segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O CRISTO DAS TRINCHEIRAS


O mito só se torna legível quando explode no interior do Ser em absoluta significação. A lenda só se consegue aceitar desde que seja a sinceridade a construí-la. De mitos e de lendas vivem os povos, de mitos e de lendas se distinguem uns dos outros. A História faz-se daquilo que consegue atravessar o tempo e chegar ao presente. Documentos, objectos, construções, imagens, testemunhos…o que não chegar ao presente nunca aconteceu.
Em Portugal somos únicos a lidar com a morte, a tragédia, a adversidade em geral. Encenamos a morte em espectáculos seculares como a tourada com a possibilidade sempre presente dela aparecer. A tragédia, gostamos de a cantar desde as cantigas de amigo da Idade Média. Como se ao aproximar o sofrimento conseguíssemos melhor suportar a dor. Talvez por isso sejamos o único povo que conta anedotas em velórios sem que isso signifique nenhum desrespeito pelo defunto.
A batalha de La Lys (9 de Abril de 1918) foi talvez uma das piores tragédias colectivas a que estivemos sujeitos durante o século XX. A nossa participação na I Guerra Mundial não terminará nesse dia mas a força do CEP será praticamente insignificante a partir daí dado o peso enorme das baixas verificadas.


Situado numa intersecção de estradas no sector português da Flandres, entre Lacouture e Neuve Chapelle encontrava-se a figura de um Cristo na cruz, elemento familiar de quem por ali passava todos os dias. Em 9 de Abril de 1918, com a ofensiva alemã todo aquele sector foi fortemente fustigado pela artilharia. No final do dia a imagem perdera parte das pernas, uma das mãos e tivera o peito trespassado por uma bala. Embora tombado o Cristo permaneceu no mesmo lugar. Se o Cristo ficou naquele estado imagine-se os soldados. Mais de 7500 morreram naquele dia.

Em 1958 o Governo Português solicitou ao Governo Francês que deixasse vir a imagem do Cristo para Portugal. Foi o que aconteceu a 4 de Abril de 1958. Dias depois a imagem seguiria de carro para a sua morada definitiva, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória (ou, muito simplesmente da Batalha).
Sobre o túmulo do Soldado Desconhecido ali ficou, tal e qual como terminou o dia 9 de Abril de 1918, a imagem de um Cristo companheiro dos nossos soldados.
Num local simbólico para a nacionalidade portuguesa o anónimo cidadão repousa aos pés de um Cristo que se manteve de pé como uma esperança, um conceito de Paz num cenário negro e aterrador de irracionalidade.


Artur




3 comentários:

Hélder disse...

Irmão, uma vez mais levanto-me para agradecido, saudar a tua generosidade em partilhares estas coisas.
Só não concordo que digas que somos o único povo capaz de contar anedotas num velório sem faltar ao respeito ao defunto.
Nisso, os anglo-saxonicos são impartíveis e até fazem grandes repastos onde confraternizam e recordam o defunto.
Assim de repente, lembro-te o memorial do Graham Chapman, a despedida mais emotiva e fantasticamente hilariante que já vi.
http://youtu.be/fsHk9WC7fnQ

Hélder disse...

Impartíveis, talvez, mas era imbativeis

做愛 disse...
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