quarta-feira, 15 de outubro de 2008

"INVERTER A PEGADA DO TEMPO"

“Eu acho que o Dr. Paulo Portas, pelo perfil que tem, pela cultura que tem, pelo mundo que conhece, podia ser o nosso Malraux. Tive sempre esse sonho. Penso que Portugal precisa de alguém que seja em Portugal o que Malraux foi em França. Creio que isso poderia mudar muito o País !”

Dr. Luís Nobre Guedes, vice-presidente do CDS-PP e Ministro do Ambiente, Diário de Notícias, 28 de Janeiro de 2005


Relembremos, brevemente, os factos da vida de André Malraux: Em 1925, depois de ter estudado línguas e culturas orientais, parte para a Indochina, tendo explorado alguns templos da antiga cultura khmer no Cambodja. Depois de um processo obscuro, muda-se para o Vietname onde funda dois jornais que denunciam as práticas do colonialismo francês e a exploração dos indígenas, juntando-se ao movimento Jeune Annam A sua carreira começa com uma aura de mistério com essa deslocação, o desaparecimento de baixos-relevos dos templos , um curto período na prisão e um mergulho na política do Extremo Oriente. Os detalhes desses acontecimentos permaneceram para sempre obscuros, mas é a sua ressonância que conta. Com a sua zona de sombra e incerteza, sugerem a pureza da aventura. Malraux entrou na consciência europeia, não como um escritor, mas como um acontecimento, uma figura simbólica que, de certo modo, combina as qualidades mágicas da juventude e do heroísmo com o sentido de uma promessa ilimitada. Ainda nessa década parte para Xangai e Cantão onde acompanha o Kuomintang e assiste Borodine no processo revolucionário em curso na China. O seu primeiro livro importante, intitulado “A Tentação do Ocidente” (1926), explora os paralelos entre a cultura ocidental e a oriental.
De regresso a Paris, nos anos 30, Malraux trabalhou como editor de arte na Gallimard e participou em expedições arqueológicas no Irão e Afeganistão. A sua exploração aeronáutica da Arábia conduziu à descoberta daquela que se supõe ser a cidade da Rainha de Sabá. Em 1933 escreve “A Condição Humana”, que lhe confere o prémio Goncourt e estabelece a sua reputação internacional: As personagens desse romance, para aqueles que o não leram, encontram um sentido de solidariedade humana e de dignidade na acção e na morte “O grande mistério não é termos sido lançados aqui ao acaso, entre a profusão da matéria e das estrelas é que, da nossa própria prisão, de dentro de nós mesmos, conseguimos extrair imagens suficientemente poderosas para negar a nossa insignificância". Em 1935 funda, com Louis Aragon, a Associação Internacional de Escritores para a Defesa da Cultura” e publica a obra “Le Temps du Mépris”. Nesses anos, é o “compagnon de route” de Aragon, André Gide, Picasso, Max Jacob, Paul Éluard, Paul Valéry, Jean Paulhan, André Breton, Man Ray e muitos outros, com quem se bate por inúmeras causas, distinguindo-se pela defesa intransigente da liberdade e da democracia. Como consequência dessa militância, vem a chefiar a Aviação Internacional que combateu o levantamento franquista na Guerra Civil Espanhola. Dessa experiência resultou a obra “L’Espoir”, que ele próprio viria a adaptar ao cinema em 1938. Depois do bombardeamento de Guernica, e enquanto Pablo Picasso pintava o célebre quadro, Malraux seria uma das únicas pessoas que o pintor admitia na sua presença, enquanto o pintava. Durante a Segunda Guerra Mundial rompeu com o Comunismo, não tendo aceite o pacto germano-soviético, e dedicou-se a escrever ensaios. Essa actividade foi interrompida com o seu alistamento numa unidade de tanques. Tendo sido ferido e capturado em 1940, fugiu do campo de concentração e juntou-se à Resistência, tendo conhecido nessa altura o General Charles De Gaulle. Foi capturado pela Gestapo em 1944, evadindo-se pela segunda vez em 1944. Tornou-se, então, o Coronel Berger, Comandante da Brigada Alsácia-Lorena, que se distinguiu na libertação de Estrasburgo e Metz, bem como na ocupação de Estugarda. Os seus serviços militares foram distinguidos com a Médaille de la Résistance, a Cruz de Guerra de 1ª Classe e a British Distinguished Service Order. Depois da II Guerra Mundial viria a ser o porta-voz da política gaullista e Ministro da Informação em 1945-1946. Nesses anos, bem como na década de 50, escreveu as suas obras mais importantes no domínio da estética e da história da arte: “As Vozes Do Silêncio”, “A Psicologia da Arte”, “O Museu Imaginário”. Nelas declarava que a arte constitui a revolta do Homem contra o seu destino e como meio de transcendência “A Arte é um anti-destino”. De 1959 a 1969 foi Ministro de Estado para os Assuntos Culturais nos sucessivos governos do General De Gaulle. Já no fim da sua carreira pública, depois de De Gaulle ter abandonado o poder, da morte dos seus dois filhos num acidente de automóvel e do falecimento de Louise de Vilmorin, ofereceu-se para lutar pela liberdade no Bangla-Desh. A morte haveria de impedir esse último combate. Note-se que esta listagem de factos está longe de ser exaustiva.

