"Que fazer contigo,
pá?"
Carlos Vale Ferraz
Como num teatro vazio num bairro
fora de prazo, a companhia de um outrora grande sucesso de bilheteira volta-se
a encontrar num esforço final para finalizar o processo da memória. Fazendo um
balanço das suas vidas, dançando com o passado, apresentam uma nova peça. A
população que anteriormente assistiu e aplaudiu entusiasmada está velha,
desmotivada, a maioria morreu. Restam os jornais antigos, os registos, os
museus, os contornos da historiografia em geral para confirmar, não a verdade,
não a qualidade das intenções mas tão somente a existência dos actores, a vaga
descrição da narrativa, um ou outro aspecto cénico mais relevante. Quem ainda
se lembrar, por defeito de ofício ou simples curiosidade do processo histórico,
um transeunte acidental que fôr a passar nesse momento, acaba por desfrutar de
um espectáculo raro e único. O de como a ficção acaba por ser a forma mais
eficaz de transmitir a verdade. "Transmitir" não significa
"adquirir" e muito menos "possuir".
A verdade como todos sabemos
nunca se consegue capturar…escorre como um líquido caprichoso por todas as
falhas e buracos do tempo a grande velocidade…é temporariamente verdadeira.
Ruben, herói do 25 de Abril,
derrotado no 25 de Novembro decide envolver-se em acções violentas durante o
período seguinte. Encurralado acabará por se exilar em Paris deixando os seus
companheiros entregues à sua sorte. Na capital francesa conhecerá um Outro que
se fará passar por ele, acabando por serem confundidos por todos. Do confronto
fatal um acabará por morrer. O sobrevivente regressa então a casa empenhado em
resgatar o seu passado, em recontar a sua história. Não se considera um
desertor, muito menos um traidor. Os seus antigos companheiros bem como os inimigos da altura é que já estão noutra fase
da existência e ficam sem saber o que fazer dele.
Em traços gerais este é o último
trabalho de Carlos Vale Ferraz, uma ficção corajosa e despojada de quem viveu
por dentro toda esta fase mais tumultuosa da nossa História recente. Sem
pudores identitários facilmente se consegue ir buscar à realidade a maioria dos
personagens. Homens e mulheres que estando ainda vivos alguns, não deixam de
assumir o seu estatuto de fantasmas na medida em que o seu tempo de pisar o
palco ficou décadas lá atrás. Nesse sentido o primeiro grande desafio deste
romance é o de uma viagem pelas terras da incerteza e da improbabilidade, essa
ténue linha entre Passado e Presente, entre realidade e ficção. Se por um lado
esta é a história de um homem a quem impuseram um destino maior do que ele
conseguia carregar é ao mesmo tempo a história daqueles que procuraram através
da perseguição de ideais acelerar a História em relação ao simples tempo
cronológico. Defendendo os mais fracos, os indefesos, os esquecidos do edifício
social, mais tarde concluem que estes nunca os viram como libertadores mas
antes como vítimas dos mesmos carrascos que se refugiavam (ou queriam refugiar)
na protecção do seu mundo precário do qual não faziam parte. Essa facção que
tinha tanto de idealista como de violenta regressará ao(s) seu(s) mundo(s) de
origem perante o triunfo da falsidade, da mentira e do egoísmo da maioria das
pessoas e que transforma o discurso
oficial numa simples questão de conveniência. Do outro lado, os que se
deixam recrutar pelos eternos donos do poder, movidos pelo conformismo, pela
ganância ou pelo simples egoísmo, esses acabarão sem perceber quem são ou onde
pertencem.
"os homens que
procuram a felicidade copiam os embriagados que não conseguem encontrar a
própria casa, apesar de saberem que a têm"
Entre a inquietude e o
servilismo, entre a resignação e o desassossego, há os que se conformam e há os
que reagem. E no fim todos os actores deste espectáculo vão acabar com as mãos
sujas, as memórias recriminadas e o tempo desenhado. As tempestades caem sobre
todas as cabeças e depois chegam ao fim. Nada fica como dantes. Ruben, ou Simão
Dutra, volta a casa para fechar pontas soltas deixadas pelo caminho. De uma
forma ou de outra o reencontro consigo próprio, o acerto de contas com o
passado e a impermanência do seu destino
são a própria respiração do processo histórico, o oxigénio do destino dos
homens. Tudo muda, ninguém vence, ninguém perde, e todos terminam de formas e
em circunstâncias que pouco ou nada têm a ver com aquilo que imaginaram.
Uma excelente rearrumação da
memória, um romance empolgante, um pedaço de História onde a ficção cumpre o
seu papel maior.
Artur
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