sábado, 26 de novembro de 2022

DA ESTUPIDEZ E DA IDEOLOGIA


 I

DA ESTUPIDEZ

Nos dias de hoje, é muito comum ouvirmos expressões que têm como ponto de partida comum a denominada "honestidade intelectual" : "é preciso ser intelectualmente honesto"," por uma questão de honestidade intelectual", "a bem da honestidade intelectual", etc. Como todas as expressões linguísticas, e sobretudo aquelas que se tornaram chavões ou bordões, conviria esclarecer o seu sentido. Enfim, o que quer dizer "honestidade intelectual" ? Num primeiro nível (básico, muito básico), indicaria um acordo de princípio entre factos e discurso (ordum idearum, ordum rerum idem est). Mas, neste nível, com esta escassez de análise não chegamos a lado nenhum. Nietszche dizia que não existiam factos, mas apenas interpretações. Assim, a equação ficaria amputada de um dos seus termos. Num segundo nível, mais profundo - e por este me detenho - significaria um acordo da consciência consigo mesma. Aqui, estaríamos mais próximos de uma definição aceitável da tal "honestidade intelectual", desde que tal implicasse uma exteriorização da consciência, isto é, desde que ela fosse tornada pública e assim sujeita ao escrutínio dos vigilantes da honestidade, ainda por cima intelectual. O que, só por si, cria um paradoxo: sabe-se que os menos honestos dos seres humanos são justamente os intelectuais. Por outro lado, a honestidade é um valor sobrestimado, com um valor de mercado a que não corresponde nenhum valor seguro, nenhum depósito fiduciário.

Tudo isto para dizer que não é honestamente intelectual, ou intelectualmente honesto, dizer que o putin é louco, ou psicopata. Para além de fácil, tal explicação dos seus actos implicaria uma desresponsabilização que é injusta: um inimputável, por muito pernicioso e danoso que se revele, não é, de um ponto de vista jurídico, passível de ser perseguido e castigado de acordo com o código penal e, eticamente, é injusto aplicar-lhe penas correspondentes às aplicáveis a todos aqueles que são imputáveis. Assim para além de ser um político (?) pós-moderno e kitsch, o que ele é e digo-o sem medo das palavras, é um ser profundamente estúpido; ele é a Fossa das Marianas, o Evereste da estupidez. Com ele, a célebre frase de Einstein segundo a qual "há duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana e em relação ao universo não estou completamente certo" ganha um outro sentido. Assim como se aprofunda a resposta de Roland Barthes a um pedido de definição de estupidez, quando respondeu: "A estupidez é a euforia do lugar".

Para além disso, é um homem baixinho, com o complexo de o ser. As duas coisas (estatura e complexo) não se determinam necessariamente entre si. Ou seja, um homem baixinho não tem necessariamente que ser complexado; conheço alguns que não só não se importam de ser baixos, como ainda se agigantam quando as ocasiões o requerem. Ou seja, apesar da baixa estatura, estão à altura do que lhes acontece (passe o trocadilho). Não assim com o putinzinho; bombardear os outros, desfazer países, crivar de mísseis as populações civis, matar e tortura indiscriminadamente são outras tantas formas de acalmar o complexo da baixa estatura e a fealdade com que se olha ao espelho.


II

DA CLARIVIDÊNCIA


Em 1978, Alexander Zinoviev publicou em Paris um livro a que chamou "L'Avenir Radieux" (publicado em Portugal em 1987, pela D. Quixote, com o título "O Futuro Radioso"). Nessa altura, o pequeno putin ainda estava em Dresden a fingir que era um competente e patriótico espião ao serviço do KGB, e passeava pela "Democrática" Alemanha de Leste a sua baixa estatura e a sua ainda incipiente mas prometedora estupidez. Aquela que haveria de demonstrar na Chechénia, Geórgia, Síria e Ucrânia.

Zinoviev, por seu lado, construía uma poderosa fábula satírica, demolidora, sarcástica sobre o sistema soviético, representado em última instância pelos intelectuais: aqueles que estavam encarregados de demonstrar que a URSS era o melhor país do mundo, onde toda a gente exultava de felicidade e bem-estar, que o marxismo-leninismo era a única ideologia capaz de conduzir o homem à plenitude das suas faculdades e satisfazer todas as suas necessidades. Eram até encarregues de demonstrar que o país produzia tantos cereais que já não sabiam o que fazer deles (embora tivessem que comprar cereais ao Ocidente, pedinchando descontos e facilidades de pagamento). O que resulta numa demonstração prática da tese que acima enunciei e que liberta os intelectuais em geral, e os soviéticos em particular, de qualquer veleidade de honestidade (intelectual ou outra). O humor negro que pontua a obra resulta premonitório, assustadoramente premonitório. De entre as múltiplas personagens que vão comentando a situação, salienta-se um jovem poeta que vai escrevendo uns poemas satíricos sobre a sociedade soviética e os seus chefes. Obviamente, Zinoviev não conhecia o putinzinho, mas quem negará que este poema encaixa perfeitamente na personagem ?

