quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

PINACULÓIDE HIPOCRISIA ALFACINHA

Amanhã tenho de ir com a minha mãe a um consultório que fica na 'zona nobre de Lisboa' e o meu carro é de 12/2000.

Para quem não saiba, esta é aquela área à volta da Avenida da Liberdade que se estende até à baixa. Parece que aqui as aparências contam. Nesta sala de visitas só se podem ver coisas novas e bonitas, não havendo espaço ás velhas ou usadas. 

Tudo o que são veículos anteriores a 2000, não terão ali cabidela. Pouco importa se estão estimadas pelos donos, se fazem as revisões quando chega o tempo delas, se passaram no dia anterior na imprescindível inspecção anual que atesta o seu bom e regular funcionamento. Não podem por ali andar e pronto.

Dizem que isto é em nome da saúde dos lisboetas e de quem por ali circula.
O meu carro, comprado novo fez 14 anos nos últimos dias de Dezembro passado, passou na inspecção com distinção, conforme o selo que orgulhosamente exibe no canto do pára-brisas. Mas não pode entrar nesta área. Parece que os veículos anteriores a 2000 são mais poluidores que os de Janeiro de 2001, embora os modelos sejam exactamente iguais. Os fumos que libertam são mais tóxicos e nefastos. Será só nesta área porque se for na rua imediatamente ao lado, mesmo que a brisa os paire para lá, são por artes e magias, purificados. Pelos vistos, todos os gases de escape dos milhares de veículos que circulam em Lisboa diariamente, não chegam a esta área privilegiada, mesmo que haja uma simples arajenzita, uma ventosga de proporções bíblicas, ou uma nortada de descobrir carecas.

E careca está à partida esta medida aberrante, porque não só não resolve o problema da poluição provocada pelo uso de combustíveis fósseis, como se revela uma pura hipocrisia.

Se quem defende esta implementação e a pôs a vigorar, quiser realmente resolver o problema da poluição provocada pela circulação automóvel em Lisboa, terá de criar um sistema de transportes públicos movidos a energia não poluente, eficiente e prático, como os que existem nas grandes metrópoles europeias.

Actualmente há tecnologia que já permite a substituição do petróleo em quase todas as áreas, se não todas, onde é usado. Porque é que não se avança para novas soluções que efectivamente poderiam tornar este planeta um local mais saudável para viver?... A economia mundial sentou-se nesta viscosidade da qual será muito difícil sair. Cada vez que se ventila uma nova solução, ao levantá-la, escorrega-se e cai-se com estardalhaço na poça de ouro negro. O lobbie é poderosíssimo.

Quais são os países que são os principais produtores de veículos? Vejamos: VW, BMW, Mercedes, Audi, Mini (caramba, só me vêm marcas alemãs à cabeça!). Bem, se para além da trapacice da história da preservação da qualidade do ar me puser a pensar que estou a ser forçado a comprar um carro novo, ou pelo menos mais recente, a coisa fica mais aclarada. Isso e o bom aspecto, a boa aparência que um país de vanguarda deve apresentar a quem nos visita, escondendo debaixo do tapete ou atrás de ruas mais recônditas, o que não se quer que seja visto.

Pois sim, mas como eu não vivo de aparências e cada vez que eu penso mudar de carro, vou ver o que dou ao estado em impostos para serem desbaratados em imbecilidades, passa-me logo a frescura.

Mas o que me chateia mesmo a sério, é não poder levar à zona nobre no meu carro devidamente inspeccionado, um amigo meu que gosta de andar de cabeça ao vento.
E a minha mãe também não.

Deixem-se de merdas.


Hélder

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A DEMOCRACIA E A PEVIDE

Não acho muita piada a frases começadas pela palavra 'portanto'. Mas como também não gosto do que nos têm andado a tentar impingir há anos e principalmente desde que a Grécia acordou...

Portanto, assim à descarada a turba que de nós se tem andado a governar, diz-nos que o correcto é continuar a pagar juros usurários da extraordinária e abnegada ajuda que os países intervencionados pela troika receberam:

"Os 'compromissos' assumidos com os nossos credores são para cumprir"; 
"É preciso honrar os 'compromissos"; 
etc.

