1. Durante muitos anos Manuel S. Fonseca assinou
uma coluna no Expresso intitulada "O Cinema dá o que a Vida Tira".
Nela, o autor, com a sua verve característica, explorava o modo como o cinema,
de certa maneira, compensa esse lado obscuro da vida, apostado em frustrar as
expectativas, desejos e desígnios do ser humano, ou seja, como compensa,
através da ilusão, do artifício do sonho (a famosa "matéria de que os
sonhos são feitos"), aquilo que a vida se dedica a transformar em falha,
ausência, carência. Perante "Fechar os Olhos" apetece-me inverter a
fórmula e transformá-la em "A vida dá o que o cinema tira.
Talvez não seja exactamente assim. Porquê
"fechar os olhos" ? Justamente, este título paradoxal remete para uma
constante do cinema de Erice: é preciso fechar os olhos para podermos ver
aquilo que o cinema partilha do visível do quotidiano; fechar os olhos para
podermos ver aquilo que está à nossa frente, para podermos ver e acolher a
estranheza e a diversidade que residem em cada um de nós e a que só fechando os
olhos podemos aceder e compreender o profundo e o insondável da sua profunda e
misteriosa unidade.
2 Os eventuais leitores perdoar-me-ão a
extensão desta citação de André Bazin, que retiro dessa obra fundamental que é
"Qu'est-ce que le cinéma ?", mas a ideia nela contida constitui para
mim uma determinação essencial para compreender o enigma deste filme
assombroso e assombrado. Assim:
Une psychanalyse des arts plastiques pourrait
considérer la pratique de l'embaumement comme un fait fondamental de leur genèse. A l'origine de la peinture et de
la sculpture, elle trouverait le « complexe » de la momie. La religion égyptienne dirigée tout entière contre
la mort, faisait dépendre la survie de la pérennité matérielle du corps. Elle
satisfais-ait par là à un besoin fondamental de la psychologie humaine : la
défense contre le temps. La mort n'est que la victoire du temps. Fixer
artificiellement les apparences charnelles de l'être c'est l'arracher au fleuve
de la durée l'arrimer à la vie. Il était naturel de sauver ces apparences dans
la réalité même du mort, dans sa chair et dans ses os. La première statue
égyptienne, c'est la momie de l'homme tanné et pétrifié dans le nation. Mais
les pyramides et le labyrinthe des couloirs n'étaient pas une garantie
suffisante contre la violation éventuelle du sépulcre ; il fallait encore
prendre d'autres assurances contre le hasard, multiplier les chances de
sauvegarde. Aussi plaçait-on près du sarcophage, avec le
froment destiné à la nourriture du mort, des statuettes de terre cuite, sortes
de momies de rechange, capables de se substituer au corps si celui-ci venait à
être détruit. Ainsi se révèle, dans les origines religieuses de la statuaire,
sa fonction primordiale sauver l'être par l'apparence. Et -sans doute peut-on
tenir pour un autre aspect du même projet, considéré dans sa
modalité active, l'ours d'argile criblé de flèches dans la caverne
préhistorique, substitut magique, identifié au fauve vivant, pour l'efficacité
de la chasse. Il est entendu que l'évolution parallèle de l'art et de la civilisation a
dégagé les arts plastiques de ces fonctions magiques (Louis XIV ne se fait pas
embaumer : il se contente de son portrait par Lebrun). Mais elle ne pouvait que
sublimer à l'usage d'une pensée logique ce besoin incoercible d'exorciser le
temps. On ne croit plus à l'identité ontologique du modèle et du portrait, mais
on admet que celui-ci nous aide à nous souvenir de celui-là, et donc•, à le
sauver d'une seconde mort spirituelle. La fabrication de l'image s'est même
libérée de tout utilitarisme anthropocentrique. Il ne s'agit plus de la survie
de l'homme, mais plus généralement de la création d'un univers idéal à l'image
du réel et doué d'un destin temporel autonome. Quelle vanité que la
peinture » si l'on ne décèle pas sous notre admiration absurde le besoin
primitif d'avoir raison du temps par la pérennité de la formé ! Si l'histoire
des arts plastiques n'est pas seulement celle de leur esthétique mais d'abord
de leur psychologie, elle est essentiellementelle de la ressemblance ou, si l'on veut, du réalisme.[...] Dans cette perspective, le cinéma apparaît comme l'achèvement dans le temps de
l'objectivité Photographique.Le film ne se contente plus de nous conserver
l'objet enrobé dans son instant comme, dans l'ambre, le corps intact des
insectes d'une ère révolue, il délivre l'art baroque de sa catalepsie
convulsive. Pour la première fois, l'image des choses est aussi celle de leur
durée et comme la momie du changement" . André Bazin , Qu'est-ce que
le cinéma? pp 10-14
