I
DA ESTUPIDEZ
Nos dias de hoje, é muito comum ouvirmos expressões que têm como ponto de partida comum a denominada "honestidade intelectual" : "é preciso ser intelectualmente honesto"," por uma questão de honestidade intelectual", "a bem da honestidade intelectual", etc. Como todas as expressões linguísticas, e sobretudo aquelas que se tornaram chavões ou bordões, conviria esclarecer o seu sentido. Enfim, o que quer dizer "honestidade intelectual" ? Num primeiro nível (básico, muito básico), indicaria um acordo de princípio entre factos e discurso (ordum idearum, ordum rerum idem est). Mas, neste nível, com esta escassez de análise não chegamos a lado nenhum. Nietszche dizia que não existiam factos, mas apenas interpretações. Assim, a equação ficaria amputada de um dos seus termos. Num segundo nível, mais profundo - e por este me detenho - significaria um acordo da consciência consigo mesma. Aqui, estaríamos mais próximos de uma definição aceitável da tal "honestidade intelectual", desde que tal implicasse uma exteriorização da consciência, isto é, desde que ela fosse tornada pública e assim sujeita ao escrutínio dos vigilantes da honestidade, ainda por cima intelectual. O que, só por si, cria um paradoxo: sabe-se que os menos honestos dos seres humanos são justamente os intelectuais. Por outro lado, a honestidade é um valor sobrestimado, com um valor de mercado a que não corresponde nenhum valor seguro, nenhum depósito fiduciário.
Tudo isto para dizer que não é honestamente intelectual, ou intelectualmente honesto, dizer que o putin é louco, ou psicopata. Para além de fácil, tal explicação dos seus actos implicaria uma desresponsabilização que é injusta: um inimputável, por muito pernicioso e danoso que se revele, não é, de um ponto de vista jurídico, passível de ser perseguido e castigado de acordo com o código penal e, eticamente, é injusto aplicar-lhe penas correspondentes às aplicáveis a todos aqueles que são imputáveis. Assim para além de ser um político (?) pós-moderno e kitsch, o que ele é e digo-o sem medo das palavras, é um ser profundamente estúpido; ele é a Fossa das Marianas, o Evereste da estupidez. Com ele, a célebre frase de Einstein segundo a qual "há duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana e em relação ao universo não estou completamente certo" ganha um outro sentido. Assim como se aprofunda a resposta de Roland Barthes a um pedido de definição de estupidez, quando respondeu: "A estupidez é a euforia do lugar".
Para além disso, é um homem baixinho, com o complexo de o ser. As duas coisas (estatura e complexo) não se determinam necessariamente entre si. Ou seja, um homem baixinho não tem necessariamente que ser complexado; conheço alguns que não só não se importam de ser baixos, como ainda se agigantam quando as ocasiões o requerem. Ou seja, apesar da baixa estatura, estão à altura do que lhes acontece (passe o trocadilho). Não assim com o putinzinho; bombardear os outros, desfazer países, crivar de mísseis as populações civis, matar e tortura indiscriminadamente são outras tantas formas de acalmar o complexo da baixa estatura e a fealdade com que se olha ao espelho.
II
DA CLARIVIDÊNCIA
Em 1978, Alexander Zinoviev publicou em Paris um livro a que chamou "L'Avenir Radieux" (publicado em Portugal em 1987, pela D. Quixote, com o título "O Futuro Radioso"). Nessa altura, o pequeno putin ainda estava em Dresden a fingir que era um competente e patriótico espião ao serviço do KGB, e passeava pela "Democrática" Alemanha de Leste a sua baixa estatura e a sua ainda incipiente mas prometedora estupidez. Aquela que haveria de demonstrar na Chechénia, Geórgia, Síria e Ucrânia.
Zinoviev, por seu lado, construía uma poderosa fábula satírica, demolidora, sarcástica sobre o sistema soviético, representado em última instância pelos intelectuais: aqueles que estavam encarregados de demonstrar que a URSS era o melhor país do mundo, onde toda a gente exultava de felicidade e bem-estar, que o marxismo-leninismo era a única ideologia capaz de conduzir o homem à plenitude das suas faculdades e satisfazer todas as suas necessidades. Eram até encarregues de demonstrar que o país produzia tantos cereais que já não sabiam o que fazer deles (embora tivessem que comprar cereais ao Ocidente, pedinchando descontos e facilidades de pagamento). O que resulta numa demonstração prática da tese que acima enunciei e que liberta os intelectuais em geral, e os soviéticos em particular, de qualquer veleidade de honestidade (intelectual ou outra). O humor negro que pontua a obra resulta premonitório, assustadoramente premonitório. De entre as múltiplas personagens que vão comentando a situação, salienta-se um jovem poeta que vai escrevendo uns poemas satíricos sobre a sociedade soviética e os seus chefes. Obviamente, Zinoviev não conhecia o putinzinho, mas quem negará que este poema encaixa perfeitamente na personagem ?