O menor dos seus gestos é acontecimento histórico

O menor dos seus passos tem alcance mundial

Este teorizador não fez nada teórico

Nenhuma batalha foi ganha por este Marechal

Cada palavra que diz é revelação genial,

Sobre cada mistério um entender profundo

Uma evolução nova da doutrina final

Uma directiva sábia que dá a a todo o mundo

E o delírio eterniza-se de ano para ano

E ninguém tem coragem para dizer de caras.

Então não veêm que é um palhaço tolo,

Que só sabe fazer e dizer macacadas ?


III

DA IDEOLOGIA


Sabem os filósofos e sabemos nós o seguinte: existe uma distinção fundamental entre ideologia formal e ideologia real. E também sabemos que o cinismo não é um traço visível e marcante da natureza humana. O putinzito mostra-nos que é uma forma de ideologia que rege o seu comportamento. Na formação da sua personalidade o indivíduo pode chegar a esta ideologia se passar pelo conhecimento da verdade - coisa que o pequeno acha que aconteceu consigo, uma crença que decorre não da sua suposta psicopatologia, mas da sua estupidez, como espero ter demonstrado -, a escolha da sua posição - no caso deste pequerrucho, a posição ("a estupidez é a euforia do lugar") permite-lhe não só ter acesso aos meios para combater o seu complexo, como também lhe permite aceder aos bens tangíveis e materiais com que se tem vindo a locupletar com brio, ou, dito de outro modo, a roubar à vontade -, ou ainda pelo entorpecimento da sensibilidade emocional - esta última determinação está-lhe patente nas ventas; já vi barras de sabão-macaco com mais expressividade do que aquela face absolutamente desprovida de emoções. Tal significa, em última análise, que a ideologia do petiz - o cinismo, ou o ponto de vista do cão -não é uma ideologia real, mas uma reacção a um ideologia formal que, quando racional, o impediria de ser o que é. Este prognóstico, que não é minimamente arriscado, pois coincide necessariamente com os dados empíricos que temos disponíveis, pois, mesmo nas suas manifestações, digamos, mais "subtis", o homenzinho está sujeito às leis gerais da análise combinatória e da auto-conservação: retomando o título de um filme de Werner Herzog: "até os anões começaram pequenos". 

Ainda mais: no caso deste homem pequenino, a ideologia formal (que ele tende a transformar em "oficial") é uma forma hipócrita, mas muito cómoda, que dissimula (pensa ele) aquilo que há de ignóbil na sua personalidade e que se resume aquilo que ele é e não ao que ele julga ser, o que significa que a sua monstruosa auto-afirmação e arrivismo (já pouco triunfante) alastram a toda a sociedade e poluem a vida comum, não só na Rússia, como no resto do mundo. Quando atrás disse que putin era um político pós-moderno, essa afirmação não foi fundamentada. Faço-o agora. A modernidade ensinou-nos que os indivíduos podem distinguir-se da massa que os gerou e da qual fazem parte e a considerarem-se assim valores intrínsecos. A história da civilização levou essa capacidade a um grau muito elevado. Por outro lado, a estrutura da nossa sociedade avança no sentido da despersonalização (total ou parcial). Desta tensão entre individuação e despersonalização decorrem, naturalmente, todas as formas monstruosas de auto-afirmação, de que o nosso pequenito constitui o clímax e que, sejamos intelectualmente honestos, não se distingue de todas essas nulidades que elevamos à categoria de génios, todas as intermináveis e insuportáveis auto-recompensas que permitimos a qualquer palhaço que se apresente bem vestido e bem falante, todos esses títulos que lhes atribuímos sem que minimamente os mereçam, em suma, todos aqueles a quem pagamos e recompensamos para que nos fodam a vida, todos aqueles gangsters que acabamos por dignificar e credibilizar são, todos sem excepção, pequenos putins sem as armas nucleares. Seria bom que refletíssemos um pouco mais sobre isto, sob pena de não percebermos que nenhum deles é uma personalidade; apenas querem ser percebidos como tal e essa percepção depende de nós mesmos, ou seja, depende de nós mesmos negar-lhes esse estatuto e mostrar-lhes que, tal como são, não podem ser percebidos como tal.