Quem vir este filme de olhos bem abertos, verá que se trata disso mesmo, de arrancar um ser à duracção temporal e negar a vitória da morte, afirmar que não se trata tanto de fixar a aparência do ser, mas, antes de tudo, que o ser não se deixa ficar na imagem fixa que uma vez foi registada e que perdura na relação. E a memória é o único antídoto contra a rigidez da fixação e a vitória da morte. Aliás, aqueles que estão familiarizados com o portentoso cinema de Victor Erice, reconhecerão que no seu centro está o poder da memória e a sua capacidade de tecer e reter laços, as ausências que ela preenche ou cruza. De ausências se trata: do actor Julio Arenas (o fabuloso José Coronado), dos filmes que Erice não pôde realizar (a segunda parte de "El Sur", a adaptação ao cinema de "El Embrujo de Shanghai" de Juan Marsé, a da filha perdida do realizador, perdida em Xangai e que ele quer rever antes de morrer, a do filme dentro filme "La Mirada del Adiós", tantas e tantas ausências e perdas), tantas referências a tudo o que se perdeu no tempo. E a maravilhosa e misteriosa arte de Erice consiste nesse entrecruzar dos tempos (e das perdas), com uma absoluta indiferença pelo respeito por cronologias; o presente ressoa contínua e anacronicamente, ou seja, através do tempo. Na primeira parte, que decorre em Madrid, sucedem-se os sítios frios e algo inóspitos (do Prado, por exemplo, só vemos a entrada e a cafetaria, e toda a graça parece ter desertado de um mundo de onde o cinema está ausente, a um ponto que "ciudad del cine" é o nome de uma paragem suburbana que conduz a um estúdio de televisão. Na segunda parte, que decorre na Andaluzia, o mundo parece mais habitável e harmonioso, e justamente uma das dimensões mais exaltantes da diégese do filme, é a descoberta de que nesses espaços mais amigáveis e quentes é possível compreender aquilo em que a amizade se transformou depois de passar pelo crivo da memória. Esta, é a memória dos amados - um amigo perdido, uma mulher outrora amada, um filho morto - que se partilha ou se apaga e dos quais as fotografias, filmes e os objectos são os signos visíveis. Por isso falava eu antes na partilha da visibilidade do mundo, a tal que só é apreensível de olhos fechados. E também a memória dos corpos e dos gestos, o último reduto onde os amigos ainda se podem reencontrar, negando a amnésia. E a memória mais vasta, ao mesmo tempo mais impalpável e mais partilhável, que impregna todo o filme: as recordações de quadros, filmes, canções que vêm continuamente alimentar o presente. E também tema da espera: esperar a vida inteira por um momento perfeito em que tudo se recentre e tudo ganhe sentido ou, se se quiser, unidade.
Essencial também para a compreensão desta obra-prima é a convicção de que ela se alimenta sempre da memória do cinema e, em particular, do cinema de Victor Erice; as memórias íntimas que reaparecem à superfície para serem partilhadas. Recordar que a amizade pode ser vivida como Howard Hawks a fixou em "Rio Bravo" (que Erice directamente cita). Se foi uma vez assim, poderá ser sempre assim. E aqui vos remeto para a citação de Bazin.
E deixem que vos diga que me lembro de poucas sequências tão comoventes como aquela em que Ana ( a magnífica e surpreeendente Ana Torrent, numa brilhantíssima passagem de um grande plano a um plano aproximado, que se demora no rosto da actriz e em que a personagem se lembra do tempo em que acreditava nos Reis Magos e em que a menina de "O Espírito da Colmeia" aflora no rosto da mulher madura que ele agora é, murmurando "Sou Ana"... Perante esse plano de todas as emoções, o nosso coração colapsa. Pelo menos, o meu colapsou e fez-me voltar à memória a tese de André malraux segundo a qual a arte seria um anti-destino. Neste caso, um anti-destino, se o destino fôr a amnésia e o esquecimento do ser. e fez-me lembrar também o quanto a imagem cinematográfica é um olhar o outro, olhar a alteridade como uma outra identidade: olhos que se baixam, se fixam, cruzam e que tudo isso acontece na duração e que cada plano é esse instante preciso em que se passa de um a outro.
Sobretudo, a arte magistral deste cineasta secreto e íntimo que é Victor Erice consiste na subtileza com que nos faz pensar que o final de cada cena é, à sua maneira, um ADEUS, o momento de uma história sobre a qual os nossos olhos se fecham. E também, como diz Miguel ao seu amigo Max, é preciso envelhecer sem medo e sem esperança.
No fundo, de olhos abertos ou fechados, este filme sem paralelo, sem medo e sem esperança, que parte do inacabado e da ausência, não para os preencher, mas para os tornar motor de uma busca incessante em que se trata do reencontro (consigo mesmo e com o outro), reunir(se), rememorar incessantemente. O que significa que nenhum filme, nenhuma amizade, nenhuma vida, se completam e se acabam definitivamente. Não sabemos dizer se isso é bom ou mau, se a incompletude é beleza ou terror. Nem isso importa. A Erice importa sublinhar que é preciso viver cada fim, cada adeus, com a plenitude dos recomeços e das promessas que cada recomeço encerra. Saibamos todos envelhecer com essa sabedoria.