quarta-feira, 29 de outubro de 2008

ETERNIDADE

Nós… Sempre nós, na despedida e no reencontro, na alegria de um dia de Sol, na solidão de uma tarde cinzenta de chuva. Nós. Nas viagens uterinas revisitadas em cada mulher, na procura desenfreada de uma perfeição despida de memórias. Fantasma de vazio pousado na prateleira dos instintos. Nós, a fabricar uma vida. Mas sempre Nós.
Na carcaça de um brinquedo perdido na maré vazia do rio, meio enterrado em passagens de felicidade de bibe e panamá na cabeça. Somos nós na caixa esquecida no sótão da casa eterna, das cartas e dos discos, dos postais sobreviventes às cíclicas arrumações da primavera. As juras de amor e os primeiros poemas nos cadernos do liceu. A força desesperada de fazer valer os valores como rochas, de os querer continuamente fortes e eternos, desfeitos na preia-mar do tempo.
A lágrima do pranto sofrido e a canção exaltada do recomeço que tudo levanta do chão. Somos Nós.
Na vida e na morte, na força do acordar das manhãs e no frio do que não conseguimos compreender quando alguém nos escapa. São nossos os passos que se perdem, são nossos os choros das partidas, são nossos os risos que pairam sobre a existência ridicularizada. Somos Nós.
Uma mota que flutua sozinha de noite sobre uma estrada sem iluminação. Um pendura que a comanda sem ver o caminho e um condutor que apenas balança com as curvas à força de pernas. Esses sim, somos Nós. Não a existência, não a puta da vida. Sendo nós, somos a Eternidade. A Liberdade de Ser e sentir e amar a Humanidade toda num sopro. Sofrer com cada um e estender a mão. Gritar contra a barbárie, a exploração e a ganância que nos matam literalmente todos os dias. Essa é a vida… mas não somos Nós.
Uma onda cavalgada na perfeição do equilíbrio, a sintonia perfeita com a Natureza. Somos Nós.
Somos Nós, não as almas danadas, não os espíritos desesperados, apenas Seres no exílio. Doutro lado viemos para aqui penar ou aprender ou passar um tempo que é importante na nossa construção. No mundo vivemos sem a ele pertencer. Como sombras fugazes, círios no escuro de duração limitada. Nas religiões, nas políticas, na ganância dos negócios, na martirização, na massificação da linguagem e do embrutecimento constante da espécie está uma espécie qualquer que vive, onde por vezes somos obrigados a viver…mas não somos Nós.
É importante não nos esquecermos de quem somos, do que fomos, do que poderemos ainda fazer. Porque por mais que nos apaguem a memória, enquanto por aqui andarmos temos de continuar a ser NÓS.
Uma realidade imensa que ultrapassa o ontem e o amanhã e nos converte um permanente HOJE.
No abraço solidário ao companheiro(a) em sofrimento, no amor que todos os dias devemos demonstrar aos que amamos, aos que nos amam. Aí sim, estaremos nós. Não as inúmeras tentativas de nos separarem com cores e bandeiras de rebanhos antagónicos que querem dizer exactamente a mesma coisa. Não quando nos colocam uma fronteira de ódio entre nós e os que adoram um deus com outro nome. Não quando se inventam todos os dias conceitos diferentes, razões de ódio para melhor nos poderem controlar. Raciais, religiosas, regionais, partidárias, tudo e mais alguma coisa serve e tem servido o propósito de melhor nos controlarem, de melhor aproveitar as nossas energias em seu benefício. Não, embora tendo-o alimentado durante séculos, nesse cenário não estamos Nós. Porque a certa altura do caminho deixámos de ter medo. Porque em determinada curva da rua nos apercebemos que a rua continua. Não terminamos na morte, mudamos apenas de forma de existir. Há que não ter medo em aceitar a eternidade na nossa consciência. Há que não ter medo de tantos bichos que inventam para nos atemorizar. Há que acordar e procurar as raízes das coisas através do conhecimento que não nos é entregue de mão beijada. Há que ir ao fundo do Ser, voltar acima e dizer: Estes somos Nós…


ARTUR

7 comentários:

Clarice disse...

Estes somos nós! Estes que escrevem assim!

Bela "malha"! (esta expressão não é minha´!) :)

Carlos Lopes disse...

Bela malha, indeed! Ontem estivemos juntos e nem te dei os parabéns por este óptimo texto. A razão é apenas uma: estivemos na presença do Mestre e isso fez-me esquecer dos que são seus bons aprendizes! Um abraço.

* a sms segue dentro de momentos.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Clarice: Quem reconhece as palavras chama-lhes suas. Porque o são mesmo.
Carlos: O Mestre apaga tudo à volta dele. Mas é a sua luz que ainda hoje nos explica como é que se chega lá.
ARTUR

A.Teixeira disse...

Gosto bastante deste texto, Artur. Esteticamente está muito bem conseguido e, sobretudo, acho que tem muita força. Contudo, sinto-o muito impessoal, pelo menos tomando em conta a pessoa que outrora conheci. Tratava-se de um moço que, se bem me lembro, todos os verões, se apaixonava aí umas duas ou três vezes… E de cada uma dessas vezes a paixão “batia” sempre forte….

Um desses “coups de foudre” durou toda uma viagem a desencadear-se, uma viagem de um barco da carreira ronceiro que ligava Olhão à praia do Farol. Ainda para mais, o objecto de tanta paixão, sentada a três/quatro metros de distância, contava a quem a acompanhava uma história trivial mas nada abonatória para a sua pessoa: a maneira como chumbara o (antigo) quinto ano…

Imagine-se! Naquele tempo ainda se chumbava e a expressão “apanhar uma raposa” ainda era reconhecida… Falho de conseguir saber o nome da sua nova paixão, alguém por perto, entre o irónico e o pretenso sofisticado, propôs que se adoptasse a alcunha de “Fox”, em alusão ao seu “feito” escolar. E “Fox” ficou… Aquela paixão, companhia de inúmeras outras viagens, nunca chegou a ter nome…

Isto não será um enredo de um “Verão Azul” à portuguesa, mas pareceu-me uma boa história para contar… Será que o autor do texto a pode desenvolver?...

Artur Guilherme Carvalho disse...

António... que surpresa. Bem vindo a esta humilde habitação que partilho com mais três amigos. Os tempos da Fox eram anteriores aos da CNN. Agora escrevinha-se por aí, em livros e longas metragens. Obrigado pela tua visita. Um abraço
ARTUR

A.Teixeira disse...

Pois é, Artur (deixou-me intrigado este hábito de te assinares em maiúsculas), já andei pelo vosso blogue, já andei por aí, como o Santana Lopes prometeu que ia fazer e infelizmente parece estar a cumprir… Aprendi algumas coisas, mas os textos de blogue têm sempre a limitação da extensão e profundidade – a propósito, o meu blogue é o http://herdeirodeaecio.blogspot.com/.

Diz-me lá, qual é tua editora e onde posso encontrar os teus dois livros?

A.Teixeira disse...

Pois é, Artur (deixou-me intrigado este hábito de te assinares em maiúsculas), já andei pelo vosso blogue, já andei por aí, como o Santana Lopes prometeu que ia fazer e infelizmente parece estar a cumprir… Aprendi algumas coisas, mas os textos de blogue têm sempre a limitação da extensão e profundidade – a propósito, o meu blogue é o http://herdeirodeaecio.blogspot.com/.

Diz-me lá, qual é tua editora e onde posso encontrar os teus dois livros?