É, portanto, a este homem que o Dr. Luís Nobre Guedes compara o Dr. Paulo Portas, essa espécie de peralvilho grandiloquente, o Paulinho das Feiras, directamente saído dos bancos da Faculdade para o jornal “O Independente”, daí para a liderança do CDS-PP, com passagem pelo Ministério da Defesa. É a André Malraux que Guedes compara Portas, o homem dos fatos ás riscas com pinta de vendedor de automóveis em segunda mão, o líder da Direita mais estúpida da Europa, o homenzinho que se põe em bicos de pé para falar para as televisões, que faz do mais pequeno acto um grande assunto de Estado, que assume a pose do Ministro para proclamar em nome do povo português os ideais ultra-montanos de um mundo de fantasias maurrasianas, vestindo a farda de almirante de doca-seca por cima do fatinho do populismo, de olhinhos em alvo e prece ao canto da boca, inchado de verdades e lugares-comuns, banalidades e grandes declarações ocas e solenes, para esconder o imenso vazio no qual passeia a sua mal-disfarçada arrogância e sobranceria. Mas a qual dos Malraux é que Guedes compara Portas ? Ao grande escritor e ensaísta ? Ao revolucionário e combatente pela liberdade ? Ao resistente, ao Coronel Berger, ao aviador da Guerra Civil Espanhola ? Ao Ministro da Cultura do General De Gaulle ? A inconsciência desta gente é absolutamente alucinante e dá arrepios. Será que este Nobre Guedes pertence a uma nova raça de idiotas, ainda não catalogada nem estudada ? O afã e o frenesim de louvaminhar o chefe obscurece-lhe o sentido crítico e a proporção do ridículo. Ou será que, sem o saber, é um sartriano, caído num buraco negro do Tempo e da História, lutando desesperadamente para não perecer nesta espécie de não-sentido em que se tornou a vida pública e política portuguesa, onde todas as declarações se equivalem, sem que saibamos exactamente destrinçar onde começam as verdadeiras convicções (que a Direita não se cansa nunca de reclamar como património seu, indestrutível e inalienável) e o puro delírio povoado de fantasmas de glória , ambições de poder e puro desejo (no sentido erótico) de engolir sem mastigar uma abundante fatia de eternidade.
De qualquer modo, e a título gracioso, forneço ao Dr. Nobre Guedes um curso acelerado de pensamento sartriano, cuja primeira e única lição se intitula:

COMO SER SARTRIANO, HOJE, EM LISBOA, BUJUMBURA, NOVA IORQUE, PARIS, BAIXA DA BANHEIRA E SERRA DA ARRÁBIDA:

