pessoas, amava o seu tempo, amava a vida. Por isso tinha forçosamente que amar o que escrevia. Esse autor já tinha ido para o outro lado há muito tempo mas os seus livros ficavam como interlocutores válidos das suas conversas. Os livros ficam e continuarão a ficar nas nossas casas, a contar a nossa história e a dos outros, a conversar connosco. Os livros são os companheiros de sempre que imortalizam e permitem vencer a morte mantendo as conversas sem limite de tempo. Os livros são o fim de coisa nenhuma.
ARTUR

Ornamenta #008


sexta-feira, 3 de abril de 2009

PARIS E O CINEMA - PARTE III


LA HAINE (O ÓDIO)

Mathieu Kasssovitz

França (95)

Sobre este filme várias crónicas poderiam ser escritas que nunca conseguiriam esgotá-lo. Isto porque a qualidade, a postura da abordagem e o desassombramento em que ele corre nos atingem como um soco no estômago. Comecemos pelo preto e branco da película a decorar uma existência cinzenta e sem sentido: a da realidade suburbana de Paris habitada por uma população jovem desocupada e perdida no esquecimento das oportunidades que a sociedade tem para lhes dar. Comecemos pela violência sem sentido que preenche todas as esquinas das ruas desse realidade, o apelo do crime como única saída para uma possibilidade de existência. Comecemos pelo paleio gasto e desactualizado das realidades étnicas e da sua confrontação baseada em princípios raciais como fórmula de justificação de todos os conflitos, de todas as exclusões, de todos os motins. Comecemos em algum lado, não sem antes perceber que com este filme ficou registado um ambiente de barril de pólvora prestes a explodir a qualquer momento, uma profecia filmada das explosões de Outubro e Novembro de 2005 e, mais tarde em 2007, não havendo espaço em lugar nenhum para dizer que não tinha havido aviso…
Vinz (judeu), Said (árabe) e Hubert (africano) são amigos e têm em comum serem todos cidadãos franceses, partilhando o mesmo espaço urbano. Na sequência da morte de um vizinho deles (Abdel) provocada por tortura na esquadra da polícia, sucedem-se as manifestações de desagrado e os motins. Num deles, um polícia perde a sua arma de serviço. Vinz encontra-a, ficando com ela. A rotina destes três amigos ganha então uma nova dimensão no subúrbio. Os seus sonhos vagueiam numa atmosfera cinzenta e diluída pelas drogas com grandes dificuldades de concretização.
Ao longo do filme ouve-se uma história de um homem que ao cair de um prédio alto, à medida que vai passando por cada andar vai dizendo o seu número acrescentando a frase: “Até aqui vai tudo bem!” Segue-se o pensamento que o acompanha. “O pior não é a queda, mas o impacto final. O pior não é o impacto mas a queda.” E é nesta lengalenga em circuito fechado que se apresenta uma realidade em que cada elemento trabalha isolado dos restantes. O conflito será inevitável. Com os “Skins”, com a polícia, com os vendedores de droga, com tudo e com coisa nenhuma. O pior não é a queda mas o impacto. O pior não é o impacto mas a queda. E a Vertigem? Quem é que a controla??