Pouca importância têm os compromissos sociais do estado para com o povo. 
Pouca importância tem o regular funcionamento das instituições. 
Pouca importância tem a inépcia da Justiça.
Pouca importância tem o desinvestimento na educação.
Pouca importância tem um povo sem acesso aos cuidados básicos de saúde.
Pouca importância tem a desonra no compromisso com as reformas para as quais os portugueses que lá chegam, trabalharam uma vida inteira.

Enquanto isto, num país europeu, um governo democraticamente eleito tenta cumprir as promessas eleitorais a que se propôs, nomeadamente a renegociar os termos de um contrato de um empréstimo altamente lesivos para o bom e regular funcionamento das suas instituições. 

E este país, Ellás, com um governo democraticamente eleito, ao recuperar a sua independência e dignidade é atacado pelos cães que lhe saem ao caminho, afagados pelo dono que os atiça com a promessa de um osso melhorzinho na gamela.


O que leva irremediavelmente à conclusão que nesta velha Europa, a livre determinação de um povo é uma impossibilidade pacífica.

E isto apenas porque para grande parte da elite europeia, a Democracia tem o valor que lhe convém. Se for a vontade de um povo que se lhe opõe, não vale uma pevide.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Á MEMÓRIA DE RENATO ROCHA



Às vezes a vontade desliga, ficamos perdidos ente o Passado e o Presente e vemos abrir-se à nossa frente uma estrada sem regresso, numa única direcção. Ser ou ter sido músico de Rock ‘n Roll não é uma actividade como outra qualquer. É uma religião, um culto estabelecido durante um período de tempo aos deuses da Liberdade e da Solidariedade entre os seres. Uma religião com os seus rituais, os seus santos…os seus mártires. Renato Rocha (Negrete), o antigo baixista dos Legião Urbana, não foi o primeiro nem será com certeza o último no desfile dos ícones desta religião. Um quarto esquecido no anonimato de um hotel de periferia, uma relatório pericial, um testemunho de uma última pessoa que falou com ele em vida, uma paragem cardíaca. Um somatório de banalidades que, todos juntos, não conseguem desenhar a primeira letra do seu nome. Renato Rocha terminou ali mas para trás foi grande. Foi baixista e compositor do Legião Urbana, mítica banda do B Rock, o Rock brasileiro dos anos 80 ao lado de Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá. O mundo deu várias voltas, a banda terminou pouco depois da morte de Renato Russo. Há um ano ou dois atrás uma reportagem de televisão dava conta que o famoso Negrete vivia no meio da rua. Familiares, antigos companheiros da banda, todos falaram mas ninguém contava muita coisa. As palavras ficavam no ar a desenhar frases vagas. Problemas de dependência com álcool e drogas, distúrbios psicológicos. O próprio também não adiantava muito. Surgiu a ideia de internamento numa clínica com a anuência do principal interessado. A primeira reportagem terminava aí. Numa segunda reportagem ficamos a saber que o internamento havia durado apenas alguns dias. Renato tinha deixado a clínica. No ano de 2014 Renato é convidado para participar no projecto Urbana Legion onde regressa aos palcos para tocar os sucessos do passado. Ultimamente andava em tratamento numa clínica de recuperação. Tinha possibilidade de sair aos fins-de-semana. Foi num fim-de-semana que o seu coração parou. Tinha 53 anos, dois filhos e uma neta.
Que importa a forma como desaparecemos? Que importam os detalhes do último dia? Nada. Está tudo no culto, no som, na força do Rock, na electricidade, na batida, nas luzes, no público. Está tudo nesses breves instantes em que os deuses nos deixam sentar à sua mesa.