A palavra de Sartre que, para a opinião comum e, provavelmente menos comum, resume a sua filosofia e a que eu próprio, a certa altura da minha humilde vida, dei tanta importância (pecados de juventude…), essa espécie de certeza ancorada, repetida tantas vezes e sob tantas formas, que um homem não é o que é, mas aquilo que faz, que não tem “natureza” mas uma “existência, esta definição laboriosa e, em sentido puro, poética de uma humanidade arrancada – e ainda bem ! – à fatalidade de “l’être et de l’étance”, ou de “l’être et le néant”, ou a qualquer outra fórmula que Sartre ou outro “Maître á penser” francês queira inventar, ou ter inventado na inquietude majestosa da margem esquerda do Sena, quer dizer, queiramos ou não, de raiz e de raça (?), esta ideia, ainda recentemente repetida por um veemente primeiro-ministro português, de que um homem não é o que ele esconde, mas ainda e sempre o que ele faz – que peso tem perante estes homens e estas mulheres que não fazem nada, limitando-se a ser o que são e ainda outras coisas, que não são, ou que são sem saberem, ou ainda, que querem ser, sabendo que esse desejo, essa paixão, nunca será uma realidade palpável. Se Portas é o Malraux português, Malraux – lui même – pode ter sido o Portas francês, muito antes de o nosso André ter vindo a existir, prefigurando um destino por interposta pessoa, legitimando o pressuposto de que o Paulinho das feiras e dos bonés à caçador ainda espera o seu General De Gaulle e aguarda ainda a catapulta para a glória adiada. Mas não será que a glória de gente como o Dr. Paulo Portas e o Dr. Luís Nobre Guedes é apenas esse não sentido de que falava atrás: uma miserável quantidade de segredos, de vaidades e de buracos negros ? Dito de outro modo, se se é o que se faz, se ser-se é produzir-se, se o que caracteriza a singularidade não é ser, mas realizar-se, se cada um de nós se resume à modalidade do seu ser no mundo e da sua inscrição activa nele, se, ao contrário do que acreditam, ou querem acreditar, os eternalistas, não temos essência que preceda a nossa existência, a não ser aquela que produzimos pelo fazer, qualquer aspiração à glória e à eternidade é vã em pessoas como o nosso Paulinho, tal como a “vã glória de mandar”. Termino com outra citação do Padre António Vieira : “paciência de cegos, imobilidade de cadáveres”. Percebeu Dr. Luís Nobre Guedes ? Se calhar, é melhor mandar-lhe o desenho…

Entretanto, desde que comecei a escrever estas notas e o dia de hoje, um ciclone político varreu Portugal; os Drs. Luís Nobre Guedes e Paulo Portas foram remetidos à travessia de um deserto onde esperamos que se percam para sempre. Ficarão como notas de rodapé na História do Portugal do séc. XXI. O primeiro, grande moralizador, ficará conhecido como o ministro que quis demolir as casas ilegais da Serra da Arrábida, isentando a sua própria construção ilegal da sanha demolidora. O outro ficará para sempre conhecido como o salvador das OGMA e dos Estaleiros de Viana do Castelo, altos feitos com que martelou exaustivamente os nossos ouvidos cansados. Antevejo o futuro: aos 70 anos o Dr. Paulo Portas escreverá o I Tomo memorialista, intitulado muito a propósito: “Como salvei as OGMA e os Estaleiros de Viana do Castelo”. O Dr. Luís Nobre Guedes, retirado no Lar de Idosos As Florzinhas do Restelo declarará ,em entrevista ao DN, que a obra, pela sua qualidade literária, pela dimensão universal e pela riqueza da experiência nela vertida, se compara sem desprimor às “Antimémoires”. Aos 80 anos o Dr. Paulo Portas publica o II Volume das suas memórias, intitulado “As OGMA e os Estaleiros de Viana do Castelo Revisitados”, entregando a sua alma ao Criador poucos meses depois. O Dr. Luís Nobre Guedes, entretanto transladado para o Lar de Idosos Os Anjinhos da Ajuda, declara em entrevista ao DN on-line que será necessário construir um novo Panteão Nacional, dada a sobrelotação do primeiro, a fim de albergar os restos mortais do insigne português, que repousará para a Eternidade ao lado de D. Afonso Henriques, Afonso De Albuquerque, Camões, Jesus Cristo, a Irmã Lúcia e…André Malraux.
A propósito de André Malraux, devo dizer o seguinte: Em 1935 escrevia no prefácio de “Le Temps du Mépris” : “É difícil ser um homem. Mas ainda é mais difícil tornar-se um homem aprofundando a comunhão e cultivando a diferença – e se a primeira sustenta tanto como a segunda aquilo que é ser homem, é por ela que o homem se transcende, cria, inventa ou se concebe”
Esta frase, a mais próxima do projecto revolucionário de Malraux, não coloca em causa a existência, nem mesmo o primado do homem: propõe apenas um projecto ético que, sabemo-lo hoje, é uma utopia moral



Arnaldo Mesquita

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