sexta-feira, 3 de outubro de 2008

MEMÓRIAS TROPEÇADAS II

One generation goes,
Another generation comes
And the Sun also rises…
Ernest Hemingway




Esta é a história de um Verão que teve dias de verdadeira eternidade. Esta é a história de um homem que fugia de si próprio sem o saber e, mesmo quando o soube, o continuou a fazer até ao fim. Esta é a história de um Verão londrino na ressaca do fim do punk mas que borbulhava de vida e criatividade e busca da próxima moda. Esta e a história de Tim, Orlando, Miguel e de um patrão indiano chamado Rakesh. Esta é a história de Cynthia e do seu cão Oliver, mas também a história de Eilleen, Gloria e Roberta. Esta é a história de Gordon, Aziz e Achmed, de Jimmy e Andrea. Esta é a história de um bar no Sudoeste de Londres e de uma casa vitoriana com vários quartos independentes e uma casa de banho comum no bairro de Kesington. Esta é a história feita de vários pedaços da história de várias almas que se conheceram durante um Verão e se amaram à chuva ou odiaram à pancada. Esta é a história de um piquenique transformado em fábula campestre num enorme prado verde da Velha Albion.
Esta é a história, ou aquilo que a memória permitiu contar, aqueles minúsculos estilhaços de lembrança explodidos no caos do passado, agarrados a quem os viveu.
Esta é a história…



A minha vida, ao fim de muito tempo, entrava num estado de calma e de vazio ao qual não me conseguia habituar. Depois da tropa dei por mim fora da Faculdade, sem trabalho em época de crise, sem namorada, sem rumo. Um preço justo a pagar para quem tinha acabado de dar dois anos de existência ao serviço da Pátria. O país ia entrando aos poucos na normalidade democrática após um período de agitação inevitável, próprio de uma fase de transição entre dois regimes políticos. Contas fechadas, euforias esgotadas, ilusões enterradas, lá seguia o seu rumo de última carruagem do comboio da Europa. Naquele Verão de 85 a adesão à União Europeia era formalizada com pompa e circunstância numa cerimónia nos Jerónimos, mas na rua o homem comum ainda não dava por nada. Alguns amigos corriam a Europa de comboio e mochila às costas. Outros iam trabalhar nas vindimas para França e para a Suiça. Durante vários dias deixei-me ficar a ver o tempo a passar sem uma ideia acerca do que fazer em relação à minha vida. A maior parte do tempo era ela que me "fazia" a mim, daí que a vontade de me mexer fosse ainda menor. Rasgava umas ondas de dia em Carcavelos e saltitava pelos bares à noite exibindo o “cabedal” de veterano de várias guerras por fazer. Um dia, quando estava a sair da água lembrei-me que tinha conhecido um australiano dois anos antes, a fazer surf. Um tipo engraçado que já vinha de Israel, de um kibutz, e que se preparava para ir para Londres. Nesse espaço de tempo escreveu-me uma carta com a morada nova, dizendo que se alguma vez fosse a Londres podia ficar em casa dele. Já lá tinha ido várias vezes visitar uns tios meus que moravam a 80 Km a Norte. Havia bilhetes baratos de camionete na Av. Casal Ribeiro. Comprei um até Paris. Com o pouco dinheiro que me sobrava da tropa, dava para lá chegar. Depois até Londres teria que inventar. Não era longe.
Era a minha vez de saborear na estrada e no lombo as páginas de Steinbeck e Kerouac em início de carreira. “On The Road” a trabalhar pelo caminho, podia ser um bom tempo de reflexão sobre o que quereria fazer depois com a minha vida. Assim, fiz o saco, vendi a prancha e grunhi uma despedida aos meus pais antes de partir. Três dias depois chegava a Paris ao amanhecer. Pelo caminho fui encontrando várias pessoas com vários destinos. Irlanda para babysitter , França para as vindimas, Holanda para uma curso de Verão na Faculdade, Alemanha para emigrar, etc,etc,. Uma boa maneira de ouvir histórias, desenhar percursos e reunir material para escrever. Sim, escrever. Contar histórias, martelar narrativas, erguer romances do nada da folha em branco. Mas isso, todos me diziam, não servia para nada, não dava dinheiro, não era coisa nenhuma. E era precisamente o que eu achava de mim próprio: que era coisa nenhuma. Uma coisa nenhuma que no entanto caminhava, reflectia, ouvia e registava as histórias dos outros. Uma “coisa nenhuma” em movimento…

ARTUR GUILHERME CARVALHO

2 comentários:

Vitor disse...

Pois…o buraco de “coisa nenhuma”…que de quando em vez por lá caímos!

Clarice disse...

Pedaços de nós...