Como os eventuais leitores já perceberam, o putinzeco não é a face do Mal; não tem envergadura para tal (mais uma vez, peço desculpa pelo trocadilho involuntário).





sábado, 12 de novembro de 2022

CAMINHOS DE SILÊNCIO


 


Se insistirmos em falar com o passado, apesar de surdo e distraído, há sempre um dia em que ele acaba por nos responder. Umas vezes não dando a resposta que esperávamos, outras trazendo memórias tão óbvias que nunca nos teriam ocorrido se não falássemos com ele.

Ao fim de uma vida intensa por esse mundo fora, repleta de lugares e pessoas diferentes, Rodrigo viu-se de novo na sua cidade de sempre. Mas a cidade já não era a mesma, tinha partes inteiras que não conseguia reconhecer. As ruas estavam apinhadas de gente, trânsito, ruído. Não se conseguia entrar normalmente num restaurante, numa loja, andar pela rua sem deparar com multidões em todas as direcções como enxames de insectos. A cidade onde sempre viveu definitivamente já não lhe pertencia. Vistas bem as coisas, se quisesse colocar a questão de uma forma global, já nada lhe pertencia. Só ele a si próprio e mesmo assim, temporariamente. Por isso falava com o Passado. Lembrando-se, avaliando, julgando, mantendo um diálogo morno consigo enquanto o conseguisse escutar. Interrogava-o nos livros que lia, chamava por ele nos breves instantes antes de adormecer à noite, reconstruia memórias cheias de espaços vazios que não conseguia preencher.

Decidiu mudar-se para uma casa no campo, herdada de uma tia recentemente desaparecida, e estabelecer a partir daí a base dos seus dias. A política de rescisões e despedimentos da empresa em situação económica difícil permitiu-lhe um estatuto de pré-reforma devolvendo-lhe o tempo que nunca tinha enquanto trabalhava. A profissão, a ex mulher, os filhos e até a cidade onde sempre viveu já não lhe pertenciam, mas em contrapartida passou a ser dono do seu tempo e da sua rotina. Uma nova ordem erguia-se sobre as cinzas de uma ordem anterior. A velocidade abrandava, as obrigações diminuíam e os dias, finalmente, pertenciam-lhe. Passou a dar longas caminhadas pelo campo fora, que normalmente iam dar ao castelo onde tantas vezes brincou na sua infância acompanhado pela Moody, uma “pastor alemão” de meia idade que o seguia como uma sombra. Usando horários onde encontrasse menos visitantes entrava ou ao amanhecer ou ao fim do dia. Depois escolhia um lugar para se sentar e ficava por ali alguns minutos a contemplar o céu.  Fechava os olhos e tentava imaginar o castelo em outros tempos. As vozes dos habitantes, os cascos dos cavalos, o bater metálico do ferreiro ao longe. Quase sem dar por isso passou a tirar uma fotografia do interior das muralhas todos os dias. Ou de manhã ou ao entardecer. Depois à noite seleccionava as melhores imagens e publicava-as num blogue que tinha construído para o efeito. Em cada dia uma entrada. O Sol através das ameias, uma janela de pedra aberta sobre o horizonte, tudo servia para preencher este seu novo hobby.

Foi após uma noite mal dormida que algo de novo aconteceu. Levantou-se e saiu de casa pouco antes do amanhecer com a Moody atrás a farejar todos os recantos do caminho, reclamando do sono interrompido e do pequeno-almoço que ficou para mais tarde. Entrou no castelo quando o Sol já se fazia notar no horizonte e subiu por umas escadas que levavam ao topo da muralha. Continuou a andar até que encontrou a imagem daquele dia. O desenho de uma janela em ruínas virada a Oeste estava ali, teimosamente erguida no vazio como último testemunho de uma estrutura outrora completa, inteira. Esperou um pouco e preparou a câmara. Deixou o Sol passar para a base do parapeito e disparou várias vezes. A meio ouviu um rosnar da cadela mas não lhe ligou. Foi logo a seguir ao momento em que julgou ver uma sombra, ou um vulto ou qualquer coisa do género do lado superior esquerdo do enquadramento. Mais tarde já em casa ao rever as imagens percebeu que não tinha sido só uma impressão. Era a sombra de uma cabeça de mulher. Cabelos compridos e um resto de rosto. Resolveu ampliar, reenquadrou, brincou com o contraste, inventou. No fim conseguiu construir um rosto sereno de uma mulher nova, de cabelos ruivos e ondulados numa expressão tranquila. Um sorriso meigo por baixo de um olhar doce, uma expressão de saudação a alguém que reconhecia. Primeiro ficou curioso, depois deixou-se perturbar. Por fim encarou tudo aquilo como uma viagem qualquer das muitas que tinham feito parte da sua vida. Outros lugares, outras gentes, outras latitudes, outras realidades. Talvez um soluço quântico do universo na hora de nascer o dia. Talvez um encontro de impossibilidades que se tornou real numa fracção do tempo. E que aconteceu, sobre isso não restavam dúvidas. A imagem registada e o rosnar da cadela assim o indicavam.

