terça-feira, 14 de maio de 2019

SERMÃO AOS MATRAQUILHOS

Regresso a "Sermão Aos Matraquilhos" - regressarei sempre -, para partilhar algumas reflexões que a obra me suscita. E começo sempre por referir a singularidade deste livro no conjunto da obra do Artur, uma singularidade que não implica ruptura ou descontinuidade, mas antes um prolongamento e um desenvolvimento da sua marca autoral: a fixação e estabilização de temas que formam uma mundivisão e um ponto de vista único e original que agora se confrontam com um novo horizonte de referência: a experimentação com a linguagem, as suas possibilidades e limites, uma operação com a qual os criadores artísticos medem, ao menos uma vez durante o seu percurso, o alcance e o potencial dos seus meios expressivos. No diálogo "Íon", Platão sugere que os escritores (poetas e tragediógrafos) são, por assim dizer, "vazios" e que esse esvaziamento corresponde à sua abertura à incomensurabilidade da linguagem. Só através desse processo se pode esperar alcançar alguma coisa de tangível sobre a capacidade que a  linguagem, neste caso a linguagem literária, tem de dizer muito mais do que significa e de significar mais do que diz. É possível que o postulado heideggeriano da autonomia da linguagem e da sua prioridade em detrimento do seu estatuto utilitário alcance em "Sermão Aos Matraquilhos" uma das suas expressões: notamos a que ponto "sentido", "efeito emocional" e "conotação" estão amalgamados com os meios de execução, isto é, com a capacidade de a linguagem dizer o Ser, dizer o homem, falar o Ser e o homem, mais do que ser falada por ele. É assim que este "Sermão" aposta no sentido, na ressurreição das artes da memória, na tensão constante em direcção ao entendimento (como diria Martin Heidegger : "somos aquilo que compreendemos ser"), na crença de que é unicamente graças à escuta da liberdade humana que murmura ou proclama em altos berros que saberemos retirar do abismo, das cinzas vivas da queimadura total, aquilo que resta do sentido da nossa condição, ou seja da nossa vida. Resgatar aquilo que sobra das ruínas. Ruínas... a não pertença do homem ao mundo, ou melhor, ao mundo dos outros homens; uma espécie de inimizade elementar e inegociável entre ser e existência. Percorre a obra um conjunto de sintomas que nos dão conta dessa inimizade: a inquietude, o desassossego, a instabilidade, a desinstalação, a sensação de que é o leitor que está a ser profundamente lido pelo livro. Outro sintoma, ainda: o estilo como uma metafísica, uma leitura do Ser, que nos prepara para aquilo que se espera resultar, no sentido próprio do termo, numa explicação de um texto que desemboca, na minha opinião, numa anti-metafísica difusa: a recuperação de uma tese de Michel Foucault segundo a qual, o Homem morreu, isto é, já não se pode falar do Homem como um conceito metafísico, e sim de homens, de indivíduos, com as suas consciências, a sua liberdade, os seus actos e as suas circunstâncias. 

Como sabemos, os sermões são peças de oratória, com um elevado grau de complexidade e riqueza retórica, destinados a transmitir argumentos teológicos e/ou ensinamentos morais e éticos. Em Portugal, a figura do sermão atingiu o apogeu com os célebres sermões do Padre António Vieira, que se contam entre as grandes obras engendradas pelo espírito humano. Vieira compreendia que a mera retórica é uma espécie de cemitério das realidades humanas ou, na melhor das hipóteses, o seu hospital dos inválidos. Tal como Vieira, o Artur recusa liminarmente a retórica pela retórica e rejeita os três modos de expressão da cultura contemporânea quando se quer referir às circunstâncias do homem na contemporaneidade: o sarcasmo negro, a sátira, a farsa, o circo multimédia: mostra-nos que vida e destino se confundem e são a mesmíssima coisa; que todo o destino é dramático e trágico na sua dimensão profunda: somos aquilo que o mundo nos convida a ser e que nesse sentido, viver é lidar com o mundo: ou lhe respondemos ou o contrariamos. O homem falhado é somente aquele que não apela a nenhuma circunstância fora de si. Albert Camus não desdenharia subscrever esta ideia. Como também não desdenharia pensar que a vida, individual ou colectiva, pessoal ou histórica, é a única entidade do universo cuja essência é o perigo. É, rigorosamente falando, drama; qualquer vida é a luta, o esforço para ser ela mesma. E ela mesma com as outras vidas. É essa a lição essencial: a única coisa que conta é a entre-ajuda, a solidariedade, a certeza de nos salvamos juntos ou juntos perecemos. Na sua aparente simplicidade, este ensinamento tem um conteúdo ético extraordinariamente valioso. Aliás, tem o único conteúdo ético capaz de nos elevar acima da vulgaridade e da banalidade.

Finalmente, gostaria de dizer duas palavras sobre a construção da obra. O sentido do drama/tragédia, levou o autor a construir uma estrutura triádica, protagonizada por personagens/vozes que, sendo altamente simbólicas, não deixam de ser de carne e osso; escutamos os seus monólogos, auscultamos  a corrente de consciência a que dão expressão e sentimos também a sua materialidade, o pulsar inquieto das suas vidas. João, Pedro e Gonçalo são "personagens" no sentido grego do termo: "personas", as máscaras que os actores usavam para encarnarem as vidas que lhes cabia representarem e para esconderem ou dissimularem as suas verdadeiras identidades. Este terceto transforma-se por vezes em quinteto, sendo as duas personagens adicionais (o Gimbras e a D. Lurdes) duas pessoas verdadeiras e não personagens: são aquilo que são, tiveram a coragem de se transformarem naquilo que são e nunca se perdem no labirinto do que foi desta e não daquela maneira, do que foi e poderia ter sido. Pairando acima de todos, determinando tudo, a ausência/presença de Matilde, a verdadeira heroína trágica, a personagem mais fulgurante que o Artur já criou, aquela que molda o seu próprio destino e cuja dimensão só apreendemos quando está prestes a desaparecer. A que vive e morre assumindo o ideal das tragédias gregas, à imagem e semelhança das suas antepassadas (Electra, Antígona, Ifigénia et allia): já que nascemos, é melhor morrer jovem, depois de termos atingido o auge da nossa existência, enquanto a luz ainda brilha e o fulgor não se extinguiu. 

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