sábado, 15 de novembro de 2008

SERMÃO AOS MATRAQUILHOS V, E TAL

O despertador tocou naquela posição mais irritante que a escolha distraída tinha programado, um zumbido estridente e monocórdico a lembrar baldes de água fria pelas costas abaixo - gostava de te dizer que - o tempo e a memória a crescerem muito devagar com a luz da manhã primaveril a entrar pelas frestas da persiana do quarto de solteiro em dois ou três feixes dourados salpicados de microscópicos graõzinhos de pó - gostava de te dizer que - uma gravata a coroar uma camisa engomada que abraçava as costas da cadeira a antever alguma solenidade, imediatamente antes da confirmação já amadurecida do teu espaço vazio no movimento do meu braço - gostava de te dizer que - o papel da convocatória do Tribunal de Família na mesa de cabeceira a indicar a data da comparência frente ao juiz, anos e anos de uma vida partilhada, família, espaço, amores, ódios, frustrações, esperanças, medos, alegrias, discussões, aniversários (com festa e sem festa), Natal, férias, raivas, um papel impessoal, administrativo, seco e frio com uma assinatura ilegível de um funcionário qualquer, projectos, sonhos, o nascer dos filhos, os primeiros passos, as primeiras noites sem fraldas, desalento, desconforto, perguntas sem fim, barreiras cada vez maiores de transpor, dois barcos na mesma tempestade, a tentar furar ondas gigantescas, muito longe de terra, um papel dactilografado, em linguagem de manual de Administração Pública, e pronto. - gostava de te poder dizer que - O rosto resignado da minha mãe que dizia tudo sem ter necessidade de abrir a boca, uma lágrima disfarçada num ângulo escuro do rosto, ( E agora, quando é que vou voltar a ver os meus netos) " Não te atrases filho, a audiência é às nove e meia" - gostava de ter tido tempo para te poder dizer que - e afinal a vida tem estas fases em que tudo parece desabar à nossa volta como um castelo de cartas sem que a nossa vontade seja para ali chamada. - gostava de ter tido tempo para te poder dizer que - E por mais que se queira segurar de um lado, remendar de outro não há nada que se possa fazer, como um camião que nos atropela quando estamos de costas, sem tempo nem aviso. Visto-me a correr, bebo o café em andamento com metade do casaco já vestido e outra metade por vestir em gestos de artista de circo desajeitado e tenho ainda tempo de ver o meu pai, olhar apreensivo, sem censura nem compaixão, um ar preocupado de quem interroga o destino numa esquina lenta da existência, o futuro que já esteve escrito e deixou de estar. Respondo-lhe com outro olhar que diz que a culpa não é dele nem minha, nem de ninguém. A culpa não é para aqui chamada, as coisas acontecem porque acontecem e a nossa única obrigação é conduzir o barco sem se afundar. Respondo-lhe com um beijo no espaço da cara onde repousa desde a eternidade o mesmo "Old Spice" matinal que tantas vezes me acordou com um cheiro sorridente. - gostava de ter tido tempo, naquela tarde em que o futuro deixou de ser futuro, para te dizer que - Tribunal, advogados, funcionários apressados transportando molhos de papéis em todas as direcções, outros casais em estado terminal como nós, cumprimentos, paleio de ocasião, a espera para poder entrar. - naquela tarde em que o futuro deixou de ser futuro para se transformar num presente prolongado e doloroso, gostava de ter tido tempo para te poder dizer que - Felizmente sem guerra, conflito civilizado, sinal dos tempos modernos, de acordo em relação ao mais importante, os filhos, a casa de família, a pensão de alimentos, o juiz a confirmar as vontades e a proclamar a sentença de divórcio, o regresso aos dois mundos que foram um só, mais alguma conversa de circunstância, o ódio a perder o sentido, a esmorecer lentamente no circuito da racionalidade, um último olhar a finalizar o ritual - gostava de ter tido tempo para te dizer que não tenho na memória nenhuma palavra com o teu nome escrito nela...

6 comentários:

Clarice disse...

Fiquei sem ar ao ler este texto, mas não morri, porque textos com a vida toda lá dentro não podem nunca matar!

"Ganda Malha"! :)

Artur Guilherme Carvalho disse...

A vida toda num livro é o objectivo de muitos escritores. Normalmente leva-se uma vida inteira nisto...e nunca se consegue...
ARTUR

Clarice disse...

Consegue-se pois! Dá uns passos atrás, cria a distância necessária e vais ler as tuas palavras como se fossem a vida inteira. E sabes que mais Artur, essa vida que se pode ler toda num texto é uma lição de que se pode viver toda num dia, e esse dia ser o marco mais bonito da nossa história! Depois? quem conseguir viver a recordar é mais feliz...

*Belo texto o teu!

Anónimo disse...

Adorei o seu post, engraçado como me revejo nele. Consegue fazer um exercicio que poucos de nós temos a capacidade de fazer e muito menos passar para o papel. Há sempre a tendencia de nos culparmos ou procurarmos culpados, mas na verdade é tão marginal este aspeto. Ninguem se quer divorciar, acontece...
E o equilibrio volta...em outro patamar

Artur Guilherme Carvalho disse...

Graça, agradeço as suas palavras. Esteja à vontade para nos visitar e deixe semre o seu comentário.
ARTUR

Artur Guilherme Carvalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.