terça-feira, 21 de outubro de 2008

A SILENCIOSA DANÇA DAS SOMBRAS

As conversas, dizem, são como as cerejas. As histórias também. O ponto que cada um acrescenta ao conto que ouve quando o repete a alguém, é no fundo a mais interessante e antiga das actividades humanas. Como se, partilhando uma história espantássemos a solidão e abríssemos a porta para uma sala ampla e confortável onde todos cabemos porque todos a ela pertencemos…
Às vezes sento-me aqui no meio da sala às escuras e deixo a casa respirar. Melhor, ouço o que a casa tem para me dizer. - A ausência de um toque que uma mão ocupou não sei onde. - O protesto da madeira dos móveis em breves estalidos anuncia a abertura de uma pequena sinfonia de comunicação. As sombras… As danças que as luzes da rua obrigam a parede a executar, o rasto rectilíneo dos faróis dos automóveis que me adormecia em pequeno. – A mão que segurava a minha no escuro e… -
E continuo a ouvir adormecendo a minha sede com um cognac antigo que me queima por dentro sem que isso me importe.
A casa está vazia, ausente de ruídos, e no entanto ela respira, conta histórias através de gemidos de ausências, de recordações. Fala-me do canto sobre aquela mesa redonda onde pousam retratos de gente antiga que aqui morou. Altivos uns, sorridentes outros, ali estão, prontos para sinalizar a sua parte de advertência, de incentivo ou de censura. – Ia jurar que vi ali o toque da mão que… - Bigodes bem aparados a decorar uniformes, toucas de passeio, óculos de cientista, marcos da estrada da família. Uns conhecidos, lembrados. Outros, que não conhecendo aprendi a respeitar.
Um som escapa-se de uma canalização a precisar de reforma. É a casa que se queixa como um velho: “Apanha-me esta parte toda aqui deste lado. Vê?” – como se estivesse a falar com o médico.
O soalho que range de tantas em tantas passadas. – A tua mão que abraçou a minha muito pequena e me disse que “ Hoje vamos acabar com o medo”, e assim foi. Apagámos as luzes e caminhámos pela sala às escuras contigo a fazer de cicerone ao meu tacto hesitante. “Isto é a mesa da sala, aquilo o móvel dos livros”- E tudo se encaixava numa nova ordem sem iluminação e o escuro não tinha razões nenhumas para não gostar de mim, para me assustar. Era mais uma coisa que
Sento-me outra vez no sofá a relembrar o toque da tua mão e a tranquilidade da tua lógica que me matou o medo a partir desse dia.
A mesa esgotada de cadeiras, a algazarra das noites de Natal, os brinquedos, um cão excitado de contente por ver o contentamento dos donos. A mesa, com uma cadeira a menos de ocupação nuns dias, e noutros a entrada de pequenas mãos que apareciam preenchendo esses vazios que ficavam.
As sombras sobre a silhueta dançante de um aparador que ninguém se lembra desde quando é que vive aqui. A jarra em espasmos de contorcionista com as flores paradas dentro dela. O toque da tua mão e de tantas mãos espalhadas ao acaso sobre aquela mesa ali do canto, tapadas pelo vidro da moldura.
A sala, as alegrias e as tristezas, as saudades do tempo ausente, os reencontros, sombras balançadas na parede ao som da música do néon lá de fora. Bailarico
Os olhares dos retratos, as mensagens cifradas, as parecenças comigo. Os livros, aparentemente imóveis mas prontos para se revelarem em histórias sem fim, lengalengas de emoções, filmes de reconstituição.
A casa respira se a soubermos ouvir. E fala-nos de si, de nós. A casa fala e continuará falando mesmo quando for a minha vez de posar ao lado dos retratos espalhados sobre a mesa do canto. Alguém dirá em silêncio: “Aquele ali…” indicando qualquer coisa, talvez um tempo, uma poltrona usada, a garrafa de cognac, um carrinho de brincar.
Aquele ali, dirá a casa, e estas dores que me apanham esta parte toda…
E as sombras a saltar sobre o aparador a alegria do movimento, fazendo inveja às flores imóveis dentro da jarra.
E nós de novo a juntar as mãos em cima da mesa do canto, retratos como os outros, a enviar advertências ou incentivo ou censuras aos que se sentarem na outra mesa maior. E o teu toque outra vez, o teu toque seguro que me guia por entre as sombras que dançam. O teu toque que me explica que não há nada a temer. A tua mão a apresentar-me a bigodes bem aparados sobre uniformes altivos, toucas de passeio, óculos de cientista… - O meu filho…
E eu para o soalho que range, para os móveis que estalam uma vez por outra. Eu para as canalizações queixosas de artrites da humidade, para o aparador, para as sombras que dançam em silêncio. Eu para a casa que aprendi a ouvir respirar : “ A minha Mãe…


ARTUR

3 comentários:

Carlos Lopes disse...

As casas nunca estão vazias, estão sempre cheias de nós mesmos. Excelente texto, meu sacana. Quanto à "Insónia", tenho-o à mão, mas ainda nem o comecei, verdadeiramente. Tenho 4 turmas de testes para corrigir e isso tira-me a pica toda. Blahhh!!!

Clarice disse...

Entrei por esta sala como se fosse minha… entrei por estas palavras porque espreitei e uma janela aberta na varanda em volta da sala, me convidou por uma fresta… porque é de vida que se trata, onde há morte, amor, ausência, medo de ontem e medo para sempre, medo de amar, e medo, só medo. Ou medo nenhum, entrega, que às vezes assusta. Nesta dança de “apontar” os retratos, os dedos apontam o coração, nele memórias que quando retratadas, descritas, revelam o que mais fundo que se guarda, que se transporta e se vive sempre… até quando o chão da casa fala.

Artur, este texto é lindíssimo. Quando o livro estiver concluído eu posso ir ao lançamento à caça de um autógrafo?
um beijinho

Artur Guilherme Carvalho disse...

Carlos: Obrigado. Quando acabar a Insónia tenho impressão que vou atacar a apreciação. Logo se vê. 1 abraço.
Clara: Oxalá possa ter um autógrafo meu.. é sinal que consegui publicar mais um trabalho. Obrigado