Artur Carvalho





terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A TEORIA DOS JOGOS




ATENAS— Escrevo este artigo à margem de uma negociação crucial com os credores do meu país — uma negociação cujo resultado poderá marcar uma geração, e tornar-se mesmo um ponto de viragem quanto aos efeitos da experiência da Europa com a união monetária.
Teóricos dos jogos analisam negociações como se elas fossem jogos de divisão de bolos em que participam jogadores egoístas. Por ter, na minha vida anterior, na qualidade de académico, estudado durante muitos anos a Teoria dos Jogos, alguns comentadores precipitaram-se a concluir que, na qualidade de ministro das Finanças grego, estava a conceber bluffs, estratagemas e outras opções, tentando obter uma posição de vantagem apesar de dispor de um jogo fraco.
Nada podia estar mais longe da verdade.
Quando muito, o meu passado de Teoria dos Jogos convenceu-me de que seria uma completa loucura pensar nas actuais deliberações entre a Grécia e os nossos parceiros como um jogo de regateio a ser ganho ou perdido através de bluffs e subterfúgios tácticos.
O problema da Teoria dos Jogos, como eu costumava contar aos meus alunos, é o de assumir como dado adquirido os motivos dos jogadores. No poker ou no blackjack, esta premissa não é problemática. Contudo, nas actuais deliberações entre os nossos parceiros europeus e o novo governo grego, aquilo que se pretende no fim de contas é forjar novos motivos. Criar uma nova mentalidade que transcenda divisões nacionais, dilua a distinção credor-devedor em prol de uma perspectiva pan-europeia e que ponha o bem comum europeu acima da mesquinhez política, dogma nocivo se generalizado, e da mentalidade nós-contra-eles.
Como ministro das Finanças de uma pequena nação, com enormes restrições orçamentais, sem um banco central próprio e vista por muitos dos nossos parceiros como devedor problemático, estou convencido de que temos uma única opção: afastar qualquer tentação de tratar este momento decisivo como um ensaio estratégico e, em vez disso, apresentar honestamente os factos da economia social grega, apresentar as nossas propostas para que a Grécia volte a crescer, explicando os motivos pelos quais elas são do interesse da Europa, e revelar as linhas vermelhas que a lógica e o dever nos impedem de ultrapassar.
A grande diferença entre este governo grego e o anterior tem duas vertentes: estamos determinados a combater interesses para dar um novo impulso à Grécia e conquistar a confiança dos nossos parceiros e estamos determinados a não ser tratados como uma colónia da dívida que deve sofrer aquilo que for necessário. O princípio da maior austeridade para a economia mais deprimida seria pitoresco, se não causasse tanto sofrimento desnecessário.
Frequentemente, perguntam-me: e se a única forma de assegurar financiamento for ultrapassar as linhas vermelhas que estabeleceu e aceitar medidas que considera serem parte do problema e não da solução? Fiel ao princípio de que não tenho direito a fazer bluff, a minha resposta é: as linhas vermelhas não serão ultrapassadas. De outra forma, não seriam verdadeiramente vermelhas, seriam um mero bluff.
E se tudo isto trouxer muito sofrimento ao seu povo? Perguntam-me. Está, certamente, a fazer bluff.
O problema desta linha argumentativa é o de partir do princípio, de acordo com a Teoria dos Jogos, de que vivemos numa tirania de consequências. Que não há circunstâncias nas quais devemos fazer o que é correcto, não como estratégia, mas por ser…correcto.
Contra este cinismo, o novo governo grego irá inovar. Iremos cessar, independentemente das consequências, acordos que são errados para a Grécia e errados para a Europa. O jogo do “adiar e fingir”, que começou depois de o serviço da dívida pública grega não poder ter sido cumprido em 2010, vai acabar. Acabaram-se os empréstimos – pelo menos, até termos um plano credível de crescimento da economia para pagar esses empréstimos, ajudar a classe média a recuperar e resolver as terríveis crises humanitárias.  Acabaram-se os programas de “reforma” que se dirigem aos pobres pensionistas e a farmácias familiares e mantém intocável a corrupção em grande escala
O nosso governo não está a pedir aos nossos parceiros uma solução para pagar as dívidas. Estamos a pedir alguns meses de estabilidade financeira que nos permita criar reformas que uma extensa camada da população grega possa assumir e apoiar, para podermos voltar a ter crescimento e acabar com a nossa falta de capacidade de pagar as nossas dívidas.
Pode pensar-se que esta retirada da Teoria dos Jogos é motivada por uma qualquer agenda de esquerda radical. Nem por isso. Aqui, a maior influência é Imannuel Kant, o filósofo alemão que nos ensinou que a saída racional e livre do império da conveniência é fazer aquilo que é correcto.
Como sabemos que a nossa modesta agenda política, afinal de contas a nossa linha vermelha, em termos kantianos, é a correcta? Sabemos, olhando nos olhos dos esfomeados nas ruas ou contemplando a pressão sobre a nossa classe média, ou considerando os interesses dos diligentes trabalhadores de cada aldeia, vila e cidade na nossa união monetária. No fim de contas, a Europa só recuperará a sua alma quando recuperar a confiança das pessoas, pondo os interesses delas na linha da frente.

