quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O ESPÍRITO



SPIRIT OF '45 - Ken Loach 2013

 Desde "The Flickering Flame" (1997), Ken Loach não tinha realizado nenhum documentário, marcando "Spirit of '45" o regresso do cineasta a uma área que me parece essencial para o entendimento cabal da sua obra, sobretudo no que concerne à integração do real nos seus filmes de ficção. Com algumas excepções ("Black Jack", "Land of Freedom" e "The Wind That Shakes The Barley"), os seus filmes inscrevem-se no presente e ancoram as personagens numa realidade representada em toda a sua riqueza social e psicológica.

Com "Spirit of '45", Loach apresenta-se como um historiador ao abraçar a história da Grã-Bretanha dos anos 30 à actualidade tendo, como pivot, os anos do imediato pós-guerra, o período aberto pela vitória dos trabalhistas liderados por Clement Atlee e a derrota eleitoral de Winston Churchill. Lembra-nos quão importante foi esse acontecimento na implementação de uma política cujas consequências transformaram definitivamente uma sociedade fixa nas suas hierarquias e no seu conservadorismo. A crise dos anos 30 não tinha senão agravado o fosso entre ricos e pobres; a mobilização no esforço de guerra e o espírito de resistência ao nazismo subitamente tornaram coeso um povo e fizeram aparecer necessidades de mudança que o governo trabalhista irá operar em numerosos domínios : nacionalizações, política de alojamento inovadora, criação do Serviço Nacional de Saúde, entre outros. Mesmo que não se tenha tratado de uma revolução (veja-se, por exemplo, o modo como Loach retrata a manutenção de anteriores responsáveis das empresas nacionalizadas), novas ideias e novas práticas irromperam e fizeram o seu caminho. A questão do alojamento constitui um exemplo que Ken Loach aprofunda : novo urbanismo, acesso a casas confortáveis para as classes desfavorecidas, etc. Thatcher, eleita em 1979, não tardou a atacar frontalmente e a desmantelar ferozmente um sistema que tinha retirado da pobreza extrema uma parte substancial da população britânica. Aliás, é assombroso constatar os níveis de pobreza, miséria e degradação dessas pessoas, uma realidade que o filme representa sem hesitar, misturando imagens de arquivo, depoimentos de testemunhas da época, economistas, sociólogos, etc. O conjunto constitui um material riquíssimo em informações, imagens particularmente bem escolhidas e montadas. Na forma, o filme pode ser visto como um modelo do cume que pode ser atingido por um documentário histórico : um momento de rara densidade, soberbamente ritmado. Mas o propósito de Ken Loach não se limita ao papel de historiador; a sua reflexão desemboca num apelo às gerações contemporâneas para se reencontrarem com esse espírito, para se oporem a toda a regressão promovida pelos neoliberais de hoje, por exemplo no que concerne à possibilidade de desmantelamento do sistema de saúde. De resto, o cineasta vê em alguns movimentos actuais um signo desse espírito de resistência. Assim, esta conjunção de documentário histórico e do empenhamento político do cineasta resulta numa dinamização do filme, criando um interesse que as entrevistas com as testemunhas de época não fazem senão ampliar., sobretudo porque se parecem muito com personagens de qualquer outro filme de Loach.

Parece-me ser este filme um momento-chave na obra de Ken Loach. Em primeiro lugar porque este regresso ao documentarismo chega depois de um longo período dedicado à ficção e alguns filmes que se aproximam da comédia ("Looking For Eric", "The Angel's Share"). Depois, porque neste filme encontramos preocupações que atravessam a parte restante da sua obra e temas que abordou brilhantemente : a habitação em "Cathy Come Home", a privatização catastrófcia dos caminhos de ferro em "The Navigators", para não citar outros.

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