domingo, 25 de abril de 2021

A ABRILAR


 

 

Era o vigésimo quinto dia de abril de mil novecentos e setenta e quatro e era aqui que estávamos. Não fui à escola e a mãe pousou a agulha no inicio da quinta faixa das Cantigas do Maio. Tocou todo o dia sem se gastar. Começou com volume medroso e acabou no máximo a saltar nas poeiras que caíam do teto. Esse LP tinha vindo de Paris um ano antes, juntamente com o meu conjunto de marcenaria. Da cidade preferida dela, o lugar do mundo onde tinha sido tão feliz ao ponto de inspirar três livros de poesia escritos pela mão dum amor anterior ao meu pai.
Era o vigésimo quarto dia de abril de dois mil e dezoito e eu esperava-te no aeroporto da Portela, já com o nome de internacional de Lisboa, mas que eu ignorava como a todos os idiotas. Aos saltos, como a menina que em setenta e quatro gastou um disco de tanto o dançar. Estava sol e a cidade tinha-se vestido com a melhor luz para te receber. As nossas sombras eram de meio dia e assim ficaram até ao nascer da estrelas. Enchi as mãos de cravos vermelhos no mercado mais próximo da assembleia e deixamos um à Rosa que trabalhava na geladaria mais saborosa daquele quarteirão. Passeamos pela cidade sempre a pé, entre o Museu da Cruz Vermelha e o cais onde os avós não partiram no fim da segunda guerra mundial. Caminhamos até casa com o Tejo pela esquerda, com os olhos cheios de interrogações sobre aquela estória que é resumo da grande história, a que se viveu e se perdeu, a que aconteceu e desapareceu, a que encontramos entre os escombros duma casa abandonada, nas mãos duma apaixonante camarada, nas memórias dos vizinhos da rua Sousa Martins, nas minhas e nas tuas, nas de todos que se lembram e nas de todos que se esqueceram.
É hoje o vigésimo quarto dia do quarto mês de dois mil e vinte um. Gozo a minha liberdade de porta aberta, com um vendaval que tenta derrubar o resto da árvore meio partida. Tenho ferramentas que não vieram de Paris e as cantigas de abril e maio a tocar em loop desde o início do mês. Uso o machete com vontade de descobrir a alma da única planta que não se parte perante nenhuma rajada.
O bambu tornou-se em tudo o que quero ser nos próximos anos. Forte, flexível e cheia de fábulas.
Sem cravos vermelhos colhidos, oferecidos, ou comprados, festejo a liberdade com o pensamento na paz que encontrei neste jardim cheio dos meus mantras verdes. Tenho todas as flores que possíveis e cidrões do tamanho da ponta do meu dedo mindinho. O tal que adivinha quase tudo e me trouxe de volta ao aconchego do meu lugar.
 
Elsa Bettencourt

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