Yanis Varoufakis, Ministro das Finanças do Governo Grego

Publicado no The New York Times

A BANALIDADE DO BEM

1.  O "democrata-cristão" mota soares resolveu anunciar em vésperas de natal que iria despedir 692 trabalhadores do Instituto de Segurança Social ("requalificar", dizem eles, como se toda a gente - a começar pelos próprios - que esta linguagem badalhoca não significa outra coisa senão despedimento). Poderia ter esperado pela Páscoa, uma época mais propícia ao sacrifício e à degola. Agora, que estamos no Carnaval, noticiam os jornais que todos os cargos dirigentes no ministério tutelado pelo eminente "democrata-cristão" foram parasitados por rapaziada com cartões do ppd e do cds. O esquema fraudulento funciona assim : os bois  boys foram nomeados em substituição. Depois, abriram-se concursos já configurados com a cara chapada destes próceres, em detrimento de pessoas com décadas de serviços prestados e competência reconhecida. Estes militantes eméritos do psd e do cds - perdão, das jotas dos respectivos partidos - são assim nomeados por cinco anos,  o que significa que o governo de António Costa vai ter que aturar esta pandilha incompetente e imberbe por uns bons anos. Deve ser isto que eles chamam "meritocracia". A mim, que sou suspeito, cheira-me mais a "merdocracia".

2. Liderando uma vasta comitiva, paga pelos contribuintes portugueses que, pelos vistos, não contribuem apenas para a preguiça, o desleixo e a lascívia dos gregos, mas também esportulam para estas obras pias consubstanciadas pela ida de portas, machete e esposa e outros altos representantes do povo português a Roma para a consagração cardinalicia do Arcebispo de Lisboa, o vice-primeiro ministro, ministro da economia, da lavoura, da solidariedade social e da fá católica aliviou-se em plena Praça de S. Pedro (é inegável a sua habilidade para a escolha de locais e de ocasiões) do "decreto" da aparição de Nossa Senhora aos Três Pastorinhos, em 1917, num local conhecido como Cova da Iria. Decretado assim, por este alto representante da Nação, num local sagrado e em ocasião tão solene, que português (ou, para o efeito, que cidadão de qualquer outra nacionalidade) poderá duvidar por um instante da veracidade das aparições e milagres conexos ? Quem ousará pôr em dúvida a sagração de Portugal, visitado por entidades divinas e abençoado por governantes ungidos e benzidos por esta clara certeza, qual S. Paulo na Estrada de Damasco ? Mais, quem ousará duvidar que o portas e o coelho são mesmos os nossos salvadores, apóstolos da Fada Merdinha em comunicação directa e privilegiada com o Além ? Embalado, portas aliviou-se também da confissão de que tinha convidado o "Santo Padre" a visitar Portugal em 2017. O argumento ? Que Fátima, em 1917, era uma terra pobre e desvalida. Não deve ter acrescentado que esse estado de 1917 contrasta com a prosperidade de hoje, sobretudo no que diz respeito à hotelaria, construção civil, venda de medalhas, santos e toda a quinquilharia de origem chinesa que inunda os inumeráveis estabelecimentos de comércio que rodeiam o local sagrado. Deve ser isto o que eles chamam "sentido de Estado", de dedo em riste e carinha à banda. Eu, que sou suspeito, chamo-lhe demência e idiotia em estado galopante.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O CAVALO DE TURIM




