ARTUR

quarta-feira, 1 de abril de 2009

ENSAIO DE FUGA

A. sentou-se ao computador assim que chegou a casa. A conversa com a médica no hospital não trazia nada de tranquilizante, se é que alguma tranquilidade se pode receber nesse espaço e a falar com médicos… A tensão arterial, coiso e tal, e põe-te a pau com a escrita antes que a escrita te dê com o pau a ti. Enquanto ligava a máquina e ouvia os zumbidos de arranque julgou ver um vulto parecido com um motorista ou um par de olhos a espreitar pela dobra da persiana ou uma imagem de si mesmo reflectida no espelho da consciência… definitivamente qualquer coisa que o observava. Não fez caso e começou a dedilhar mais um texto, indiferente a todos os acontecimentos daquele dia. A hora era solene e o tempo pedia reflexão, balanço, contas a acertar. Mas a Matemática nunca tinha sido o seu forte e a Contabilidade uma actividade que o assombrava mais do que a própria morte. Arrancou com o texto vendo as frases desenharem-se sem esforço, as ideias espraiarem-se sem pressa, o pensamento a navegar em mar calmo. Mais uma vez tentava dizer aquilo que pensava, tentava comunicar aos outros as suas breves apreciações, marcando com as palavras os espaços da sua observação. Era assim desde que se conhecia. Pensamentos, histórias, enredos estruturados entre personagens inventados que ganhavam vida própria à medida que corriam pelos corredores da narrativa. Fez uma pausa para reler o que tinha escrito. Do canto da sala reparou outra vez num homem vestido de motorista, daqueles à moda antiga com boné e luvas como se viam nos filmes dos anos 20. Olhou para ele e sorriu. “Vens-me buscar ou estás aí só para me avisar?” – pensou para si mesmo.
A hora pedia balanço mas isso era o que menos lhe interessava. A frase mais adequada ao momento seria: “Puta que pariu! A mim, à Vida, à Morte e a este Caos irremediável que todos andamos a construir em cada dia.” Há uns anos atrás teria siso capaz de entrar, não em balanços, mas em negociações. Diria que precisava de mais algum tempo até conseguir escrever mais um ou dois romances. Agora, não. Era-lhe completamente indiferente que escrevesse mais um, ou nenhum. Estava cansado. Não era só o coração que lho dizia, era a própria Vida a fazer o balanço de si mesma. Não voltaria a regatear mais tempo porque sabia perfeitamente que o tempo que viesse seria exactamente igual ao tempo que já tinha sido. Uma série interminável de portas fechadas, desencontros, equívocos, contratempos de tornar o “quase” numa analogia de impossibilidade permanente. Vivia num país miserável povoado de gente mesquinha e ignorante, orgulhosa da sua ignorância, cuja actividade principal era massajar, enaltecer e impor o seu Ego como numa guerra onde as principais armas eram a inveja, a intriga e a troca de favores. Tinha nascido numa família onde nunca tinha conseguido encaixar. Por culpa de ninguém, por razão nenhuma. Foi como foi. Como é a Vida e a Morte. Tudo acaba? Pois acaba, e ainda bem, porque há durações que mais não são do que infernos permanentes com muito poucas pausas para descansar. Olhou outra vez para o motorista: “ Diz ao teu patrão que não há mais negociações da minha parte. Estou pronto. Quando ele quiser, que venha.”
Voltou ao texto com a sensação de ter visto o motorista retirar-se, provavelmente levando consigo alguma coisa para transmitir ao patrão, à empresa de transportes ou aos avisos do corpo. As frases continuaram a alinhar-se como flores silvestres a decorar um prado na Primavera. Estava a correr bem. Acabou mais dois parágrafos e foi até à cozinha. Abriu a janela e acendeu um cigarro que fumou devagar. Pelo contorno incerto do fumo julgou encontrar um par de olhos que o observavam. Os olhos que ameaçavam lágrimas sofridas. Os olhos da negociação afectiva, da frase “se não fosse por este, se não fosse por aquele…”. Os que cá ficam, os que vão sofrer com a tua ausência. “Vão sofrer exactamente o que eu sofri pelos que já foram - pensou - É a lei da vida e nada o vai alterar.” Lamenta-se que outros sofram por estarmos ausentes mas, morrer é só uma modalidade em que esta cena decorre. Há milhares de maneiras de não estar perto dos que amamos ao longo de uma vida inteira. Porque temos que ir trabalhar, porque estamos cansados, porque está frio, porque não há dinheiro, porque nos chateámos, etc, etc. Não. Definitivamente não podia responder aos olhos que o seguiam com respostas apaziguadoras, palavras de conciliação, sacrifícios que lhes secassem as lágrimas. Mandou-os dar uma volta apagando a beata no cinzeiro. Gostaria muito de lhes ser útil, só que daquela vez, seria útil a si mesmo.
O texto começava agora a aproximar-se do seu término. As variantes encontravam-se nas esquinas da concordância final que lhe daria o tom consequente e a harmonia necessária para poder ser lido. Continuou entusiasmado como sempre ficava quando as frases lhe saíam à vontade do pensamento. Estava cansado mas satisfeito. Olhou para o espelho do fundo do corredor e viu um A. como ele a escrever ao computador. Sorriram um para o outro. Trocaram olhares e pensamentos próprios de dois amigos eternos que sempre se ampararam em todas as falhas do caminho. “Até sempre irmão” – despediu-se A. – a gente um dia vê-se.” As duas imagens deram uma abraço apertado e longo sem tremores nem choradeiras. Como dois guerreiros irmãos na véspera da última batalha.
O texto começou a ficar desfocado, as frases a dançar, o ecran a abrir e a fechar. De repente surgiram pessoas vestidas de branco no lugar das frases agitando instrumentos indecifráveis. Seringas? Desfibrilhadores? Bisturis?
A. nem se preocupou mais em apagar o computador. Fechou os olhos embalado num sorriso tímido e cansado.

ARTUR