Nessa noite sentiu um cansaço muito grande e resolveu deitar-se cedo. Sonhou a noite toda, andou por várias paragens até que foi parar outra vez ao castelo. Estava numa enorme sala de decoração medieval e envergava uma capa branca. Estava cansado mas satisfeito. Ao fundo o dono do castelo recebia a sua mulher após uma longa viagem. Nesse momento percebeu que aquela mulher era a mulher que a tecnologia o havia ajudado a desenhar no computador. O cabelo longo e ruivo, o sorriso meigo e a expressão tranquila. Observava toda aquela cena apoiado na sua lança de cavaleiro. De repente a mulher notou a sua presença. Olhou para ele e acenou com a cabeça sorrindo. E nesse instante percebeu que a tinha escoltado até ali enquanto seu guarda pessoal. Que a sua função era garantir a sua segurança ao longo daquela jornada. E por fim, percebeu também pelo mexer dos lábios dela que lhe agradecia o seu empenho e a sua tarefa que terminava naquele dia. Quando acordou decidiu transformar todo aquele cenário numa breve alegoria. A de ter conduzido a sua existência até àquele tempo e de ter desempenhado a sua tarefa de forma satisfatória. Pelo menos havia alguém que lhe agradecia o esforço. Alguém que reconhecia o bom desempenho da tarefa. Nem que esse alguém fosse um vulto indiferenciado ao amanhecer que as várias modalidades da tecnologia transformassem numa possibilidade real de um ser efectivo.

 

Artur


domingo, 6 de novembro de 2022

NA BANDA DE ALÉM E AQUÉM

 Devo esta honestidade de viver o poema ao invés de o publicar.Devo a vós meus filhos, neta, amigos,pais e avós.

Foram tantos os anos a sonhar o regresso que não o viver seria diminuir-lhe a beleza. Seria uma traição ao verso onde os dias de bruma se encontram com as línguas de espuma nas únicas areias brancas deste arquipélago.
Se neste momento me interromper é por saborear um araçá,
o mesmo fruto que, durante anos, só encontrava nas prateleiras dum outono paulista. Agora é só colhê-lo da árvore já lavado pelo orvalho do amanhecer.
Faz sentido dizer só depois de o fazer.
As palavras sentidas quando escritas tomam a forma de cada sentir. Tenho-as tanto em encantamento como ao contrário. Escrever maleitas dói tanto como uma pancada no pé da cama com o dedo mindinho. Escrever gargalhadas ,encantamentos e colheitas é outra estória, é sempre um mergulho em águas cálidas ou a água fresca da nascente acabada de beber. Seja como for eu não mando nada aqui e as letras é que escolhem o momento de se soltar. Em dois mil e vinte foram a minha libertação porque, ao contrário de tantos que ficaram presos eu libertei-me, não fiquei numa cadeira de rodas e reformei-me dos voos, dos passageiros chatos e dos meus queridos colegas que se tornaram em amigos para sempre. Quando me perguntam se não tenho saudades de voar por meio planeta respondo logo que não, mas vem-me à memória as conversas de pequenos almoços, as chávenas de café coado, os pés doridos dos saltos altos e das avenidas americanas, os teatros brasileiros ou os musicais da Broadway, os mojitos do restaurante predileto no Soho, as ostras cheias de mar e tabasco da tasca da Grand Central Station, ou as amêijoas gigantes à bulhão pato da ilha de Luanda,e chego novamente à conclusão que não, senão dos momentos equivalentes ao trincar do araçá e das pessoas com quem partilhei esses momentos cheios de tudo.
A vida do ar em breve será, além da terra,do mar.
As saudades, só dos meus filhos e da minha neta, e da minha família do coração, muitas, mas eles sabem que a minha ausência é a minha maior presença.
É assim, curvada sobre mim mesma, que escrevo nestas teclas de letras gastas e num ecran rachado. Felizmente há cadernos e a caneta certa, um lápis da cor do dia que se apresenta, uma árvore vezes cem e um único araçaleiro com ramos estendidos de rubras promessas.
Elsa Bettencourt na Banda de Além e Aquém