Lançado em DVD pelo jornal público (dia 06 de Fevereiro de 2015), o visionamento deste filme nesse suporte suscitou-me reflexões que, na altura do seu lançamento em sala, tinham ficado obscurecidas pela magnitude e irredutibilidade deste objecto estranho, irredutível e singular. Ei-las:

"Em Turim, em 1889, Nietzsche abraça um cavalo de tiro esgotado e perde depois a razão. Algures, no campo : um quinteiro, a sua filha, uma carroça e um velho cavalo. Lá fora levanta-se o vento". Esta é a rudimentar sinopse que consta da capa do DVD. A história é tão simples como seu resumo. Apesar de tudo, a anedota lacónica não corresponde à complexidade de ideias que evoca. Não saberemos nada do destino do filósofo, já que a atenção do cineasta se concentra sobre o destino do cavalo, do cocheiro e da sua filha que vivem numa quinta isolada, no meio de terras áridas varridas pelo vento.

A tempestade desenrola-se enquanto a pileca sobe penosamente uma encosta. Esta sequência inicial dura alguns minutos, acompanhada de uma música repetitiva e sombria que aumenta a desolação, até à crueldade que o espectador liga a cada movimento do animal esgotado, do seu corpo torturado pelo esforço. A estrada, através de campos lamacentos, transforma-se num calvário e anuncia já a dimensão simbólica do filme. Ecos filosóficos ressoam aqui a partir do concreto e do detalhe tão minuciosamente expostos que o espectador se impregna da cada gesto, sofre as flagelações intermináveis da tempestade, enche os ouvidos com os silvos sinistros, vive na lentidão de uma vida totalmente miserável. Não há nada que o distrai, só a aceitação da dor de um quotidiano sem esperança.

O que Béla Tarr quer revelar é o sentido profundo da existência que desliza para o seu declínio inexorável, encontrando um paralelo neste tipo de manifestação artística votada ao desaparecimento no mundo moderno : o cineasta teve a coragem de criar uma imagem lúcida e desesperada que apela à constância do espectador no seu seguimento e descodificação. A sua voz é absolutamente radical, uma voz que não faz qualquer concessão, sempre fiel ao seu estilo, à sua visão pessoal sem cores que embelezem a visão lúgubre, deliberadamente escolhida e cultivada, compondo uma história que se compõe de seis dias monótonos de um homem e e uma mulher que vivem na mais extrema miséria material, fazendo o seu trabalho quotidiano com gestos precisos e resolutos, trabalho sempre idêntico : atrelar o cavalo, retirar a água de um poço que se vai esgotando, tomam uma refeição silenciosa composta por uma única batata, a filha vestindo o pai com um braço paralisado. Este ritual mudo diz tudo sobre a relação humana e íntima entre pai e filha. Esta cumpre o seu dever enquanto o pai a olha com um só olho: um olhar intrigado, severo e concupiscente, olhar enigmático que exprime o seu único interesse na vida, portanto estranho, comparável ao olhar misterioso do cavalo moribundo que não precisa de palavras para justificar a sua existência.

A tristeza pesa sobre cada ocupação quotidiana. Longas sequências nas quais os camponeses quedam imóveis frente à janela acentuando esta insuportável melancolia. A impecável ordem quotidiana parece ser a única força que prende à vida esses dois seres votados à morte. Essa disciplina é de tal modo rígida e cerimonial que a miserável habitação com a sua liturgia profana parece um templo abandonada. O homem  atém-se aos ritos, mesmo quando eles perderam todo o sentido.

Béla Tarr mergulha-nos nesse ritmo invariável em que cada coisa trivial encontra o seu lugar. Desce até aos fundamentos da existência despojada, até ao fundo da miséria, aí onde uma carroça, um cavalo, uma cadeira e uma camisa permanecem como os únicos signos da sobrevivência enquanto signos do quotidiano. O cineasta não cede a nenhuma tentação para aliviar a sua poética : as suas longas tomadas de vistas formam uma duração musical impressionante sob o feitiço da tempestade sem fim  e as brumas que envolvem tudo no cinzento. A sua angústia, o seu "mal de vivre" aproxima-o de Tarkovski. No entanto, a sua voz é ainda mais tenebrosa; a da submissão total e última a uma condição que exclui a palavra e a revolta.