O menor dos seus gestos é acontecimento histórico
O menor dos seus passos tem alcance mundial
Este teorizador não fez nada teórico
Nenhuma batalha foi ganha por este Marechal
Cada palavra que diz é revelação genial,
Sobre cada mistério um entender profundo
Uma evolução nova da doutrina final
Uma directiva sábia que dá a a todo o mundo
E o delírio eterniza-se de ano para ano
E ninguém tem coragem para dizer de caras.
Então não veêm que é um palhaço tolo,
Que só sabe fazer e dizer macacadas ?
III
DA IDEOLOGIA
Sabem os filósofos e sabemos nós o seguinte: existe uma distinção fundamental entre ideologia formal e ideologia real. E também sabemos que o cinismo não é um traço visível e marcante da natureza humana. O putinzito mostra-nos que é uma forma de ideologia que rege o seu comportamento. Na formação da sua personalidade o indivíduo pode chegar a esta ideologia se passar pelo conhecimento da verdade - coisa que o pequeno acha que aconteceu consigo, uma crença que decorre não da sua suposta psicopatologia, mas da sua estupidez, como espero ter demonstrado -, a escolha da sua posição - no caso deste pequerrucho, a posição ("a estupidez é a euforia do lugar") permite-lhe não só ter acesso aos meios para combater o seu complexo, como também lhe permite aceder aos bens tangíveis e materiais com que se tem vindo a locupletar com brio, ou, dito de outro modo, a roubar à vontade -, ou ainda pelo entorpecimento da sensibilidade emocional - esta última determinação está-lhe patente nas ventas; já vi barras de sabão-macaco com mais expressividade do que aquela face absolutamente desprovida de emoções. Tal significa, em última análise, que a ideologia do petiz - o cinismo, ou o ponto de vista do cão -não é uma ideologia real, mas uma reacção a um ideologia formal que, quando racional, o impediria de ser o que é. Este prognóstico, que não é minimamente arriscado, pois coincide necessariamente com os dados empíricos que temos disponíveis, pois, mesmo nas suas manifestações, digamos, mais "subtis", o homenzinho está sujeito às leis gerais da análise combinatória e da auto-conservação: retomando o título de um filme de Werner Herzog: "até os anões começaram pequenos".
Ainda mais: no caso deste homem pequenino, a ideologia formal (que ele tende a transformar em "oficial") é uma forma hipócrita, mas muito cómoda, que dissimula (pensa ele) aquilo que há de ignóbil na sua personalidade e que se resume aquilo que ele é e não ao que ele julga ser, o que significa que a sua monstruosa auto-afirmação e arrivismo (já pouco triunfante) alastram a toda a sociedade e poluem a vida comum, não só na Rússia, como no resto do mundo. Quando atrás disse que putin era um político pós-moderno, essa afirmação não foi fundamentada. Faço-o agora. A modernidade ensinou-nos que os indivíduos podem distinguir-se da massa que os gerou e da qual fazem parte e a considerarem-se assim valores intrínsecos. A história da civilização levou essa capacidade a um grau muito elevado. Por outro lado, a estrutura da nossa sociedade avança no sentido da despersonalização (total ou parcial). Desta tensão entre individuação e despersonalização decorrem, naturalmente, todas as formas monstruosas de auto-afirmação, de que o nosso pequenito constitui o clímax e que, sejamos intelectualmente honestos, não se distingue de todas essas nulidades que elevamos à categoria de génios, todas as intermináveis e insuportáveis auto-recompensas que permitimos a qualquer palhaço que se apresente bem vestido e bem falante, todos esses títulos que lhes atribuímos sem que minimamente os mereçam, em suma, todos aqueles a quem pagamos e recompensamos para que nos fodam a vida, todos aqueles gangsters que acabamos por dignificar e credibilizar são, todos sem excepção, pequenos putins sem as armas nucleares. Seria bom que refletíssemos um pouco mais sobre isto, sob pena de não percebermos que nenhum deles é uma personalidade; apenas querem ser percebidos como tal e essa percepção depende de nós mesmos, ou seja, depende de nós mesmos negar-lhes esse estatuto e mostrar-lhes que, tal como são, não podem ser percebidos como tal.
Como os eventuais leitores já perceberam, o putinzeco não é a face do Mal; não tem envergadura para tal (mais uma vez, peço desculpa pelo trocadilho involuntário).