Esses seis dias de que falei atrás, seis dias de um lento declínio, correspondem aos seis dias da Criação. Aqui, neste mundo sem Deus e sem luz, o homem carrega o seu destino ao mesmo tempo que o realiza. A história aparentemente banal ganha uma dimensão bíblica. Apenas algum esclarecimentos são trazidos pela voz off a situam num contexto mais amplo. O silêncio dos dias pontuados sempre pelas mesmas actividades, as vastas planícies desoladas na tormenta, algumas palavras expelidas pela mulher que lê a narrativa de um templo dão ao conjunto um sentido simbólico e essencial. Os poucos eventos que ocorrem sublinham esse sentido, particularmente a visita imprevista de uma personagem inspirada que se perdeu nesta região deserta. Faz a sua irrupção na casa com um discurso subversivo sobre a destruição premeditada por inimigos anónimos de tudo aquilo que foi nobre e sublime no mundo. No entanto, essa força hostil não é nomeada, o que sugere um contexto político, mas não definido. Profeta ou emissário, o homem passa como vento sem deixar, aparentemente, traços no espírito dos camponeses. O sexto dia aproxima-se e a luz não mais brilha. Os miseráveis queda-se no escuro sem nada dizerem : é o tempo da morte. Na estrebaria, o cavalo está inerte, ele que, antes dos homens, se tinha recusado a comer e beber. Os seus olhos, cheios de uma infinita paciência, estão também cheios de enigmas. Que teria Nietzsche sentido quando se atirou ao seu pescoço num gesto revoltado contra a submissão cruel do animal sob os golpes do chicote ? Compaixão, raiva, desespero ? Sentiu sem dúvida o peso da desgraça intolerável, desgosto sem palavras ante a morte quando já nada há a esperar da vida. Nesse morno olhar animal, imaginamos toda a cena que fez colapsar o filósofo na demência, a sua última rebelião suicidária contra a existência que não exige nenhuma justificação. O cavalo sofre a sua sorte até ao fim, como o homem e a mulher que partilham a miséria na compaixão : os seus destinos estão ligados, absurdos, inumanos e humanos ao mesmo tempo. Uma única coisa é segura e inevitável : toda a força vital se estiola. O que muda, é o modo como se enfrenta o declínio. A questão essencial para Béla Tarr tocaria assim os limites da humanidade. Aparentemente, não existe nenhuma escapatória e a fuga ou qualquer solução não são mais do que provisórios expedientes para salvar a vida. Chega enfim o último dia, essa eucaristia sem Deus, já que o homem se fixa no seu alimento terrestre sabendo que ele não o salvará.

Se bem que a imagem cinematográfica se imponha com a sua linguagem única que não reclama interpretação fora da sua própria estilística auto-suficiente, ficamos intrigados e colocamos questões que ficarão sem resposta, sobretudo porque se tratam de questões essenciais sobre os limites da humanidade. Aqui, o o homem parece partilhar a sua condição com o animal numa situação de extrema penúria, não sendo a revolta não podendo ser elemento distintivo da sua humanidade. Onde fica então a sua dignidade ? O que permanece do humano nesta terra devastada e estéril ? A resistência, o automatismo, a ordem estabelecida para perpetuar ou imitar apenas a vida ? Terá o homem necessidade do sublime e do criativo para se nomear homem ? O que resta dos ritos sagrados no quotidiano mais simples e miserável. E Deus ? Esconde-se nos elementos hostis, na palavra, em cada gesto, em cada objecto ? A sombra de Nietzsche plane sobre esta história simples e difícil, sem respostas (mas que permite que façamos as perguntas), uma história ordinária e simples que é o seu contrário : complexidade inextricável, dor aguda, crueldade e compaixão, luz e noite.